quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A pilhagem e falência dos bancos da “zona do euro”

O importante, no artigo de Mike Whitney que hoje publicamos, é o retrato da situação dos bancos europeus. Essa situação, como mostra o autor, é tão ruim que a recém-eleita diretora geral do FMI, uma advogada francesa de bancos norte-americanos, propõe acabar com a soberania dos países da União Europeia e instalar uma ditadura “supranacional”, isto é, uma ditadura dos bancos que impeça os países de lidar, mesmo que minimamente, com suas próprias finanças. Nesse sentido, o artigo de Whitney, publicado em Counterpunch no último dia 5, e intitulado originalmente “The Coming of EuroTARP”, é bastante esclarecedor.

No entanto, dificilmente o problema atual na Europa poderia ser descrito como uma “crise das dívidas soberanas” (a dívida soberana é composta pelos títulos públicos + títulos avalizados pelos governos), exceto em seu aspecto mais superficial. Não foi por fazer “más apostas” em títulos da Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália que os bancos europeus estão em situação falimentar, mas por ter, durante anos a fio, secundado os bancos norte-americanos no cassino dos “derivativos”. O atual problema com papéis de alguns países é uma sequela – ainda que nada pequena - deste primeiro e verdadeiro problema. Isso, inclusive, explica a ansiedade de Madame Lagarde, e sua desinibição americanófila ao propor uma ditadura por cima dos países da UE, tantos anos depois do fim da ocupação nazista. Não são apenas os bancos europeus que serão, ou estão sendo, afetados.

Os bancos europeus, segundo a Bloomberg News, desde o início da crise, já tiveram três bailouts, isto é, injeções de dinheiro público, sobretudo sob a forma de compra de títulos pelo Banco Central Europeu. No entanto, nada resolveu o problema – existem, circulando, mais de US$ 600 trilhões em “derivativos”. Esses papéis que representam outros papéis, são jogados em pacotes, diariamente, via “mercado futuro” e outros mecanismos, pelos bancos norte-americanos. Um dos “patos” favoritos desses últimos, sempre foram os bancos europeus e japoneses, que procuravam fazer em sua área o que os americanos faziam na sua. No entanto, trata-se de sócios menores do capital financeiro.

Certamente, os sucessivos bailouts acabaram por criar um problema imenso para os países – não se doa tanto dinheiro público, sobretudo quando não se fabrica a principal moeda, o dólar, sem tremendas consequências. Inclusive uma parte grande dos “títulos soberanos” são títulos de bancos que foram avalizados por governos.

A confusão na Alemanha, em torno de uma nova injeção de dinheiro público nos bancos, e a crise do euro são consequências. E, certamente, os países que dominam a UE – basicamente a Alemanha e a França – querem que os países menores, ou menos poderosos financeiramente, paguem a irresponsabilidade dos seus bancos.

No entanto, isso tem um limite. E parece que está próxima, por exaustão, a suspensão dos pagamentos da Grécia, apesar de todas as concessões – mais exatamente, de toda a submissão – de seu governo.

C.L.


MIKE WHITNEY

O Bundestag terá uma oportunidade de impedir o plano de Angela Merkel de fornecer centenas de bilhões aos afundados bancos da União Europeia que fizeram más apostas em títulos soberanos. Se o parlamento alemão não derrotar Merkel no dia 23 de Setembro, então – sob os “poderes expandidos” do European Financial Security Facility (EFSF - fundo da UE supostamente para ajuda aos países em crise) – os bancos insolventes terão seu bailout e os custos serão transferidos para os contribuintes da zona do euro.

Apesar da sua fanfarrice populista (“nós não seremos intimidados pelos mercados”), Merkel é uma devota eurófila, comprometida com uma união fiscal dominada por banqueiros e possuidores de títulos, uma Bankditadura. No momento, está fazendo tudo o que pode para apressar o processo, antes que vigilantes hostis dos títulos façam desabar o sistema bancário da UE. Isto foi publicado pela revista Der Spiegel:

“Numa situação de pânico no mercado, o EFSF tem de atuar rapidamente”, disse Holger Schmieding, economista chefe do Berenberg Bank, ao Financial Times Deutschland. “Pode acontecer da noite para o dia ou num fim de semana”. Guntram Wolff, do think tank Bruegal, com sede em Bruxelas, concorda. A aprovação parlamentar “não deve levar demasiado tempo”. (“Parliamentary Influence over Euro Bailouts Naive”, Der Spiegel, 01/09/2011).

