quarta-feira, 13 de abril de 2011

A devastação do Brasil no governo tucano-neoliberal: uma memória (2)

O crescimento da mobilização popular aumentava o desgaste do governo, ampliando as dificuldades para a aprovação das anti-reformas no Congresso. Por isso, o grupo palaciano decidiu acelerar as votações, para isso atropelando todas as normas regimentais, sem contar a pressão, a chantagem e outros mecanismos espúrios que adotou sobre os parlamentares

NILSON ARAÚJO DE SOUZA

Apesar do forte abalo, o Plano Real ainda não naufragaria na turbulência do primeiro ano do governo FH. Como vimos, graças à correção do câmbio e das tarifas externas em março, mas também à promessa do governo de que realizaria uma “privatização selvagem”, os capitais externos, que haviam começado a fugir no primeiro trimestre do ano, voltaram às carradas, não apenas cobrindo o déficit externo, mas também reforçando as reservas. Vieram não apenas para se locupletar dos juros de agiotagem que se estava praticando. Queriam ser os primeiros da fila na hora em que FH começasse a pagar a conta com a entrega das estatais. Além disso, ao ajudarem a fechar as contas externas, davam a tranqüilidade de que o governo precisava para forçar a aprovação no Congresso da quebra do domínio público sobre os setores estratégicos da economia.


Foi para atendê-los que Fernando Henrique enviou para o Congresso, em meados de fevereiro de 1995 – portanto, menos de dois meses depois de assumir o governo -, as Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que quebravam o domínio público sobre o petróleo, o subsolo, as telecomunicações e a energia, além de abrir para o capital estrangeiro a navegação de cabotagem e de conceder à empresa estrangeira o mesmo status da empresa nacional. O objetivo desde o início não era abrir esses setores para a instalação de novas empresas de origem privada, mas entregar o patrimônio das empresas públicas para grupos privados, sobretudo, como ficaria claro mais tarde pelo “modelo de privatização” adotado, a consórcios cujo “sócio estratégico” seria de origem estrangeira.


As “privatizações” não avançaram muito em 1995 porque, no fundamental, já haviam sido entregues as empresas que não estavam resguardadas na Constituição ou nas leis. A “privatização selvagem” dependia, portanto, de mudanças constitucionais e legais. Assim, em 1995, foram entregues apenas sete pequenas empresas do setor petroquímico, num total de US$ 603,7 milhões, e uma no setor de energia, a Escelsa do Espírito Santo, entregue por US$ 519,3 milhões. Naquele ano, iniciaria a grande batalha entre os que queriam se apoderar ou entregar o patrimônio público nacional e os que resistiam a essa entrega. O Poder Legislativo, que seria o palco dessa batalha, sofreria a pressão, de um lado, dos lobistas do capital estrangeiro, do governo e da mídia e, de outro, da crescente mobilização social.


