quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O início da Era Vargas segundo Stefan Zweig

“Brasil, País do Futuro” é um livro, fundamentalmente, sobre as transformações que ocorriam em nosso país a partir da Revolução de 30. Como tal, tornou-se um livro detestado por todos os mentalmente dependentes de metrópoles externas. No entanto, é o melhor livro até hoje já escrito sobre o Brasil por um autor que não nasceu aqui - não fosse este Stefan Zweig.
Em sua época, Zweig foi a síntese das melhores virtudes do humanismo europeu. Quando Sigmund Freud faleceu, exilado em Londres após a ocupação da Áustria pelos nazistas, houve apenas dois discursos em seu funeral: um deles em nome dos psicanalistas, de Ernest Jones; o outro, em nome da intelectualidade europeia, de Stefan Zweig.
Ele foi, como ressaltou Afrânio Peixoto em 1941, no prefácio à primeira edição brasileira do livro de Zweig sobre o Brasil, o escritor mais lido do mundo entre as duas guerras mundiais – e, além das biografias que escreveu, suas novelas (“Amok”, “Carta de uma desconhecida”, “Xadrez”) e seu único romance, “Êxtase da Transformação”, publicado muito depois de sua morte, estão entre as obras-primas de um período especialmente rico da história da literatura.
O texto que publicamos hoje é condensação de uma parte de “Brasil, país do futuro”. Usamos a conhecida e excelente tradução de Odilon Galotti – apenas reorganizamos os parágrafos para melhor leitura em jornal e suprimimos alguns trechos por razões de espaço.
Trata-se de um país diferente do nosso – e, no entanto, é, essencialmente, o nosso, em plena transformação impulsionada pelo primeiro governo do presidente Getúlio Vargas.
Zweig esteve no Brasil, pela primeira vez, em 1936. Como ele mesmo conta: “Eu tinha, sobre o Brasil, a ideia pretensiosa que, sobre ele, tem o europeu e o norte-americano (…). E com surpreendente velocidade desvaneceu-se a presunção europeia que muito superfluamente trouxera como bagagem. Percebi que havia lançado um olhar para o futuro do mundo”.
Nessa época, ele já era um dos homens mais odiados pelos nazistas. Como Freud e Einstein, Zweig era daqueles cidadãos de origem judaica que, ao contrário dos sionistas, recusaram viver num gueto e se integraram ao que havia de melhor na cultura europeia, o que ele expressou sinteticamente: “Meu pai e minha mãe eram judeus por um acidente de nascimento”.
É interessante, portanto, uma observação desse irredutível antinazista sobre o Estado Novo:
“... hoje, que o Governo é considerado como ditadura, há aqui mais liberdade e mais satisfação individual do que na maior parte dos nossos países europeus. Por isso na existência do Brasil, cuja vontade está dirigida unicamente para um desenvolvimento pacífico, repousa uma das nossas melhores esperanças de uma futura civilização e pacificação do nosso mundo devastado pelo ódio e pela loucura. Mas onde se acham em ação forças morais, é nosso dever fortalecermos essa vontade. Onde na nossa época de perturbação ainda vemos esperança de um futuro novo em novas zonas, é nosso dever indicarmos esse país, essas possibilidades”.
Zweig e sua esposa, Charlotte, que escolheram o Brasil como sua residência em 1941, infelizmente, não tiveram forças para chegar até a derrota do nazismo. No bilhete de despedida, Zweig escreveu:
“Antes de deixar a vida, de livre vontade e juízo perfeito, uma última obrigação se me impõe: agradecer do mais íntimo a este maravilhoso país, o Brasil, que propiciou a mim e à minha obra tão boa e hospitaleira guarida. A cada dia fui aprendendo a amar mais e mais este país, e em nenhum outro lugar eu poderia ter reconstruído por completo a minha vida, justo quando o mundo de minha própria língua se acabou para mim e meu lar espiritual, a Europa, se auto-aniquila. Mas depois dos sessenta anos precisa-se de forças descomunais para começar tudo de novo. E as minhas se exauriram nestes longos anos de errância sem pátria. Assim, achei melhor encerrar, no devido tempo e de cabeça erguida, uma vida que sempre teve no trabalho intelectual a mais pura alegria, e na liberdade pessoal, o bem mais precioso sobre a terra. Saúdo a todos os meus amigos! Que ainda possam ver a aurora após a longa noite! Eu, demasiado impaciente, vou-me embora antes. Stefan Zweig. Petrópolis, 22. II. 1942”.


C.L.