Não soa familiar? O secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, utilizou a mesma estratégia após o colapso do Lehman Brothers, em 2008, com o objetivo de chantagear o Congresso para extrair US$ 800 bilhões para o bailout dos bancos (TARP). Mais uma vez, o medo de um colapso financeiro está sendo invocado para extorquir dinheiro de modo sorrateiro dos que trabalham. Eis um trecho de outro artigo da Der Spiegel:

“Os bancos estão realmente numa situação ruim. A maior parte deles ainda tem um bocado de títulos soberanos espanhóis, italianos, portugueses e irlandeses nas suas folhas de balanço e não está totalmente claro se acabarão sendo plenamente reembolsados. Isso, por sua vez, alimenta a desconfiança entre as próprias instituições financeiras e muitas cessaram de emprestar dinheiro umas às outras. Elas estão sendo mantidas vivas apenas porque o Banco Central Europeu (BCE) está disponibilizando um montante ilimitado de dinheiro para elas, aceitando como garantia títulos que muitos investidores já não consideram seguros.

“Uma melhor capitalização para os bancos poderia minorar essa desconfiança, porque uma situação mais líquida significa que os bancos poderiam absorver melhor as perdas dos seus negócios com a dívida soberana. Aquelas instituições que não são suficientemente fortes para levantarem por si mesmas dinheiro no mercado, teriam de ser ajudadas com dinheiro público. Dificilmente haverá uma instituição mais adequada para essa tarefa do que o EFSF”. (“The Euro Rescue Fund Needs More Powers”, Der Spiegel, 31/08/2011).

Esse trecho do artigo está errado em muitos aspectos - é difícil saber por onde começar. O EFSF foi estabelecido para impedir o default de nações, não de bancos. A ideia de que os especuladores com títulos podem ser comparados a governos eleitos é ridícula. Os bancos estão em dificuldades porque tomaram decisões más e agora devem enfrentar penosos cortes nas suas aplicações. Acionistas serão eliminados e as dívidas terão de ser reestruturadas. Não é o fim do mundo.

O que Merkel & companhia querem fazer é virar o sistema de pernas para o ar e transformar o EFSF numa SPE (Sociedade de Propósito Específico) permanente, fora da folha de balanço, autorizada a distribuir dinheiro público para bancos falidos. E tudo para impedir seus amigos banqueiros de perder dinheiro. Assim, por trás de toda a conversa fiada sobre a “unidade fiscal” e “consolidação das finanças do estado”, espreita a feia verdade de que a zona do euro é um sistema de duas camadas, com uma arquitetura financeira idêntica à da Enron. Não há nada de democrático num sistema que premia elites perdulárias, enquanto joga os prejuízos para os trabalhadores pagarem. Isso é, exatamente, a velha cleptocracia.

A chanceler alemã está, em sua luta, junto com seus colegas no BCE e no FMI. De fato, a recém nomeada chefe do FMI, Christine Lagarde, lidera o movimento pelo Euro-TARP, o que pode explicar porque o seu processo de nomeação foi acelerado, depois de Dominique Strauss-Kahn ter renunciado enquanto aguardava investigação sobre acusações de estupro em Nova York.

Seja como for, madame Lagarde já mostrou que está mais do que desejosa de fazer qualquer trabalho duro que seja necessário para alcançar seus objetivos e para acomodar seus ricos eleitores. Eis como o The Guardian resumiu o curriculum de Lagarde: “Christine Lagarde apoia a proteção dos grandes bancos ... ela é a mais pró bailout bancário de todos”. (“IMF under growing pressure to appoint non-European head”, The Guardian, 19/05/2011)

É verdade. Assim, Lagarde lançou o seu peso em favor dos bailouts bancários, também conhecidos como recapitalização dos bancos. Ela também advoga fervorosamente “institucionalizar um governo econômico europeu”, o que significa que pretende estabelecer um regime controlado por banqueiros e possuidores de títulos, a Banktopia. Ao mesmo tempo, ela insiste em que esse novo corpo governante tenha poder para intervir no processo orçamentário dos Estados soberanos da zona do euro, com o objetivo de “manter nossos esforços para expandir o âmbito da vigilância econômica, de modo a incluir déficits governamentais e públicos, bem como a dívida do setor privado, se necessário pela imposição de ‘penalidades políticas’”.

Certo. ssim, esse novo governo trans-UE será capaz de exigir obediência a Estados errantes, que aprovam orçamentos que servem aos interesses do seu povo, ao invés dos interesses do grande capital. Enquanto isso, o Superestado UE de Lagarde continuará a impor as mesmas políticas que tem aplicado desde o princípio da crise financeira: privatização em grande escala de ativos e serviços do Estado e programas de aperto no cinto que mantenham a economia num estado de depressão permanente. Será esse o destino da zona do euro?