Já antes de enviar a PEC da Previdência para o Congresso, o governo deflagrou o processo da anti-reforma previdenciária com a edição da medida provisória 841, que começava a extinguir a aposentadoria por tempo de serviço. Isso indicava que o governo decidira iniciar suas anti-reformas pela Previdência. A reação popular não se fez esperar. E, assim, já em janeiro de 1995, também se deflagrava a luta popular, particularmente dos aposentados e pensionistas, contra o golpe que o governo pretendia dar sobre os direitos previdenciários. No dia 24 de janeiro, realizou-se, na Praça da Sé, em São Paulo, com a presença de mais de 3 mil pessoas, o “Dia Nacional de Luta dos Aposentados e Pensionistas”, organizado pela Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas – COBAP, liderada pelo veterano sindicalista Oswaldo Lourenço, vice-presidente da CGTB e que vinha das lutas sindicais de antes de 1964. No mesmo dia, atos semelhantes foram organizados em importantes cidades do interior de São Paulo. Dois dias depois, mais 3 mil pessoas foram às ruas no Rio de Janeiro. E, no domingo 29, mais de 5 mil lideranças de aposentados de todo o país se reuniram em Aparecida do Norte, São Paulo, no seu 6º Encontro Nacional, para organizar a luta em todo o território nacional. A decisão de Fernando Henrique de vetar o salário mínimo de R$ 100 – na época, correspondentes a cerca de US$ 100, que havia sido sua promessa de campanha -, aprovado pelo Congresso, colocaria mais lenha na fogueira, envolvendo na luta o conjunto do movimento sindical. Assim, em 9 de março de 1995, reuniram-se em Brasília, no auditório Petrônio Portela do Senado Federal, cerca de 2.500 lideranças sindicais, representando 250 entidades, incluindo 16 confederações de trabalhadores, todas as federações estaduais, a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) e a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT). Ali, foram marcadas manifestações em todo o Brasil contra o “pacote da Previdência”, que seria editado na semana seguinte. Menos de uma semana depois da edição do “pacote”, seria realizado em Brasília o congresso dos aposentados, organizado pela COBAP, que se encerrou com uma manifestação nas ruas de Brasília com a presença de cerca de 10 mil aposentados. Essas mobilizações repercutiram dentro do Congresso Nacional. Já na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, encarregada de examinar a constitucionalidade do projeto do governo, este sofreria “sua primeira grande derrota”, nas palavras da própria liderança da bancada situacionista: a CCJ desmembrou o projeto em várias partes, dificultando a intenção do governo de aprová-lo em bloco.


Sob essa pressão, o governo, depois de haver vetado o salário mínimo de R$ 100, enviou novo projeto para o Congresso estabelecendo esse mesmo valor, e, numa manobra esperta, sabedor da sensibilidade dos parlamentares para essa questão, pediu regime de urgênciaurgentís- sima para sua aprovação conjunta com o “emendão da Previdência”. E sofreu sua segunda derrota no Congresso: no dia 5 de abril, os parlamentares aprovaram o regime de urgênciargentíssima apenas para o salário mínimo, deixando a votação da anti-reforma da Previdência para depois. O Primeiro de Maio daquele ano se converteria no grande desaguadouro das lutas populares contra esse “pacote”.


Graças à mobilização popular, o governo passou a enfrentar crescente resistência no Congresso para aprovar o “pacote da Previdência” e por isso resolveu adiar essa votação, colocando na ordem do dia as anti-reformas das telecomunicações, do petróleo, da navegação de cabotagem, do subsolo e da definição de empresa nacional. A mobilização popular também mudou de caráter: passou da etapa de defesa dos direitos previdenciários para a defesa da soberania nacional e do patrimônio público. Em 24 de abril de 1995, o Fórum das Estatais do Rio de Janeiro realizou manifestação com cerca de 10 mil pessoas nas ruas centrais da cidade em defesa do patrimônio público e da soberania nacional. No dia 11 de maio, foi lançado o Manifesto em Defesa da Soberania e da Integridade do Brasil, assinado por importantes lideranças nacionais, como o ex-chefe do Estado Maior das Forças Armadas, General Antônio Carlos de Andrada Serpa, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho, o ex-vice-presidente da República, Aureliano Chaves, o presidente da CGTB, Antônio Neto, a presidenta da Confederação das Mulheres do Brasil, Rosanita Campos, entre outros. Uma semana depois, os estudantes secundaristas de São Paulo, liderados pela União Municipal dos Estudantes (UMES), ocupariam as ruas da cidade em defesa da soberania nacional e 180 deputados e senadores assinariam moção contra a quebra do domínio público sobre as telecomunicações em ato de lançamento da Frente Parlamentar Brasil Soberano. No começo de junho, seria lançada em São Paulo a Frente em Defesa do Brasil, que organizou no dia 13 do mês uma manifestação com mais de 20 mil pessoas na capital paulista e voltaria a ocupar as ruas de Brasília no dia 21 com cerca de 30 mil pessoas provindas de todo o Brasil.