STEFAN ZWEIG

Também no século vinte cumpre-se outra vez a lei, por assim dizer, peculiar deste país, a saber, o Brasil necessita sempre de crises para conduzir sua economia a uma transformação enérgica. Dessa vez, são, para sua felicidade, não mais crises no próprio país e sim as duas catástrofes de além mar, as duas guerras europeias, que dão impulso à sua estratificação econômica. A primeira grande guerra mostra ao Brasil o perigo de haver ele concentrado de modo decisivo quase toda a sua produção para exportação num único produto e não ter desenvolvido suas indústrias. A exportação do café cessa, com isso é ligada subitamente a artéria principal e Estados inteiros já não sabem para onde mandar seus produtos; doutra parte, muitos produtos manufaturados de necessidade quotidiana, em vista da insegurança dos mares e do encarecimento motivado pela guerra, já não são importados. A balança comercial inteira, porque está montada sobre a compra de bilhões de grãos de café brasileiro com demasiada unilateralidade, com demasiada despreocupação e sem se dar atenção ao equilíbrio interior, começa a oscilar perigosamente, e isso obriga o Brasil a modificar-se e a voltar-se para, ao menos, algumas indústrias.
Esse impulso, uma vez iniciado, mostra-se vigoroso; durante todos esses últimos anos em que a infeliz Europa está constantemente tolhida por medo de guerra e preparativos de guerra, um grande número de artigos de indústria mecânica ou manual, que antes eram importados da Europa, são fabricados no país, e prepara-se certa autarquia. Quem, após alguns anos de ausência, volta ao Brasil, fica surpreso de ver quantos artigos estrangeiros já foram substituídos por nacionais e de como o país, nas medidas de organização, em tão curto prazo soube também tornar-se independente de instrutores e diretores estrangeiros. Graças a esse preparo, a segunda grande guerra já não feriu tão de cheio a economia do Brasil quanto a primeira. Também desta vez foi inevitável uma queda do preço do café e de muitos outros produtos agrícolas, mas a recente baixa do preço do café não arruinou São Paulo como outrora o fez a cessação do ouro com as cidades de Minas Gerais e a catástrofe da borracha com a Amazônia. Já a indústria brasileira aprendera a sabedoria do velho provérbio inglês, segundo o qual não devem carregar-se todos os ovos num só cesto, e já se colocara sobre uma base mais firme do que a que é constituída por um único artigo de monopólio ou artigo central sujeito a todas as oscilações do mercado mundial.
Manteve-se o equilíbrio, porque o prejuízo numa linha pode ser compensado pelo desenvolvimento nitidamente crescente da indústria, que produz, em proporções cada vez maiores, no próprio país e com material seu, grande parte do que anteriormente este tinha que importar da Alemanha e dos outros países que agora estão bloqueados.
É sempre perigoso lançar do presente um olhar para o futuro. Com seus cinquenta milhões de habitantes, seu imenso território e uma das mais grandiosas atividades colonizadoras da Humanidade, o Brasil está hoje apenas ainda no começo de seu desenvolvimento. As dificuldades que se opõem a seu desenvolvimento definitivo, ainda absolutamente não estão vencidas, e, apesar de intenso trabalho, algumas delas ainda são consideráveis. A fim de poder avaliar bem esse trabalho realizado durante séculos, exige a justiça que também se considerem os obstáculos que a ele se opuseram e continuam a opor-se; não há melhor índice da força de vontade de uma pessoa, bem como da de um povo, do que as dificuldades que num trabalho físico ou moral têm que ser vencidas.
Das duas dificuldades principais que têm impedido o Brasil de empregar a totalidade de suas energias potenciais, uma é patente, ao passo que a outra a princípio se oculta ao olhar superficial. O perigo oculto e perverso para a completa manifestação de suas energias está no estado de saúde da população, o qual nem é silenciado nem menosprezado pelo Governo. O Brasil, este país pacífico, tem dentro de si alguns inimigos encarniçados que anualmente lhe roubam ou debilitam tantos habitantes quanto o faz uma campanha num país em guerra. Tem que lutar constantemente contra bilhões de seres diminutos e apenas visíveis, contra micróbios, mosquitos e outros perversos causadores e veiculadores de doenças.
Todas essas doenças, mesmo que não tenham necessariamente êxito letal, causam uma enorme diminuição da capacidade de produção. Principalmente no norte, essa capacidade, já diminuída pelo clima, é, em grande parte, muito inferior à europeia e à norte-americana, e, se a estatística dá para o Brasil quarenta a cinquenta milhões de habitantes, a atividade produtiva desse número de pessoas absolutamente não corresponde à de um mesmo número de norte-americanos, japoneses ou europeus, a qual se realiza com uma quota muito mais elevada de indivíduos hígidos e em melhores condições climáticas. Um número espantosamente grande de pessoas continua a não cooperar aqui na vida econômica nem como produtor, nem como consumidor; segundo a estatística, o número de pessoas sem ocupação ou sem determinada ocupação orça por 25 milhões (Simonsen: “Níveis de vida e a economia nacional”). Incorporar essa massa inatingível de gente das florestas do Amazonas e do interior dos Estados marginais, tanto no ponto de vista da economia como no da saúde, na vida nacional, é um dos maiores problemas de que hoje o Governo já muito se ocupa e que, para sua solução definitiva, ainda exigirá decênios.
