quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Mark Twain contra a barbárie: a agressão dos EUA às Filipinas

A agressão dos EUA às Filipinas, em 1899, com sua côrte de horrores – um milhão de mortos (1/9 da população filipina), o afogamento (denominado, pelos norte-americanos, “cura pela água”) como tortura rotineira nos interrogatórios de patriotas, o rompimento com qualquer convenção implícita na história das guerras, etc., etc. - foi um divisor na vida de Mark Twain.
Aos 64 anos, ele já havia publicado “Huckleberry Finn” (1884), “Tom Sawyer” (1876), “O Príncipe e o Mendigo” (1882) e todas as demais obras que faziam dele o escritor norte-americano mais importante da época – na opinião tanto de Ernest Hemingway quanto de William Faulkner, o verdadeiro fundador da literatura dos EUA, até então um departamento da literatura inglesa, o que nos parece evidente na dicção “britânica” que percebemos nos escritores anteriores, inclusive os maiores (Hawthorne, Irving, Poe, Melville e até no “indianista” Fenimore Cooper - autor detestado por Twain, devido à sua idealização dos nativos da América do Norte).
Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, havia apoiado a guerra contra a Espanha, acreditando que seu objetivo era a libertação de Cuba, sublevada contra o domínio colonial espanhol.
Os patriotas filipinos, que proclamaram a independência e elegeram presidente a Emílio Aguinaldo, também tinham a mesma crença, sobretudo depois que, no início da guerra, o presidente McKinley declarara que anexar as Filipinas “seria, de acordo com nosso código moral, uma agressão criminosa”.
Porém, apenas alguns meses depois, no Tratado de Paris, que pôs fim à guerra, o governo dos EUA comprou as Filipinas da Espanha por US$ 20 milhões, no momento em que os espanhóis estavam cercados em Manila, com todo o país libertado pela insurreição. O mesmo McKinley declarou, então, que os filipinos “eram incapazes de se governar”, sendo necessário “educá-los, edificá-los, civilizá-los e cristianizá-los”. Naturalmente, o fato da maioria dos filipinos já ser cristã não era algo para ser levado em consideração. Muito menos o fato de que eles já se governavam.
Assim começou a agressão, o genocídio, a resistência heroica dos filipinos – e a oposição de Twain, eleito, logo em seguida, vice-presidente da Liga Anti-imperialista Americana. Seus escritos dessa época estão entre os mais candentes libelos contra a barbárie imperialista. Como sempre, seu texto é admirável. Por exemplo, sobre o massacre da etnia moro, que era muçulmana, por tropas dos EUA:
“O relatório oficial declara que a batalha foi travada com prodigiosa energia por ambos os lados durante um dia e meio, e que terminou com a completa vitória das armas americanas. A plenitude da vitória é estabelecida por este fato: das seis centenas de moros, nenhum foi deixado vivo. O brilhantismo da vitória, sagazmente, é estabelecido por este outro fato: de nossos seiscentos heróis, somente quinze perderam suas vidas. (…) O inimigo somava seis centenas – incluindo mulheres e crianças – e nós o eliminamos totalmente, não deixando sequer um bebê vivo para chorar por sua mãe morta. Esta é, sem comparação, a maior vitória jamais obtida pelos soldados cristãos dos Estados Unidos” (Mark Twain, “Incident in the Philippines”).
Nessa ciranda de indignidades, a prisão do presidente filipino Emílio Aguinaldo, que em 1901 continuava a resistir, chocou especialmente Mark Twain. O grupo de norte-americanos e macabebes (tribo que servira como tropa colonial dos espanhóis e perdera privilégios com a independência), chefiada por um fanfarrão, Funston, fora salvo da morte pela fome por ação do próprio Aguinaldo. Em troca, assassinaram seus homens e o encarceraram.
Em maio de 1902, depois de ler um discurso de Funston relatando sua façanha, Twain publicou na “North American Review” o artigo “A Defence of General Funston”. Sua “defesa” de Funston (a primeira ironia – se é que essa palavra é adequada - era considerar que esse estúpido magarefe, homenageado, condecorado e promovido, precisava de uma defesa) é constituída pelo argumento (?) favorito do establishment: o “destino manifesto”, de origem divina, que permitiria – aliás, obrigaria – os EUA a agredir outros povos e nações para civilizá-los. Porém, Twain não usa essa fórmula no seu artigo – vai direto ao conteúdo: Funston não é culpado por seus crimes; só pode ser Deus o autor deles.
O ponto de vista de Mark Twain já era conhecido desde 1900, quando, em entrevista ao “New York Herald”, afirmara: “Eu me recuso a aceitar que a águia crave suas garras em outras terras”.