Tenhamos em mente que os bancos já estão obtendo bailout através do programa de compras de títulos do BCE, que mantém os preços dos títulos artificialmente altos e evita um default soberano. O fato de Lagarde fazer pressão agressivamente por injeções diretas de capital sugere que a condição dos bancos é muito pior do que qualquer um imaginou até aqui, razão pela qual – de acordo com o Wall Street Journal – “ela sugeriu que o fundo de salvamento soberano já existente na UE (EFSF) podia ser utilizado para essa finalidade”. Isto é um exemplo clássico de bait and switch [N.HP: fraude em que um comerciante anuncia um produto com preço baixo e, quando os consumidores vão comprá-lo, o produto não está disponível, e sim outro mais caro].

Os parlamentares alemães têm a chance de acabar com esse absurdo, de uma vez por todas. Ao impedir Merkel, o Bundestag pode assegurar que o povo trabalhador da zona do euro não será roubado em centenas de bilhões de dólares ou submetido ao domínio autocrático de especuladores parasitas. Deixem os bancos pagar as suas próprias contas.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

José Bonifácio, a Independência e sua luta contra a escravatura

No segundo tomo da sua História do Brasil, publicada em 1843, o general Abreu e Lima – ex-oficial de Bolívar que tivera sua patente militar reconhecida pelo Império e filho do padre Roma, líder da Revolução Pernambucana, fuzilado pelas tropas portuguesas em 1817 – descreve assim os motivos políticos imediatos da Independência:

“Por uma lei datada de 24 de abril de 1821, as Cortes de Lisboa declararam independentes do Rio de Janeiro todos os Governos Provinciais, e sujeitos tão somente aos Tribunais de Portugal. Por esta lei desorganizadora formou-se uma multidão de pequenos governos em todo o Brasil, que se negavam corresponder com o Príncipe Regente (…). Achou-se por esta forma D. Pedro reduzido a simples Governador do Rio de Janeiro, e de uma ou duas províncias do Sul, e cercado das maiores dificuldades pela diminuição das rendas públicas. Estas circunstâncias adversas, juntas ao espírito sedicioso da tropa portuguesa, fizeram com que D. Pedro escrevesse a seu Augusto Pai, no dia 21 de Setembro, nos termos mais expressivos, pintando-lhe o verdadeiro estado do país, e sua falsa posição” (Abreu e Lima, “Compêndio da História do Brasil”, Laemmert, Rio, 1843, Tomo II, cap. 7 – edição fac-similar da Biblioteca Digital do Senado; atualizamos a ortografia, mas não a pontuação, e mantivemos as maiúsculas).

Abreu e Lima reproduz a carta de D. Pedro a D. João VI, onde o príncipe, depois de descrever a catastrófica situação financeira do Brasil, pede demissão: “Peço a V. M. por tudo quanto há de mais sagrado, me queira dispensar deste Emprego, que seguramente mo matará pelos contínuos, e horrorosos painéis que tenho, uns já à vista, e outros muito piores para o futuro, os quais eu tenho sempre diante dos olhos”.

No entanto, “as Cortes de Lisboa continuavam em seu plano de sujeitar o Brasil à antiga dominação colonial”:

“Um Decreto de 29 de Setembro extinguiu os Tribunais da Chancelaria e do Tesouro, a Junta do Comércio, e várias outras repartições centrais, que se haviam estabelecido no Rio de Janeiro em tempo de D. João VI; e outro Decreto da mesma data ordenou o regresso do Príncipe com a injunção de previamente viajar incógnito pela Inglaterra, França e Espanha, para completar a sua educação política. A estes Decretos seguiu-se outro do 1º de Outubro, nomeando para cada Província um Governador das Armas, delegado do poder executivo de Lisboa; e a 18 do mesmo mês se decidiu, que embarcassem mais tropas para Pernambuco e Rio de Janeiro. É impossível conceber-se uma série de providências melhor adaptadas para frustrar todos os fins a que se destinavam. Então viram os brasileiros, que já não era possível esperar cousa alguma favorável de parte das Cortes de Lisboa, e que a sua sorte dependia deles mesmos; decidiram-se portanto pela independência”.

Observa Abreu e Lima que a ideia era de difícil execução porque “todas as cidades marítimas do Brasil estavam ocupadas pelas tropas portuguesas, as comunicações eram incertas e penosas”. No entanto, “a desaprovação da partida do Príncipe tornava-se mais e mais geral: os portugueses julgando que a sua ausência traria prontamente a independência, e os brasileiros porque supunham que só a sua cooperação podia evitar uma contenda sanguinolenta e duvidosa”.