O homem, considerado como energia produtiva, pois, absolutamente ainda não está aproveitado no Brasil e tão pouco o está o solo com todas as suas riquezas que se acham na sua superfície ou abaixo dela. Nesse caso a dificuldade é patente e não está oculta como no caso das doenças que causam obstáculos à economia nacional. Ela é determinada pela desproporção que ainda continua existir entre a área, o número de habitantes e os meios de transporte. Não devemos deixar ofuscar-nos pela organização modelar e pela civilização moderna do Rio ou de São Paulo, onde são sem conta os arranha-céus e há dezenas de milhares de automóveis. A duas horas de viagem da costa, às modelares estradas asfaltadas se seguem estradas bastante más que, após um dos tão frequentes aguaceiros tropicais, por alguns dias se tornam intransitáveis ou quase intransitáveis para veículos, e começa o sertão, a zona que ainda não está verdadeiramente civilizada. Toda viagem para direita ou para esquerda da estrada principal torna-se uma aventura. As estradas de ferro não penetram suficientemente o território e com suas três bitolas diferentes são mal ligadas entre si; além disso, são tão lentas e tão pouco práticas que do Rio se vai tanto a Porto Alegre como à Bahia ou a Belém mais depressa de navio do que por essas estradas de ferro. Os grandes rios como o São Francisco e o Rio Doce são rara e insuficientemente navegados, e em consequência disso grandes e importantes partes do país, desde que não haja o recurso do avião, verdadeiramente só podem ser atingidas por expedições individuais.
Esse gigante, pois, continua a sofrer de uma constante perturbação circulatória: o sangue não percorre uniformemente todo o seu organismo, e partes importantes dele são inteiramente aplásicas. Por isso os mais preciosos produtos jazem mudos e ainda inaproveitados no subsolo. Sabem-se hoje exatamente os lugares onde eles existem, mas de nada valerá extraí-los enquanto não houver a possibilidade de os transportar. Onde há ferro, falta a estrada de ferro ou o navio a fim de transportar carvão para ali; onde a criação de gado poderia prosperar abundante e facilmente, falta a possibilidade de transporte para o gado. É um verdadeiro círculo vicioso. A produção não pode desenvolver-se com a conveniente velocidade, porque faltam estradas, e estradas, por sua vez, não podem ser rapidamente construídas, porque à sua dispendiosa construção e conservação no solo acidentado e pouco povoado ainda não corresponderia um tráfego lucrativo, compensador. Acresce ainda a singular fatalidade de que para o novo meio de transporte, o automóvel, o Brasil do século vinte não possui em seu solo o combustível, o petróleo, como não possuía no século dezenove o carvão, e todo o combustível para automóvel, desde que não seja o álcool, tem que ser importado.
Mas, se as dificuldades são grandes – elas o foram desde o primeiro dia e continuaram verdadeiramente a ser as mesmas – mil vezes ainda maiores são as possibilidades desta poderosa e abençoada parte do globo terrestre. Precisamente porque a capacidade das energias potenciais aqui, absolutamente ainda não está aproveitada, representa ela uma imensa reserva não só para este país, mas também para a Humanidade inteira. Contra as circunstâncias que retardam o seu desenvolvimento, um verdadeiro taumaturgo se pôs ao lado do Brasil para o auxiliar, a ciência moderna, a técnica moderna. Sabemos o que ela já pode fazer, mas não podemos prever o que ainda poderá fazer.
Já hoje quem, passados alguns anos, volta a este país, fica constantemente surpreso de ver que coisas admiráveis ele fez no ponto de vista da centralização, da autonomia e do saneamento do país. A sífilis, que aqui era uma doença hereditária e da qual se falava com a mesma naturalidade com que se fala de um defluxo, está quase exterminada, graças à descoberta de Ehrlich, e não há dúvida de que a higiene em prazo não longo irá reduzir muito a frequência das outras doenças. Assim como o Rio de Janeiro, há alguns decênios, o mais temido foco de febre amarela, hoje, no ponto de vista sanitário, é uma das mais seguras cidades do mundo, é de esperar que a ciência saiba libertar o norte, tão insalubre, de seus miasmas e flagelos, e fazer entrar para a vida ativa e produtiva a parte da população ameaçada em sua energia de trabalho por febres e subalimentação.
