sexta-feira, 8 de abril de 2011

A devastação do Brasil no governo tucano-neoliberal: uma memória

No recente relatório da Fitch Ratings, tão aplaudido por alguns, está a afirmação de que os supostos avanços da economia brasileira que motivaram a “elevação” do rating do país no conceito (ou no apetite) dos bancos externos foram aqueles do governo Fernando Henrique - o que, para uma “agência” que obedece aos interesses estrangeiros mais espoliadores e parasitários da face da Terra, é compreensível. Muito menos compreensível são certas afirmações, por quem não é tucano nem fez parte daquele infeliz governo, de que o sucesso do presidente Lula em seu segundo mandato foi devido à continuidade em relação àquela época catastrófica para o Brasil. Quando Lula assumiu a Presidência, em 2003, o país estava à beira do colapso - e foi a ruptura com o período anterior que possibilitou, sob a liderança de Lula, que o país se reerguesse, assim como foram os elementos que ainda restavam desse malfadado período que mais obstaculizaram esse reerguimento. Tudo isso nos parece óbvio, mas, infelizmente, a memória às vezes falha a alguns - e de tanto ouvir a mídia repetir o seu cantochão sobre os supostos “fundamentos” que alguns devastadores do país teriam assentado, há quem faça, inconscientemente, coro a essa infâmia. Além disso, existem os jovens, alguns que são tão jovens que mal viveram aquela época. Por todas essas razões, veio-nos a ideia lembrar, brevemente, o que foi aquela aflição para o país e seu povo - para os trabalhadores, para os empresários, para os estudantes, para as mulheres, crianças e homens deste país. Não encontramos forma melhor de isto fazer do que apresentar uma condensação do relato e análise de Nílson Araújo de Souza em seu livro “A Longa Agonia da Dependência”. Chamamos a atenção do leitor para o fato de que se trata de obra volumosa - mas acessível a todos os interessados em melhor conhecer a economia e, de resto, a História de nosso país. O que apresentamos aqui é apenas uma amostra - mas suficiente para que conheçamos (ou refresquemos a nossa memória) sobre um dos mais terríveis períodos que o Brasil já passou. O seu desfecho, com a derrota da reação, do atraso e dos destruidores da nação, apesar das marcas que ainda não foram inteiramente superadas, é uma advertência presente aos inimigos do país. Não há continuidade possível e não há volta possível àquela época. Os que o tentaram, aliás, receberam do povo o seu saudável e bem colocado repúdio.

(CL)

NILSON ARAÚJO DE SOUZA

O capital estrangeiro invadiu a economia nacional já no primeiro ano de governo FH. Sob a forma de “investimento direto”, pulou da média de US$ 1,68 bilhão de 1991 a 1994 para US$ 5,48 bilhões em 1995. Os novos empréstimos e financiamentos subiram de US$ 12,58 bilhões anuais do período 1992-94 para US$ 20,46 bilhões em 1995. O ingresso das aplicações especulativas em carteira, que não passava de US$ 3,86 bilhões em 1992, subiu sistematicamente até atingir o montante de US$ 22,6 bilhões em 1995, mas, dada a enorme volatilidade desses capitais, o retorno também acelerou-se; assim, o ingresso líquido, depois de subir de 1992 para 1993, começou a cair: era de US$ 6,6 bilhões em 1993 e de US$ 4,75 bilhões em 1995.


Além da crescente perda do controle da economia nacional resultante da desnacionalização e do endividamento externo, o violento aumento do passivo externo que se aceleraria a partir dali implicava não apenas no aumento da fragilização das nossas contas externas e do conjunto da economia, mas também na crescente drenagem de recursos para o exterior. Como a balança comercial não gerava os recursos para garantir essa drenagem, o resultado passaria a ser o crescimento, em bola de neve, da dívida e da desnacionalização.