O texto desta página é uma condensação de “A Defence of General Funston”. Estávamos traduzindo o artigo quando encontramos, na coleção da Fundação Perseu Abramo, uma antologia dos textos anti-imperialistas de Mark Twain, traduzidos por Paulo Cezar Castanheira. A publicação é excelente, pode ser obtida pela Internet em arquivo pdf, e conta com uma introdução de Maria Sílvia Betti. Há alguns comentários nas apresentações aos diversos textos que não subscreveríamos, mas isso é completamente secundário. Assim, os três parágrafos iniciais foram traduzidos por nós – o restante pertence à tradução que acabamos de mencionar, que, além de suas qualidades, nos poupou tempo, sempre escasso em época de campanha eleitoral.


CARLOS LOPES




MARK TWAIN

A guerra acabou” – fim de 1900. Um mês depois o refúgio na montanha do derrotado, caçado, sem poder, mas não ainda sem esperança, chefe filipino, foi descoberto. Seu exército fora destruído, sua república extinta, seus ministros mais capazes deportados, todos os seus generais estavam em sepulturas ou prisioneiros. A memória de seu digno sonho passara à vida histórica para ser, em outros séculos, a inspiração de patriotas menos desafortunados; o próprio sonho estava morto, além da ressurreição, mas ele não podia acreditar nisso.
Então, veio a sua captura.
Alguns dos costumes da guerra não são agradáveis para o civil, mas eras sobre eras de treinamento reconciliaram-nos com eles como sendo justificáveis e nós os aceitamos sem nenhuma objeção, mesmo quando nos causam uma palpitação além da conta. Cada detalhe do esquema de Funston – exceto um – já foi empregado na guerra no passado e são perdoados pela história. Os costumes da guerra permitem, no interesse da empresa, como a que estamos considerando, a um general de brigada (se for do tipo que faz tal escolha) convencer ou subornar um correio a trair seu dever; remover os sinais de sua honrosa posição e se disfarçar; mentir, trair, falsificar; associar-se a pessoas preparadas por treinamento e instinto para o trabalho a ser feito; aceitar as boas-vindas e assassinar seus anfitriões cujas mãos ainda estavam quentes do caloroso aperto de mão.
Pelas regras da guerra, todas essas coisas são inocentes, nenhuma delas é causa de culpa, todas são justificáveis; nenhuma delas é nova, todas já foram usadas antes, ainda que não por um general de brigada. Mas há um detalhe novo, absolutamente novo. Nunca havia sido usado antes, em nenhuma época da história do mundo, em nenhum país, por nenhum povo, selvagem ou civilizado. Foi o que Aguinaldo quis dizer quando disse que não teria sido capturado vivo “por nenhum outro meio”. Quando um homem está tão exausto pela fome a ponto de ser incapaz “de dar mais um passo”, ele tem o direito de suplicar ao inimigo para que lhe salve a vida que se esvai, mas se comer uma migalha daquela comida, que é sagrada pelo preceito de todas as eras e nações, ele perde o direito de erguer a mão contra aquele inimigo naquele momento.
Coube a um general de brigada dos voluntários do Exército americano lançar a vergonha sobre um costume respeitado até mesmo pelos corruptos frades espanhóis. E por isso nós o promovemos.
Nosso presidente [McKinley] estendia confiante a mão para seu assassino quando este homem atirou. O mundo atônito ponderou sobre aquele fato, discutiu-o, envergonhou-se dele, disse que ele maculava e envergonhava a nossa raça. Ainda assim, por pior que fosse, ele não havia, quase morto de fome, implorado alimento ao presidente para recuperar as forças que o abandonavam e ter condição de executar sua tarefa traiçoeira; ele não agiu contra a vida de um benfeitor que havia acabado de salvar a sua.
Parece-me que a avaliação do general Funston a respeito dessa captura exige um reparo. Parece-me que em seus discursos de final de banquete ele exibe os heroísmos – digo isto com deferência e o submeto a correção – com generosidade quase excessiva. Ele é um homem de coragem; esse crédito lhe dão seus mais cordiais inimigos. Por causa dele, é uma pena que um pouco desta qualidade esteve em falta no episódio em consideração; que ele a teria para dar, ninguém duvida. Mas ele próprio demonstrou que só correu um perigo: a fome. Ele e seu grupo estavam bem disfarçados em fardas desonradas, americanas e rebeldes; eram muito superiores em número à guarda de Aguinaldo [NOTA DO AUTOR: 89 a 48]; pela falsificação e pela mentira, ele havia afastado todas as suspeitas; sua chegada era esperada, o caminho preparado; a interrupção de sua passagem por algum obstáculo inamistoso era muito improvável; seu grupo estava bem armado; sua presa iria recebê-los com sorrisos de boas-vindas, as mãos hospitaleiras estendidas para um aperto amigo – nada mais seria necessário, bastava atirar naqueles homens. E foi isso o que fizeram. Agradeceu-se a hospitalidade recebida à moda mais recente da civilização moderna, e isso seria admirado por muitos.