O general e historiador pernambucano, mais próximo aos acontecimentos do que nós, relata como a ruptura veio de fora do Rio de Janeiro:

“Na Cidade de S. Paulo, onde os patriotas eram em maior número do que na capital, as cousas levavam caminho mais pronto e seguro. José Bonifácio de Andrada e Silva, vice-presidente da Junta Provincial, informado da próxima retirada do Príncipe convocou às onze horas da noite (24 de dezembro) os seus colegas, e conseguiu que assinassem uma representação, em que francamente se fazia ver a Sua Alteza Real, que a sua partida seria o sinal da separação do Brasil”.

O documento também é reproduzido no livro. José Bonifácio conseguira unir o partido português e o partido brasileiro numa mesma solicitação: a representação, assinada na noite do Natal, apelava a D. Pedro para que ficasse no Brasil em nome da continuidade da união com Portugal, contrariando seu próprio pedido – apenas um mês antes do decreto das Cortes - ao rei.

Os fatos subsequentes, com o “fico” de D. Pedro a 9 de janeiro de 1822 e a sublevação do general Avilez, no Rio, são mais conhecidos. Porém, o mais decisivo aconteceu dias depois:

“Tendo chegado de S. Paulo o Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva como Orador da Deputação, que vinha pedir a S. A. R. demorasse a sua partida por motivos de recíproca conveniência para Portugal e para o Brasil, houve por bem o mesmo Príncipe nomeá-lo, com data de 16 de janeiro de 1822, Ministro dos Negócios do Reino e dos Estrangeiros. O primeiro cuidado do novo Ministro foi restabelecer a centralização das Províncias, que as Cortes haviam aniquilado, e que se tornava de primeira necessidade contra as agressões externas. Com estas vistas promulgou-se o Decreto de 16 de fevereiro, ordenando a convocação de um Conselho dos Procuradores das Províncias, cujos membros deveriam ser escolhidos na razão de um Conselheiro por cada uma, que tivesse dado quatro Deputados às Cortes. D. Pedro se declarou Presidente deste Conselho”.

Entretanto, “quatro províncias somente se reuniram nesta aliança: Rio de Janeiro, S. Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul” e duas outras estavam já em guerra com os portugueses: Pernambuco e Bahia.

Que José Bonifácio tenha levado a cabo a Revolução da Independência a partir destas condições políticas, diz quase tudo sobre a sua grandeza. Como ele mesmo dirá mais tarde, na “Ode aos Baianos”, escrita num momento difícil, exilado após seu conflito com D. Pedro I: “Amei a liberdade, e a independência/ Da doce cara pátria, a quem o Luso/ Oprimia sem dó, com riso e mofa —/ Eis o meu crime todo.”

Nesta página, publicamos hoje um trecho do ensaio que lhe dedicou Octávio Tarqüínio de Souza em “O Pensamento Vivo de José Bonifácio” (1945).

Nos anos 30, 40, 50 e 60 do século passado, Octávio Tarqüínio, talvez devido à sua bastante popular tradução de 1928 dos “Rubaiyat”, de Omar Khayyam, era um escritor e historiador bastante conhecido – assim como sua esposa, Lúcia Miguel Pereira, autora de excelentes biografias de Machado de Assis e Gonçalves Dias. Hoje, nem tanto - o que reflete, sobretudo, a tremenda estreiteza e monopolização do movimento editorial em nosso país. Não se trata de uma discriminação política (Octávio, pessoalmente, não era um campeão das causas progressistas), mas uma discriminação ao que é nacional. No entanto, sua “História dos Fundadores do Império do Brasil”, em 10 volumes, permanece como fonte imprescindível para quem se interesse por esse período da vida de nosso país.

C.L.


OCTÁVIO TARQÜÍNIO DE SOUZA


Homem de ciência, mineralogista, químico, botânico; homem público, estadista, administrador; parlamentar; homem de letras, poeta, pensador, crítico — José Bonifácio não escreveu uma obra coerente, dessas de que é possível, sem maior esforço, extrair e destacar o essencial. O que deixou – sem falar, é claro, nos seus trabalhos especializados de cientista, nas suas pesquisas e descobertas mineralógicas – são antes esboços, anotações, projetos. E a explicação está em que, além de certa feição pessoal de temperamento inquieto, as circunstâncias que lhe cercaram a vida não favoreceram a realização da obra que pretendeu escrever. Mas nesses elementos esparsos, disjecti membra, logo se adivinha o pensamento mais alto e mais lúcido dentre os brasileiros do seu tempo. [NOTA DO HP: o poeta latino Horácio chamou “disjecti membra poetae” (“membros dispersos do poeta”) à dificuldade de transformar trechos numa obra coerente].