De um lado, o Banco Central emitia títulos da dívida pública a fim de “enxugar” os reais emitidos para trocar pelos dólares especulativos que entravam para cobrir o déficit externo e formar as reservas; de outro, os juros altos praticados para atrair esses capitais vadios incidiam sobre a dívida pública, fazendo-a crescer em bola de neve. A dívida mobiliária em poder do público (isto é, a dívida em títulos), que era de R$ 61.78 bilhões quando FH assumiu o governo, já era de R$ 108.49 bilhões ao final de seu primeiro ano de governo, num espetacular aumento de 75,6%. Se considerarmos sua evolução desde que ele assumira o Ministério da Fazenda, em junho de 1993, quando seu montante equivalia a R$ 35.5 bilhões, o aumento foi de 205,6%. O conjunto da dívida do setor público (descontados seus créditos) aumentou de R$ 153.2 bilhões ao final de 1994 para R$ 208.5 bilhões no fim de 1995. A dívida dos Estados e municípios aumentou de R$ 20 bilhões no primeiro mês do Real para R$ 40 bilhões em dezembro de 1995, ou seja, dobrou, não porque tenham tomado mais dinheiro emprestado para investir ou realizar gasto social, mas porque foram sobrecarregados dos juros extorsivos impostos pelo governo federal. O resultado foi que, sobrecarregados de encargos financeiros da dívida, União, Estados e municípios tiveram em 1995 um rombo nas contas, no conceito de déficit operacional, equivalente a 5% do PIB (o maior até então na década de 90), num montante de R$ 32.6 bilhões, quando havia tido um superávit de 1,3% do PIB em 1994 (R$ 8.2 bilhões). A política de FH recriara o déficit público que ele tanto dizia combater.


QUEBRADEIRA

A crise financeira chegou a patamares tão elevados que começou a quebrar até grandes bancos, como o Econômico, o Nacional e o Bamerindus. Parece ironia que, diante de juros tão elevados e, portanto, de grandes possibilidades de ganhos pelos bancos, eles tenham começado a quebrar. Ocorre que os juros eram tão elevados (no crediário variavam de 400% a 450% ao ano) que inviabilizaram a capacidade de pagamento dos tomadores (tanto empresas quanto consumidores), gerando a inadimplência generalizada. Além disso, como mostramos anteriormente, houve naquele ano um brutal aperto da liquidez da economia. Os bancos não recebiam o pagamento dos empréstimos realizados e não contavam com aporte de liquidez pelo Banco Central; ao contrário, o compulsório, ou seja, o repasse dos bancos ao BC, foi aumentado. Os ganhos que obtinham em suas aplicações em títulos públicos não eram capazes de cobrir os prejuízos que tinham em suas aplicações ao setor privado. Nesse caso, só conseguiram sobreviver os bancos em cuja carteira predominavam as aplicações seguras e rentáveis em títulos do governo. Além disso, como ficaria claro no caso do Bamerindus, o governo trabalhou conscientemente no sentido de quebrar vários bancos a fim de entregá-los a bancos estrangeiros. Com o objetivo de “saneá-los” e entregá-los “enxutos” a bancos estrangeiros, o governo criou o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER). Não passava de mais um disfarce para injetar, através do Banco Central, toneladas de dinheiro público nos bolsos dos tubarões da economia. Nesse caso, o BC assumiu que entregou R$ 20.3 bilhões, mas os cálculos feitos pelos economistas da Cepal Pedro Saínz e Alfredo Calcagno indicaram a cifra de R$ 43.4 bilhões. Além disso, o governo assumiu a “parte podre”, não saneada, dos bancos, entregando a “parte boa”, a preço de banana, a bancos privados, sobretudo estrangeiros. Isso sem contar a parte aportada pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica em programas de assistência aos bancos falidos, com destaque para a compra dos “créditos podres” das suas carteiras imobiliárias. Em função desse aporte, o BB teve prejuízo de R$ 4 bilhões em 1995, enquanto a CEF sofreu forte queda de rentabilidade. O Banco Central, por sua vez, teve um prejuízo de R$ 36 bilhões e uma perda patrimonial de R$ 16.6 bilhões, fato inédito na história do Banco.