Ao passo que há cinco anos se gastavam dezesseis horas para ir do Rio a Belo Horizonte, hoje em avião se faz essa viagem em hora e meia; em dois dias se pode ir do Rio a Manaus, no coração das florestas do Amazonas, para o que antigamente, eram precisos vinte dias; em meio dia se vai à Argentina, em dois dias e meio aos Estados Unidos, em dois dias à Europa, e todos esses números só valem para hoje; amanhã o progresso da aeronáutica tê-los-á reduzido à metade. O vencer as enormes distâncias do seu gigantesco território, essa magna dificuldade do problema econômico do Brasil, já está propriamente resolvido no ponto de vista teórico e em via de resolução no ponto de vista prático. Quem sabe se também a dificuldade dos transportes já não estará vencida em curto prazo por uma nova espécie de aeronaves e outras invenções para os quais hoje a nossa imaginação se mostra demasiado pobre e medrosa?
Também o outro obstáculo, aparentemente invencível, o da insuficiente capacidade de trabalho no clima tropical, que diminui a energia individual e ameaça o vigor do corpo, começa a ser atacado energicamente pela técnica. O que hoje ainda só é permitido a poucos locais de luxo, a refrigeração das residências e dos escritórios, daqui a alguns anos estará tão generalizado e será coisa tão trivial neste país como nas zonas frias o aquecimento central. Quem vê o que aqui já se fez e ao mesmo tempo sabe o que ainda está por fazer, tem certeza de que o vencerem-se todas as dificuldades é apenas uma questão de tempo. Mas cumpre não esquecer que o tempo mesmo já não é um padrão uniforme, que ele se acelerou pelo impulso da máquina e pela inteligência humana. Um ano na era atual, de Getúlio Vargas, pode produzir mais do que pode fazê-lo um decênio no tempo de D. Pedro II, ou um século no tempo de D. João VI. Quem hoje vê a rapidez com que crescem as cidades, melhora a organização e se transformam as energias potenciais em efetivas, sente que – em completo contraste com o que se dava anteriormente – a hora tem aqui mais minutos do que na Europa. De qualquer janela que se olhe vê-se por toda parte uma casa em construção, em toda rua e longe no horizonte veem-se novas moradas, e, ainda mais do que tudo isso, o espírito e o prazer do empreendimento cresceram aqui.
A todas as energias do Brasil ainda não aproveitadas e desconhecidas juntou-se nos últimos anos uma nova: a consciência do próprio valor. Durante muito tempo este país se habituou a ficar atrás da Europa, na civilização e no progresso, na velocidade do trabalho e na produção. Humilde, erguera o olhar com uma espécie de consciência colonial para o mundo além do Atlântico como para um mundo mais experiente, mais sábio e melhor. Mas a cegueira da Europa, que em insensatos nacionalismos agora se devasta a si própria pela segunda vez, fez com que a nova geração aqui se tornasse independente. Foi-se o tempo em que Gobineau [N. HP: Gobineau, propagandista do racismo, foi representante do governo francês no Brasil do século XIX] podia zombeteiramente escrever: “Le brésilien est un homme qui désire passionnément habiter Paris” [“O brasileiro é um homem que deseja apaixonadamente morar em Paris”].
Já não se encontra um brasileiro e raramente se encontra um imigrante que deseje voltar para o Velho Mundo, e essa ambição de se desenvolver por si só e de acordo com a época revela-se por um otimismo e um ousado espírito empreendedor inteiramente novos – O Brasil aprendeu a pensar de acordo com as dimensões do porvir. Quando constrói um ministério, como agora o Ministério do Trabalho e o da Guerra, o constrói maior do que os de Paris, de Londres ou de Berlim. Quando se planeja uma cidade, conta-se desde logo com o quíntuplo, o décuplo da população. Nada é demasiado ousado, nada demasiado novo para fazer com que essa vontade nova não se atreva a realizá-lo. Após longos anos de incerteza e de modéstia, este país aprendeu a pensar de acordo com as dimensões de sua própria vastidão e a contar com suas possibilidades ilimitadas como se elas fossem uma realidade em breve atingível. O Brasil reconheceu que espaço é força e gera forças, que não são o ouro nem o capital poupado que constituem a riqueza dum país, mas sim o solo e o trabalho que neste é realizado. Mas que país possui mais solo não utilizado, inabitado e não aproveitado do que este, cujo território é tão grande como todo o Velho Mundo? E espaço não é simples matéria, espaço é também força psíquica. Alarga a visão e dilata a alma, dá ao homem que o habita e que ele circunda, coragem e confiança para que ouse avançar; onde há espaço há não só tempo, mas também futuro. E quem vive neste país, ouve o sussurro forte das asas céleres do futuro.