A completa surpresa, a completa ausência de suspeita que havia sido assegurada pelas falsificações e mentiras fica mais clara na descrição bem-humorada do episódio feita pelo próprio Funston em um de seus joviais discursos; o discurso do qual, ele acreditava, o presidente teria dito que gostaria de vê-lo publicado, mas isso não passou de um sonho. Sonho de um repórter, diz o general:
“Os macabebes atiraram naqueles homens e dois caíram mortos; os outros recuaram atirando, e eu poderia dizer que recuaram com tanta algazarra e entusiasmo que abandonaram 18 fuzis e mil balas. Sigismondo entrou correndo na casa, puxou o revólver e ordenou aos oficiais rebeldes que se rendessem. Todos ergueram as mãos, com exceção de Villia, o chefe do estado-maior de Aguinaldo; ele tinha uma dessas novas Mauser e tentou usá-la. Mas, antes que ele conseguisse sacar a Mauser, recebeu dois tiros; Sigismondo é um bom atirador. Alambra foi ferido no rosto. Saltou pela janela; a casa, por falar nisso, ficava junto ao rio. Ele saltou pela janela e caiu no rio, mais de sete metros abaixo do barranco. Conseguiu fugir, nadou até a outra margem e fugiu, mas se entregou cinco meses depois. Villia, ferido no ombro, também saltou pela janela para o rio, mas os macabebes o viram e o seguiram pela margem, entraram no rio e o pescaram, e depois o trouxeram a socos e pontapés, perguntando se ele estava gostando. (Risos)”
Apesar de ser verdade que os valentes soldados nessa ocasião não estivessem em perigo, houve um momento em que eles estiveram realmente em perigo; perigo de uma morte tão terrível que a execução sumária a bala, ou pelo machado, ou pela espada, pela forca, por afogamento ou pelo fogo, teria sido uma bênção comparada a ela; morte tão terrível que tem o lugar indiscutível de suprema das agonias humanas: a morte pela fome. Desta, Aguinaldo os salvou.
Sendo estes os fatos, chegamos agora à pergunta: a culpa é de Funston? Acho que não. E por isso me parece que há muito exagero nessa questão. Ele não fez o próprio temperamento: nasceu com ele. Foi Ele [Deus] quem ditou seus ideais, não foi ele [Funston] quem os escolheu. Ele escolheu para ele o tipo de sociedade de que gostava, o tipo de amigos que preferia e os impôs a ele, rejeitando todos os outros; ele não foi capaz de evitar; Ele admirava tudo o que Washington não admirava, e recebeu hospitaleiramente tudo o que Washington teria expulsado – foi Ele, somente Ele, o culpado de tudo, não Funston; o Ele de Funston apreciava naturalmente a escória moral, assim como o de Washington preferia o ouro moral, mas o culpado é apenas Ele, e não Funston. O sentido moral d’Ele, se é que Ele o tinha, era daltônico, mas isso não era culpa de Funston, ele não é responsável pelos resultados; Ele tinha uma predileção natural pelo comportamento condenável, mas seria extremamente injusto culpar Funston pela consequência da enfermidade d’Ele; assim como seria claramente injusto culpá-lo pelo fato de a consciência lhe ter fugido pelos poros quando era pequeno, o que ele não conseguia evitar, e que ele, de qualquer forma, não conseguiria suportar; Ele foi capaz de dizer ao inimigo, “Tenha piedade de mim, estou morrendo de fome; estou fraco demais para dar um passo, dê-me comida; sou seu amigo, sou um patriota igual a você, um filipino como você; tenha dó, dê-me comida, salve-me, ninguém mais pode me ajudar!”, e depois Ele foi capaz de recuperar, restaurar as forças de sua marionete com o alimento, para depois matar quem o havia salvo ainda com a mão estendida em sinal de boas-vindas, como a mão do presidente. Ainda assim, se houve culpa, traição, vileza, elas não são responsabilidade de Funston, mas d’Ele; Ele tem o dom do humor e quase mata de rir os comensais de um banquete ao relatar um incidente engraçado; que merece ser relido e relido vezes sem conta:
“Os macabebes atiraram naqueles homens e dois caíram mortos; os outros recuaram atirando, e eu poderia dizer que recuaram com tanta algazarra e entusiasmo que abandonaram 18 fuzis e mil balas. Sigismondo entrou correndo na casa, puxou o revólver e ordenou aos oficiais rebeldes que se rendessem. Todos ergueram as mãos, com exceção de Villia, o chefe do estado-maior de Aguinaldo; ele tinha uma dessas novas Mauser e tentou usá-la. Mas, antes que ele conseguisse sacar a Mauser, recebeu dois tiros; Sigismondo é um bom atirador. Alambra foi ferido no rosto. Saltou pela janela; a casa, por falar nisso, ficava junto ao rio. Ele saltou pela janela e caiu no rio, mais de sete metros abaixo do barranco. Conseguiu fugir, nadou até a outra margem e fugiu, mas se entregou cinco meses depois. Villia, ferido no ombro, também saltou pela janela para o rio, mas os macabebes o viram e o seguiram pela margem, entraram no rio e o pescaram, e depois o trouxeram a socos e pontapés, perguntando se ele estava gostando. (Risos)”
(Era um homem ferido.) Mas quem falava era Ele, não Funston. Com alegria jovial Ele vê afundar na morte as criaturas simples que ouviram Seu pedido mortiço de comida, e sem remorso vê o olhar de censura nos olhos que se apagam, mas é preciso que nos lembremos de que tudo isso se deve somente a Ele, e não a Funston; por procuração, na pessoa de Seu servo nato, Ele realiza Sua estranha obra, pratica todas as ingratidões e traições, enquanto usa a farda de soldado americano e marcha sob a autoridade da bandeira americana. E é Ele, não Funston, quem volta para casa para nos ensinar, a nós meninos, o que é o patriotismo! E é claro que Ele sabe.
Para mim é claro, e acho que deveria estar claro para todos, que Funston não é culpado de nenhuma das coisas que fez, faz, pensa ou diz.
Ora, temos Funston; o problema já aconteceu, e está nas nossas mãos. A questão é: o que devemos fazer, como vamos resolver esta emergência? Já vimos o que aconteceu no caso de Washington: ele se tornou um exemplo colossal, um exemplo para todo o mundo e para todo o tempo porque seu nome e seus feitos chegaram a todos os lugares e inspiraram, como ainda hoje inspiram e hão sempre de inspirar, admiração e incentivaram emulação. A competição já começou. Alguns talvez não creiam, mas é verdade que hoje existem professores e superintendentes que apresentam Funston como o modelo de herói e de patriota nas escolas.
A continuar essa explosão funstoniana, o funstonianismo vai afetar o exército. Na verdade isso já está ocorrendo. Sempre haverá, em todos os exércitos, oficiais de pouca inteligência e poucos princípios, que estão sempre prontos a imitar métodos que dão notoriedade, sejam eles bons ou maus. O fato de ter Funston conseguido notoriedade ao paralisar o universo com uma ideia nova e medonha é suficiente para essa gente – capaz de tentar essa cartada, se puderem, com melhoramentos se for possível. O exemplo de Funston gerou muitos imitadores, e muitas adições pavorosas à nossa história: a tortura dos filipinos pela terrível cura pela água para fazê-los confessar – o quê? A verdade? Ou mentiras? Como alguém vai saber o que eles estão dizendo? Mas todos sabem dessas atrocidades que o Departamento de Guerra vem tentando esconder há um ou dois anos; e da hoje mundialmente famosa ordem de massacre do general Smith – resumida pela imprensa do testemunho do major Waller:
Matar e queimar – não é hora de fazer prisioneiros – quanto mais mortes e incêndios, melhor – Matar todas as pessoas acima dos dez anos – transformar Samar num imenso deserto!
Vejam o que o exemplo de Funston produziu neste curto espaço de tempo – antes mesmo de ele ter produzido o próprio exemplo. Ele fez avançar a nossa civilização tanto quanto a europeia avançou na China. E é claro que foi o exemplo de Funston que nos fez (e à Inglaterra) copiar o horror que foram os reconcentrados do general Weyler.
Como demonstrei, Funston não tem culpa por seu feito assustador; e se tentasse eu talvez conseguisse demonstrar que ele não tem culpa de ainda mantermos prisioneiro o homem que ele capturou por meios ilegais, e que não é legalmente nosso prisioneiro, nem espólio, como não o seria se fosse dinheiro roubado. Ele tem direito à liberdade. Se fosse rei de uma grande potência, ou ex-presidente de nossa república, em vez de ex-presidente de uma pequena república destruída e abolida, a Civilização (com C maiúsculo) iria criticar e lamentar até que ele fosse libertado.