segunda-feira, 16 de maio de 2016

Machado de Assis e a luta pelo fim da escravatura

Machado de Assis e a luta
pelo fim da escravatura 
A principal contribuição de Machado para a Abolição esteve, naturalmente, em ser Machado de Assis – ou seja, em ser um mulato que, dentro de uma sociedade escravagista, foi o maior escritor brasileiro de sua época, e, muito provavelmente, até os tempos de hoje, de toda a História do Brasil. Mas essa não foi a única
A relação entre Machado de Assis e a luta pela abolição da escravatura tem sido um tema constante, em geral polvilhado de equívocos e – mesmo – preconceitos, em nossa história literária. Como escreveu o próprio Machado, em uma de suas matérias jornalísticas que antecederam o 13 de Maio, “há muito burro neste mundo” (Gazeta de Notícias, 11/05/1888).
A principal contribuição de Machado para a Abolição esteve, naturalmente, em ser Machado de Assis – ou seja, em ser um mulato que, dentro de uma sociedade escravagista, foi o maior escritor brasileiro de sua época, e, muito provavelmente, até os tempos de hoje, de toda a História do Brasil.
Mas essa não foi a única.
Já nos referimos, em outra oportunidade, ao elogio de Machado a uma peça teatral, Mãe, de José de Alencar, manifestamente abolicionista. Porém, estávamos ali mais interessados nas contradições de Alencar (que, como político, estava muito longe do abolicionismo) que na atitude de Machado – que, como se sabe, não era branco – diante da mesma questão (v. “O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores-12”, HP 27/02/2015).
Talvez, a esse respeito, a obra poética de Machado mereça uma reavaliação. Recentemente, ao reler “Americanas”, livro de poemas de 1875, deparamos com alguns trechos que não são, literariamente, desprezíveis. Por exemplo, o quarteto inicial do poema que Machado dedica a José Bonifácio (“De tantos olhos que o brilhante lume/ Viram do sol amortecer no ocaso,/ Quantos verão nas orlas do horizonte/ Resplandecer a aurora?”).
No mesmo livro está o poema “Sabina”, sobre uma violência da escravidão especialmente cruel: “Sabina era mucama da fazenda;/ Vinte anos tinha; e na província toda/ Não havia mestiça mais à moda,/ Com suas roupas de cambraia e renda.”.
Sabina, que não vive na senzala, mas na casa-grande, não percebe – ou percebe difusamente, confusamente – a sua própria condição de escrava, e se apaixona pelo filho de seus senhores. Nos versos de Machado: “e ela seguia/ Ao sabor dessas horas mal furtadas/ Ao cativeiro e à solidão, sem vê-lo/ O fundo abismo tenebroso e largo/ Que a separa do eleito de seus sonhos,/ Nem pressentir a brevidade e a morte!”.
Sabina engravida do rapaz, que viaja – e, depois, volta já casado. Ela decide suicidar-se. À beira do rio em que pretendia afogar-se, no entanto, o pensamento de que isso seria matar também o filho faz com que desista: “Ali ficou. Viu-a jazer a lua/ Largo espaço da noite ao pé das águas,/ E ouviu-lhe o vento os trêmulos suspiros;/ Nenhum deles, contudo, o disse à aurora.”
 CRÍTICA
 Algo bastante peculiar, embora não inédito, é que os adversários literários de Machado, em especial Sílvio Romero, tenham visto em sua obra um caráter “mestiço” (ou seja, mulato) e nacional, que boa parte dos amigos pessoais de Machado não conseguiram ver – ou evitavam ver.
É bem conhecido o artigo de José Veríssimo, o crítico mais próximo de Machado, quando da sua morte:
“São tanto mais de admirar e até de maravilhar essas qualidades de medida, de tato, de bom gosto, em suma de elegância, na vida e na arte de Machado de Assis, que elas são justamente as mais alheias ao nosso gênio nacional e, muito particularmente, aos mestiços como ele. Mulato, foi de fato um grego da melhor época, pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua vida, pela euritmia da sua obra.”
Mais conhecida ainda é a carta que, depois desse artigo, outro amigo de Machado, Joaquim Nabuco, enviou a José Veríssimo:
“... ele foi de fato, um grego da melhor época. Eu não teria chamado Machado de Assis de mulato (...). O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego.”
Essa não era a opinião de Sílvio Romero.
Em seu livro “Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira”, publicado em 1897, Romero dedica-se a demonstrar que Tobias Barreto – seu mestre e mentor na “Escola do Recife” - é mais importante para a literatura nacional do que Machado de Assis.