A crise financeira haveria de rebater sobre a economia real. Espremida entre os juros altos e a concorrência predatória externa, a taxa de lucro das empresas tenderia a cair. Por qualquer critério de lucratividade, análise de balanço feita pela FIESP junto a 183 grandes empresas mostrou queda de rentabilidade de 1994 para 1995: rentabilidade do capital próprio – queda de 6,4% para 4,6%; rentabilidade do capital total – queda de 7% para 5,6%; margem de lucro – queda de 6,4% para 4,8%. Além disso, 26% dessas empresas deram prejuízo. O levantamento da rentabilidade sobre o patrimônio das 500 maiores empresas, feito pela publicação “Melhores e Maiores”, indicou uma queda maior: de 10,7% em 1994 para 6,1% em 1995 . Imaginem só o que terá ocorrido com as pequenas e médias empresas, que não tiveram acesso a crédito mais barato no exterior, como ocorreu com as grandes. Nem mesmo a queda do salário e o consequente aumento da taxa de mais-valor conseguiram compensar o efeito corrosivo produzido pelos juros altos na taxa de lucro das empresas.


Com as empresas amargando lucros mais baixos, a produção nacional tenderia a encolher. O detonador foi a subida dos juros em março de 1995. Já no mês de abril a produção despencou. A produção industrial nacional e paulista, que já vinha declinando desde antes, caiu em abril 20% em relação ao primeiro trimestre, segundo dados do IBGE e da FIESP; as vendas industriais nacionais, conforme levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), diminuíram 15,33% no mesmo mês; o faturamento do comércio varejista na região metropolitana de São Paulo caiu 7,7% de março para abril, segundo a Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP); a indústria de embalagens plásticas, um dos termômetros da atividade industrial, registrou queda em maio de 9,9% de sua capacidade ocupada, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Embalagens; a produção nacional de aço caiu 12,79% de março para abril, conforme dados do Instituto Brasileiro de Siderurgia; a indústria automobilística, que acumulava em seus pátios estoques de carros três vezes superior ao normal, deu férias coletivas aos seus funcionários.


PRODUÇÃO INDUSTRIAL

Esse encolhimento da economia persistiu ao longo do ano. A produção industrial nacional, que caiu sistematicamente desde abril, sofreu queda de 8,4% entre o primeiro e o último trimestre de 1995, segundo levantamento do IBGE, sendo de 11,7% entre dezembro de 1994 e dezembro de 1995 (a queda no setor de bens de capital foi de 32,7%). Nesse mesmo período, ainda segundo o IBGE, o PIB caiu 4,5%. Segundo a FIESP, a produção industrial paulista de dezembro de 1995 era 16,6% menor do que a de dezembro de 1994 e 23,73% menor do que o pico de março de 1995. As vendas no comércio varejista também sofreram brutal retração, caindo 13,7% entre dezembro de 1994 e dezembro de 1995, conforme a FCESP. A situação era tão dramática que até o chefe do cartel da mídia, o grupo O Globo, teve que reconhecer que, naquele ano, as empresas arcariam com encargos financeiros da ordem de US$ 70 bilhões. Diante de tal escorcha financeira e da queda das vendas e da produção, o resultado haveria de ser o brutal aumento das falências e das concordatas: as falências requeridas na capital paulista aumentaram 139% de 1994 para 1995 e as concordatas aumentaram 227%.


Ao longo do ano, a produção industrial ainda conseguiu crescer 1,9% - contra 6,7% em 1994 -, graças ao crescimento que obtivera no primeiro trimestre do ano, bafejado pela ilusão monetária que levara ao uso farto do crédito no primeiro momento do real. Mas a ilusão de que se estava pagando um juro barato no crediário, quando, na verdade, o juro real era altíssimo, começou a se desfazer na hora do pagamento das prestações, explodindo em inadimplência generalizada. Medido pelo SPC de São Paulo, já em abril de 1995 o número de inadimplentes aumentou 266% em relação a igual mês do ano anterior, sendo de 130% em maio e de 245% em junho; o número de cheques sem fundos incluídos na listagem do Banco Central aumentou 218% em maio e 267% em junho. Ao final do ano, havia dobrado em relação ao ano anterior. E assim desaparecia essa válvula de escape para os empresários e consumidores.