O crescimento da mobilização popular aumentava o desgaste do governo, ampliando as dificuldades para a aprovação das anti-reformas no Congresso. Por isso, o grupo palaciano decidiu acelerar as votações, para isso atropelando todas as normas regimentais do parlamento, sem contar a pressão, a chantagem e outros mecanismos espúrios que adotou sobre os parlamentares. Assim, entre fins de maio e o mês de junho, conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados a mensagem 193/95, que, ao alterar os artigos 171, 176 e 177 da Constituição, acabava com o conceito de capital nacional e permitia a participação do capital estrangeiro na navegação de cabotagem e na exploração do subsolo, bem como as PECs que impunham a quebra do domínio público sobre as telecomunicações e o petróleo, mas não sem haver enfrentado grandes tensões.


Na votação do primeiro turno das telecomunicações, por exemplo, depois de um placar de 348 votos a 140 na votação do texto principal, o governo só conseguiu 220 votos contra 219 na deliberação sobre os principais destaques parlamentares. Depois da votação do primeiro turno da emenda do petróleo, o deputado José Aristodemo Pinotti declarou: “A votação sobre o petróleo foi nula de direito porque o relator da matéria confessou que recebeu recursos substanciais para sua campanha eleitoral da companhia petrolífera interessada em tomar a Petrobrás”. Para conseguir a aprovação da emenda do petróleo, FH comprometeu-se com os deputados que enviaria um projeto garantindo que não privatizaria a Petrobrás nem as reservas por ela descobertas.


E foi precisamente na questão da Petrobrás que se concentraram os principais embates por ocasião da votação das anti-reformas no Senado. Já no começo de julho, a emenda aprovada na Câmara chegava ao Senado. No início de agosto, o relator escolhido, senador Ronaldo Cunha Lima (PMDB-PB), anunciou que, em seu substitutivo, incluiria salvaguardas para impedir a entrega da Petrobrás e garantir que continuaria em suas mãos as áreas já descobertas ou em processo de produção.

A intenção do relator era que, em lugar de entregar o patrimônio público, como seria o caso dos demais setores em que o governo pretendia “flexibilizar” o domínio público, no caso do petróleo as novas empresas que quisessem ingressar no setor teriam que realizar novos investimentos.


Apesar de haver se comprometido com essas salvaguardas durante a votação na Câmara, o governo de Fernando Henrique reagiu duramente contra as intenções do senador Cunha Lima. No entanto, como este conseguiu o apoio da bancada de seu partido, que era majoritária no Senado, o governo teve que recuar pelo menos formalmente. Para conseguir que a emenda fosse aprovada na CCJ do Senado sem alteração, FH, em reunião com os senadores, comprometeu-se a cumprir essas salvaguardas e que, para que não houvesse dúvidas, enviaria uma carta-compromisso ao Senado. A carta foi enviada, mas os compromissos, como é da natureza de FH, eram vagos: garantiu que não privatizaria a Petrobrás nem os poços em produção, mas, além de não se comprometer claramente com uma lei complementar que regulamentasse esse “acordo”, deixou vaga a questão dos poços já descobertos. Era esse o pulo do gato. Como não haviam condições políticas para entregar a Petrobrás, a política do governo Fernando Henrique para o setor passaria a ser a realização de “leilões” dos poços já descobertos pela empresa.



1996



Iniciamos o ano de 1996 sob o signo de duas mensagens contraditórias. De um lado, na mensagem enviada ao Congresso Nacional, por ocasião da reabertura de seus trabalhos, Fernando Henrique tentou convencer aos parlamentares e, obviamente, a toda a Nação de que no Brasil tudo estava indo bem, graças ao Real. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por seu lado, abriu a Campanha da Fraternidade daquele ano com uma mensagem que dizia que a política neoliberal que estava sendo implementada no Brasil admitia a exclusão social como princípio fundamental de funcionamento. Declarou então: “É uma política que dia a dia vem excluindo uma massa considerável de cidadãos e cidadãs do processo produtivo e distributivo, carregando ainda mais as armas da violência. Não é justo que se roube o pouco dinheiro dos pobres aposentados, dos pequenos produtores e dos trabalhadores em geral para injetar no sistema financeiro... Basta de sacrificar vidas para salvar planos econômicos”.