Tendo nascido em 1763 e morrido em 1838, José Bonifácio dividiu quase igualmente os anos de sua vida entre os séculos XVIII e XIX, em plena mocidade no primeiro para receber-lhe mais vivamente as influências, já com o espírito amadurecido no segundo para tomar uma posição antes de crítica e de julgamento.

As leituras dos dias de moço – Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Descartes, Locke, Leibnitz e muitos outros, citados desordenadamente em escritos seus dessa época – feitas com o deslumbramento das grandes descobertas, deixaram-lhe vestígios perduráveis; o amor da natureza, a crença na racionalidade de suas leis, a noção dos direitos naturais derivados de necessidades próprias da condição humana; o que não o impediu de adotar uma atitude cética no tocante à bondade natural do homem, e de repetir o dualismo rousseauniano – natureza e cultura.

As investigações de ordem experimental e científica a que se entregou durante largo período apuraram-lhe o senso objetivo. O pensamento de Fedro – Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria [se não for útil o que fizermos, a glória será vã], que usou como epígrafe de algumas memórias apresentadas à Academia das Ciências de Lisboa, foi o verdadeiro lema de sua vida, denunciando-lhe a conformação do espírito, levado menos pela curiosidade especulativa do que pela importância prática de problemas e fatos. Conformação de espírito que a educação apurou, pois, nele, o mineralogista eminente, capaz de caracterizar várias espécies minerais, novas, confundia-se com o trabalhador, com o operário: no estágio que fez em Freiberg “assentou praça de mineiro”.

De volta de uma longa excursão científica de dez anos por quase toda a Europa, cumulado de funções públicas em Portugal, tentou muito mais a José Bonifácio o desempenho de cargos, como o de Intendente Geral das Minas e Metais, em que poderia por a funcionar jazidas e empreender a exploração de novas, do que o de professor de Metalurgia da Universidade de Coimbra, confinado em estudos teóricos.

Sentia-se homem de ação, queria dedicar-se à atividade prática. Nessa tendência tão marcada em sua natureza, o estudioso da vida e das obras de José Bonifácio encontrará muitas vezes o segredo de certas atitudes políticas. Apreciando-o sob essa face, um dos nossos mais honestos historiadores de ideias, que debaixo de outros aspectos lhe fez muita justiça, concedendo-lhe até o tratamento de grande homem, desfigurou-o enormemente neste injusto conceito: “na política impressionou-se também mais pelo lado meramente exterior dos acontecimentos”.

A demonstração do contrário, isto é, de que José Bonifácio considerou menos o aspecto externo dos fatos do que a sua significação íntima e profunda, ressalta do exame mais demorado da participação que teve nos sucessos políticos entre 1821 e 1833 e da leitura de trabalhos – a representação à Assembléia Constituinte sobre a escravatura, os apontamentos para a civilização dos índios, o manifesto de 6 de agosto de 1822 às nações amigas.

Bastante diferente de muitos dos seus contemporâneos, não se ateve a exterioridades, não se subordinou a figurinos políticos, não se deixou enlear por palavras. Daí o seu esforço para incutir em D. Pedro a noção do papel que devia representar, as suas ideias em favor de um governo que tivesse autoridade e não se reduzisse a simples sombra de poder, o seu monarquismo ortopédico para consolidar a unidade do Brasil, os conflitos e choques com os patriotas do Rio – Gonçalves Ledo, José Clemente, Januário – estes, sim, muito mais impressionados com o lado exterior dos sucessos, com os pregões do liberalismo europeu, com a moda, a forma, a estética das coisas políticas.

Tão pouco adstrito, em política, ao lado exterior dos acontecimentos, foi José Bonifácio que, tendo plantado, como asseverou, a monarquia no Brasil, não se moveu senão por considerações práticas, de oportunidade, imediatistas, e, diante do monarca, em meio de uma corte improvisada, continuou apenas um cidadão, uma figura tão humana na simplicidade de sua vida – recusando, quase como quem repele uma alcunha deprimente, o título de marquês, e rejeitando a grã-cruz da ordem do Cruzeiro como quem teme o ridículo de possuí-la, quanto mais de ostentá-la.