Muitos empresários acreditavam que essas dificuldades eram acidentes de percurso do Plano Real. Algo como: o “Real é bom, mas tem tido problema de administração ou de turbulências externas”. Ledo engano. Eram condições essenciais, estruturais, desse Plano. A chamada “âncora cambial” era a base fundamental de sustentação do Real, na medida em que permitia o ingresso de produtos estrangeiros mais baratos e forçava as empresas instaladas no país a segurarem seus preços. No entanto, além do efeito devastador sobre a indústria nacional, esse importacionismo provocava a deterioração e consequente estrangulamento da balança comercial. A fim de atrair capitais externos para cobrir esse rombo, o governo adotava uma política de juros altos, isto é, a “âncora monetária”, que espremia mais ainda a empresa nacional. Era a lógica do Plano. Nada de acidental.


A agricultura, contraditoriamente, apesar de haver colhido uma supersafra naquele ano, também amargou uma profunda crise. Os agricultores plantaram em 1994 iludidos pelas promessas de juros baixos do real, mas na hora da colheita enfrentaram um duplo problema: o governo não garantiu o preço mínimo através de compras governamentais e, além disso, elevou as taxas de juros. Premidos por dívidas, que eram corrigidas a juros astronômicos, e sem garantia de compra pelo governo, os agricultores venderam seus produtos aos atravessadores a preços aviltantes: o preço do feijão caiu 63,1% em relação ao ano anterior, soja – menos 30,8%, milho – menos 21,8%, algodão – menos 12,9%, arroz – menos 9%. Em conseqüência, segundo estimativa do economista brasileiro que mais tem se dedicado ao estudo da agricultura, o professor da USP Fernando Homem de Melo, a renda agrícola caiu 32,5%, perda equivalente a R$ 5.6 bilhões. Além de haver provocado a quebra de milhares de pequenos e médios produtores, ceifou 450 mil empregos rurais. Era essa a outra face da famosa “âncora verde” – a queda dos preços dos produtos agrícolas -, que contribuíra para manter a inflação sob controle na fase inicial do real.


A contração da economia provocou o alastramento do desemprego, que já era grave. Dados da FIESP mostram que, de maio de 1995 a janeiro de 1996, foram ceifados 10% dos postos de trabalho na indústria paulista. O IBGE revelou queda semelhante na indústria brasileira, entre dezembro de 1994 e dezembro de 1995. O salário real também seguiu se deteriorando. Estudo da SEADE/DIEESE mostra que, entre dezembro de 1994 e dezembro de 1995, o rendimento médio do trabalho assalariado em São Paulo caiu 8,4%.


RECESSÃO

Em meio a todas essas dificuldades, Fernando Henrique resolveu, em meados do ano, convocar rede de rádio e televisão para comemorar o primeiro ano do Real. E, sem o menor constrangimento, declarou que, durante o primeiro ano, seu Plano fez a economia crescer, gerar 500 mil novos empregos e aumentar em 20% o poder de compra do salário. Não conseguiu convencer nem a cúpula empresarial, que foi a grande entusiasta do Real desde o primeiro momento. Foi o que declarou Mário Amato, então presidente da Confederação Nacional da Indústria: “já estamos em recessão, porque não acreditamos no dia de amanhã”. Quanto ao crescimento, vimos que, no momento dessas comemorações, a economia, depois de uma lua-de-mel inicial com o ilusório crédito barato, já entrara em recessão. O nível de emprego, que melhorara naquele primeiro momento, também já começara a declinar com a desaceleração da economia. O salário real, pelo levantamento do DIEESE/SEADE na Grande São Paulo, caíra 12,54% no primeiro ano do Real. A inflação também seguia resistindo. O IPC-r (que media a inflação para famílias de 1 a 8 salários mínimos) foi de 35,3% e o ICV do DIEESE atingiu 55% (para famílias de 1 a 30 salários mínimos). No entanto, se se excluíssem os importados e as tarifas públicas, a inflação seria de 134%, revelando que foi o congelamento do câmbio e das tarifas que impediu a explosão inflacionária. Só que ao mesmo tempo o congelamento do câmbio estava levando à explosão das contas externas e também das contas públicas.


Mas o grupo de FH, que um empresário designara de autista, não conseguia ver essa realidade, a ponto de que, mesmo depois da quebradeira generalizada e da queda da produção e das vendas, seguia alardeando que a economia brasileira não estava em recessão.