Hoje, não há necessidade de refutar a tese de Sílvio Romero. A realidade já se encarregou dessa tarefa. É necessário apenas, no que vem a seguir, observar que Romero, ao levantar características étnicas, não o fez como forma de ataque a Machado – até porque Tobias Barreto também era mulato. Não deixam de ser interessantes alguns juízos que ele emite sobre Machado:
“Machado de Assis pode e deve ser também apreciado pelo critério nacionalista. Não o poeta, porque, a não ser em suas pálidas Americanas, este nos desdenhou de todo; sim o romancista e o contista; porque estes dignaram-se de olhar, uma vez por outra, para nós. Em que pese ao Sr. José Veríssimo, o nisus central e ativo de Machado de Assis é de brasileiro, e como tal se revela no caráter essencial de sua obra de mestiço” (Sílvio Romero, op. cit., Laemmert & C - Editores, Rio, 1897, p. 341).
Ou, em outra parte do mesmo livro:
“Ele [Machado] é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto. Sim, Machado de Assis é um brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana que constitui o tipo diferencial de nossa etnografia, e sua obra inteira não desmente a sua fisiologia, nem o peculiar sainete psicológico originado daí.
“Seus romances, seus contos, suas comédias encerram vários tipos brasileiros, genuinamente brasileiros e ele não ficou, ao jeito de muitos dos nossos, na decoração exterior do quadro; mais penetrante do que qualquer desses, foi além, e chegou até a criação de verdadeiros tipos sociais e psicológicos, que são nossos em carne e osso, e essas são as criações fundamentais de uma literatura” (idem, pp. 17 e 18).
Romero usa o termo “sub-raça” como descrição de uma variedade nacional da espécie humana – no pensamento da época, frequentemente esta última era chamada “raça humana” - e não para marcar uma inferioridade. Apesar disso, é inevitável um certo ranço de inferioridade, inerente – embora na maior parte inconsciente – a esse termo.
 JUÍZO
 Ao leitor pode parecer estranho que o autor das palavras que citamos tivesse um juízo desfavorável da obra de Machado, mas assim é. Por exemplo:
“Machado de Assis não é um satírico; a mais superficial leitura de qualquer de suas obras mostra-o logo às primeiras páginas. Não é um cômico, nem como dizedor de pilhérias, nem como criador de tipos e situações engraçadas e equívocas. Não é também plenamente um misantropo, um detraqué. Não lembra, pois, nem Juvenal, nem Martins Penna, nem Molière, nem de todo Baudelaire, ou Poe, ou Dostoievsky. Não é, finalmente, da raça dos humanitários propagandistas e evangelizadores de povos ao gosto de Tolstoi. É, a meu ver, uma espécie de moralista complacente e doce, eivado de certa dose de contida ironia, como qualidade nativa que de quando em quando costuma enroupar nas vestes de um peculiar humorismo, aprendido nos livros, e a que dá também por vezes uns ares de pessimismo, também aprendido de estranhos.
“O que é seu, o que existe no seu espírito, como qualidades naturais, como bases de seu temperamento, vêm a ser o talento da análise psicológica, uma espontânea simpatia pela dignidade humana, a facilidade de generalizar os fatos e as ideias, o que tudo dá ao complexo de sua obra certo sainete moralizante, que o humour e o pessimismo emprestado não têm força de apagar. Possui, por certo, como disse, uma dose ingênita de ironia; mas esta não pôde nunca extravasar-se tumultuária e envenenadora, por ser sofreada pela timidez fundamental do temperamento do escritor.
“Machado de Assis é bom quando faz a narrativa sóbria, elegante, lírica dos fatos que inventou ou copiou da realidade; é quase mau quando se mete a filósofo pessimista e a sujeito caprichosamente engraçado” (idem, pp. 345, 346 e 347).
CATIVEIRO
 Reproduzimos demasiado extensamente as opiniões do sergipano Sílvio Romero, porque - além de ser um autor mais citado do que lido - é um dos dois críticos e historiadores literários de mais influência em nosso país, no período final da vida – e obra – de Machado (o outro é o, já mencionado, paraense José Veríssimo, em quase tudo um oposto perfeito de Romero, que o atacou em um de seus livros mais agressivos: “Zéverissimações ineptas da crítica: repulsas e desabafos” (1909); no entanto, Veríssimo é autor de juízos que permanecem inalterados até hoje: por exemplo, sobre Machado, diz ele em sua “História da Literatura Brasileira”, de 1916, que “é a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais eminente figura da nossa literatura”).

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