A prova de que José Bonifácio não se contentava em política com o lado meramente exterior dos sucessos está na posição singular em que se colocou comparadamente com a de seus contemporâneos. Chegando ao Brasil depois de trinta e seis anos de ausência, veio encontrar a antiga colônia elevada à categoria de reino, sede da monarquia portuguesa e possuindo já todo o aparelhamento dos serviços públicos indispensáveis – secretarias, tribunais, repartições, estabelecimentos de ensino. Era a fachada de um novo Estado que se construíra, uma vida nova que se desenvolvera ao impulso das medidas de ordem econômica tomadas por D. João – a abertura dos portos brasileiros ao comércio universal, a revogação do alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibira indústria no Brasil, etc. Não tardou, com as repercussões da revolução do Porto de 1820, a erupção entre nós de um movimento emancipador e separatista, que culminou na proclamação de 7 de setembro de 1822. As ideias liberais em voga animaram esse movimento. A liberdade, todas as liberdades foram decantadas. D. Pedro declarava aos mineiros: “vós amais a liberdade, eu adoro-a”. Os mais ardentes patriotas clamavam por uma Constituição que haveria de conter, sem faltar um só, todos os direitos do homem, numa edição, se possível, correta e aumentada. Para os revolucionários mais sinceros isso era o suficiente. Tivesse o Brasil uma Constituição liberal, e tudo estaria resolvido. José Bonifácio, incontestavelmente homem de seu tempo, detestava o despotismo, queria também uma Constituição para o seu país. Mas não achava que só isso fosse necessário, nem acreditava que assim se resolvessem os problemas brasileiros. Estava de acordo com que se estabelecesse um governo democrático, garantias constitucionais, sistema representativo. Não lhe bastava, entretanto, a organização política copiada do melhor modelo inglês, francês ou norte-americano: via a necessidade de uma reforma de estrutura, de um novo regime de propriedade de trabalho, de profundas alterações de natureza social e econômica. E enquanto todos ou quase todos os dirigentes do momento, em verdade impressionados de preferência pelo lado meramente exterior dos acontecimentos, julgavam possível, viável, natural a criação de um Império constitucional, sem adotar nenhuma medida quanto à escravidão, José Bonifácio para logo se convenceu que essa era a grande questão a enfrentar.

Ideias que esposara ainda quando estudante em Coimbra e que à contemplação do espetáculo da sociedade brasileira, por ocasião da volta à pátria, mais se tinham fortalecido. Ideias que eram suas e de seus irmãos, e que lhes compensam erros e desvarios porventura cometidos. Antes da representação à Assembleia Constituinte, José Bonifácio, mal chegado ao Brasil, na viagem mineralógica de pouco mais de cinco semanas que fez pelo território de São Paulo, em companhia de Martim Francisco, nos começos de 1820, tivera ensejo de tomar contato com as misérias da sociedade escravocrata. Em Itu preparava-se uma expedição para ir comprar índios Caiapós nas margens do Paraná, e os dois mineralogistas itinerantes não contiveram a sua repulsa: “a sorte daqueles índios, assim como a dos Guarapuavas, no distrito de Curitiba, merece toda a nossa atenção, para que não ajuntemos ao tráfico vergonhoso e desumano dos desgraçados filhos da África, o ainda mais horrível dos infelizes índios de quem usurpamos as terras...”. Aliás, Martim Francisco, na memória de outra viagem científica feita em 1803, escrita provavelmente logo depois, admirava-se dos castigos e maus tratos infligidos pelos senhores à “desgraçada raça africana”, e concluía: “não basta a injustiça de um tráfico tão vergonhoso para a humanidade, ainda aumentamos nossos crimes pagando tão mal os seus serviços: mas a natureza, que nada deixa sem recompensa, em prêmio de nossos furores... faz grassar em nosso país moléstias endêmicas na África e deteriora nossos costumes pela comunicação com eles, pois no seio da escravidão só podem germinar enxames de vícios e baixezas”.

Seria um estudo interessante o que examinasse mais particularmente a posição dos Andradas da Independência em face da escravidão – o que fizeram ou tentaram fazer – e as consequências que sofreram em sua vida e carreira política por terem assumido essa posição. Joaquim Nabuco, que sugeriu o tema (O Abolicionismo, p. 56-nota), em relação apenas a José Bonifácio, adianta que talvez quem empreender o estudo venha a descobrir que as ideias conhecidas do estadista que “planejou e realizou a Independência” explicam em boa parte o ostracismo a que se viu condenado.