FH mais uma vez queria iludir a opinião pública. A CNBB tinha razão. O próprio IPEA, órgão de pesquisa do Ministério do Planejamento e que vinha, sistematicamente, apresentando estimativas e projeções otimistas para agradar e defender o governo, projetou, em sua carta de janeiro daquele ano, uma queda do PIB de 2,2%, na comparação dos 12 meses que se encerrariam em março com os 12 meses anteriores. O IBGE, outro órgão oficial, levantou que a produção industrial nacional caiu 9,3% no primeiro trimestre daquele ano em relação a igual período do ano anterior. A queda do nível de emprego industrial no país, segundo levantamento da CNI, foi de 9,72% de março de 1995 a março de 1996. A situação se estendeu por todo o primeiro semestre do ano: o consumo industrial de energia em São Paulo caiu 9,5% no primeiro semestre em relação a igual período do ano anterior; a produção industrial paulista caiu cerca de 9% e a de máquinas caiu 16,1%; as vendas de máquinas agrícolas caíram 62,95% e as de autopeças, 8,2%. A safra agrícola, por sua vez, sofrera queda de 7%. Os agricultores, depois de amargarem a enorme perda de 1995, recuaram no plantio.


Até o Banco do Brasil quase quebrou: teve um prejuízo de R$ 4 bilhões em 1995. Isso se deveu à combinação de duas coisas: de um lado, em face das dificuldades das empresas e dos agricultores, em suas carteiras jaziam R$ 20 bilhões de créditos em atraso, sendo R$ 9 bilhões de produtores rurais; de outro, era obrigado pelo governo a, junto com a CEF, socorrer os bancos privados, rolando diariamente cerca de R$ 11 bilhões, o que correspondia a metade de todas as operações realizadas no interbancário. O BB só não quebrou porque o governo devolveu-lhe R$ 8 bilhões que o Tesouro lhe devia, em grande parte por conta do crédito agrícola.


Enquanto isso, os grandes bancos privados nadavam em dinheiro. Os primeiros balanços semestrais divulgados mostraram que seus lucros aumentaram estupidamente em relação ao ano anterior: Bradesco – mais 62%, Unibanco – mais 83,3%, Itaú – mais 60%. Esse aumento dos lucros dos grandes bancos não é contraditório com a quebra que atingiu vários bancos. Quebraram aqueles que concentraram seus empréstimos no setor privado. Como este estava em estado de verdadeira calamidade, não conseguia pagar suas dívidas construídas nas asas dos juros estratosféricos, gerando dificuldades para os bancos. No entanto, aqueles que optaram por concentrar suas aplicações no setor público, particularmente em títulos do governo federal, estavam com as burras cheias. Isso puxou para cima a rentabilidade dos bancos naquele ano. Levantamento feito pela consultora Austin Asis junto a 19 instituições financeiras indicou que a rentabilidade média sobre o patrimônio líquido aumentou de 8,5% em 1995 para 21,4% em 1996. Enquanto a economia real submergia em dificuldades e o povo sumia na miséria, os bancos festejavam seus gordos lucros.


A inadimplência também corria solta. O Boletim do Banco Central divulgou que o atraso de pagamentos nos financiamentos bancários triplicou no período do Real: atingiu a cifra de R$ 44.32 bilhões em agosto de 1996 contra R$ 9.76 bilhões em julho de 1994. No Banco do Brasil, a inadimplência das pessoas físicas atingira 25% das operações, índice semelhante ao das operações de financiamento da casa própria da CEF. A inadimplência no comércio era também generalizada: os títulos protestados em 1995 e 1996 haviam atingido cifras recordes (na base de 8 milhões por ano). As ações de despejo por falta de pagamento de aluguel na capital paulista, que estiveram na média anual de 1.600 no período de 1993 a 1994, subiram para mais de 4.000 em 1996.