Seja como for, a verdade é que, não se cingindo ao lado exterior dos acontecimentos, mas fazendo obra de reformador social, José Bonifácio pretendeu acabar com o tráfico africano e com a escravidão, ao iniciar o Brasil a sua existência de nação independente. “Como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos” - perguntava ele aos deputados reunidos na Assembleia Constituinte. E dava ao seu apelo a ênfase de um moralista: “comecemos pois, desde já, esta obra pela expiação de nossos crimes e pecados velhos”. Dos negros que chegavam aos nossos portos abafados nos porões dos navios e “mais apinhados que fardos de fazenda”, o mais ilustre dos Andradas se sentia cristãmente irmão, vendo neles seus semelhantes: “se os negros são homens como nós e não formam espécie de brutos animais, se sentem e pensam como nós...”. Mas não o inspiravam apenas sentimentos generosos no combate que sustentava contra a escravidão: razões de estadista, de sociólogo, de economista o amparavam, e todas se conjugam nessa representação em que, num estilo muitas vezes defeituoso, desigual, de gosto incerto, palpita uma nobre e quente vibração humana, um alto, um justo e equilibrado pensamento. Todos os males econômicos, sociais, políticos e morais do regime do trabalho servil, José Bonifácio expôs e condenou. Não souberam, melhor, não o quiseram ouvir os dirigentes da classe que dominava e continuaria a dominar o Brasil no século XIX – os senhores de engenho e fazendeiros empenhados na exploração dos seus latifúndios. O que lhes propunha a representação parecia-lhes prejudicial, louco, revolucionário. Mais encarniçado ainda do que eles em combater e inutilizar a ação do ministro da Independência, seriam os traficantes de escravos, todo um bando poderoso de ricos comerciantes portugueses, “negreiros” implacáveis na sua ganância.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A paranoia do superávit primário

O texto que publico hoje foi extraído de “A Armadilha da Dívida”, de Reinaldo Gonçalves e Valter Pomar, livro publicado em 2002 pela Fundação Perseu Abramo – e que pode ser encontrado na excelente Biblioteca Digital da instituição.

O tema desse trecho do livro é a economia no governo tucano de Fernando Henrique. No entanto, há nele coisas muito atuais, em especial a descrição que lhe dá título, “A paranoia do superávit primário”.

É verdade que, ao contrário das paranoias descritas nos livros de psiquiatria e nos tratados de psicopatologia, os acometidos desta não parecem demonstrar a terrível angústia dos verdadeiros paranoicos. Pelo contrário, demonstram
REINALDO GONÇALVES E VALTER POMAR

O governo FHC é responsável pelo mais grave ciclo de endividamento (interno e externo) da história da economia brasileira, ao mesmo tempo em que reduziu as taxas de crescimento e investimento.

Na verdade, a política econômica do governo federal premiou – por exemplo, por meio dos juros altos – aqueles capitalistas que aplicaram seus recursos na área financeira.

O extraordinário aumento da dívida interna a partir de 1995 implicou a absorção de recursos na área financeira que, de outra forma, poderiam ter tido aplicação na esfera produtiva.

É claro que, em qualquer época, os capitalistas sempre aplicam parte de seus recursos nos mercados financeiros. Uma característica da época atual, de hegemonia das políticas econômicas chamadas de neoliberais, é exatamente o predomínio da financeirização. O governo FHC “apenas” levou essas tendências ao paroxismo.

Durante o governo FHC, a economia brasileira teve taxas de juros absurdamente elevadas, das maiores do mundo.

Com taxas de juro real que excederam 12% ao ano, não é de estranhar que o Brasil tenha tido taxas de investimento medíocres (inferiores a 20%) a partir de 1995.

Empresas não-financeiras deixam de fazer investimentos produtivos para comprar títulos públicos. E assalariados cuja renda permite alguma sobra no final do mês deixam de fazer gastos de consumo para fazer aplicações financeiras lastreadas em títulos públicos.

Para financiar o pagamento destes títulos, o governo implantou um tremendo arrocho fiscal. O aumento da carga tributária bruta, que cresceu de 28,4% em 1995 para 31,7% em 1999, reduziu a renda pessoal disponível na economia.

A combinação, desde 1995, desse tipo de política monetária e fiscal resultou naquela taxa média anual de crescimento real de 2,4% no período 1995-2001, medíocre segundo qualquer padrão de referência, seja o desempenho histórico da economia brasileira, seja o desempenho da economia mundial.

No que diz respeito ao desempenho da economia mundial, vale destacar que ela cresceu a uma taxa média anual de 3,6% no período 1995-2001, enquanto a “locomotiva” norte-americana cresceu 3,7% anualmente (FMI, 2000).

Na prática, portanto, o governo FHC adotou políticas que reduziram o crescimento econômico no Brasil, embora certamente tenham ajudado no crescimento econômico verificado nos países capitalistas centrais. Agora que mesmo aqueles países estão num momento de desaceleração econômica, o Brasil se vê no pior dos mundos.

Para realizar esta “façanha”, o governo, a mídia e os grandes empresários lançaram mão de vários mecanismos econômicos, políticos e ideológicos.

Um dos mecanismos ideológicos foi a criação de uma “paranoia”: a dos superávits primários. O entendimento deste e de outros conceitos é importante para se compreender os principais problemas de finanças públicas no Brasil.

Imaginemos um governo cujas dívidas sejam unicamente as relativas ao ano corrente. Este governo tem que arrecadar um volume de impostos necessário para pagar suas despesas correntes. Se as receitas forem inferiores às despesas, o governo terá um déficit. Se as receitas forem superiores às despesas, o governo terá um superávit.

Agora imaginemos que este governo tenha, além das despesas correntes, dívidas herdadas de anos anteriores. Ele terá que gerar um superávit equivalente às dívidas. Senão, incorrerá num déficit operacional e, caso não queira dar um calote nos seus credores, terá que lançar mão de suas reservas, vender patrimônio, pedir novos empréstimos e “rolar” as dívidas (ou seja, trocar dívida velha por dívida nova).

Há duas maneiras de criar um superávit (que chamamos de superávit primário): aumentando as receitas e reduzindo as despesas correntes (despesas não-financeiras).

Nisso consiste a “paranoia do superávit primário”: fazer de tudo para aumentar as receitas fiscais e para reduzir os gastos públicos, com o objetivo de sobrar dinheiro para pagar a dívida pública.

No governo FHC, a necessidade de financiamento do setor público está toda focada no pagamento das dívidas financeiras, mais exatamente dos juros dessas dívidas. Em 1998, por exemplo, houve um equilíbrio (primário) nas contas públicas: as despesas não-financeiras foram equivalentes às receitas. Ocorre que o pagamento de juros representou 7,5% do PIB e, como resultado, o déficit operacional foi de, exatamente, 7,5% do PIB. Em dólares correntes, o pagamento de juros foi equivalente a 60 bilhões ou cerca da metade do total do investimento produtivo realizado no país naquele ano. Resultado: centenas de milhares de postos de trabalho deixaram de ser criados.

A paranoia do superávit primário tem resultados que lembram a parábola da galinha dos ovos de ouro. Para gerar superávits, o governo corta despesas e amplia receitas; mas o governo corta despesas exatamente de quem ele cobra mais. As vítimas dos cortes, do arrocho e do crescimento medíocre são os assalariados e os setores médios, os mesmos que têm sua renda supertributada pelo governo, para gerar o superávit primário. Chegará o dia em que, como na Argentina de 2001, o governo não terá mais como ampliar receitas nem como reduzir despesas. Nesse dia, a galinha dos ovos de ouro estará morta.

Em resumo: a dívida criada pelo governo FHC é a principal herança que ele deixa para as próximas gerações de brasileiros. Por essa razão, diz-se que FHC comprometeu o futuro no Brasil. O descontrole das contas públicas é parte essencial da política de FHC, responsável por uma das maiores transferências de riqueza e de renda ocorridas na história do Brasil.


PARA INGLÊS VER

No Brasil de FHC, servir as dívidas financeiras tornou-se uma prioridade acima de todas as outras.

A dívida implica o pagamento de juros elevados, a deterioração das contas públicas, o aumento da carga tributária, a redução dos investimentos, o baixo nível de atividade econômica.

Isto reduz o potencial de crescimento econômico e também a capacidade do Estado de combater a pobreza e a desigualdade social, provoca a degradação dos serviços públicos, agravando problemas sociais como o desemprego e a violência.

Em decorrência, parcelas crescentes da população se decepcionam com a democracia, com os partidos, com os políticos, com os processos eleitorais. Um dos resultados disso é o comprometimento das instituições públicas e a tensão política que atravessa o Brasil e todos os países em que o neoliberalismo deitou raízes.

Os analistas conservadores em geral restringem o problema do endividamento interno a duas questões: custo e prazo. Em outras palavras: devemos administrar a dívida (ampliando os prazos de pagamento e reduzindo os juros), sem questionar as causas e consequências do endividamento.

Do ponto de vista dos que querem não apenas administrar o presente mas enfrentar o passado/presente para criar outro futuro, é preciso compreender as causas e consequências das dívidas e do endividamento.

O fenômeno do endividamento público só é compreensível visto do ângulo crítico da economia política, sob a ótica “externa” (relação entre diferentes Estados-nação) e sob a ótica “interna” (da luta de classes).

É impossível, por exemplo, entender o endividamento sem tomar em conta as relações entre as classes sociais (trabalhadores, capitalistas, pequenos proprietários), os movimentos e características do capital (“produtivo”, “especulativo”), a dimensão “doméstica” e a dimensão externa da dívida (as pressões do FMI para taxas de juros elevadas, a emissão de títulos públicos com correção cambial etc).

Após a Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos governos não era adepta da “paranoia do superávit primário”, nem fazia da busca do superávit fiscal o leitmotiv de sua ação.

Naquele momento, ao contrário, os governos encaravam a expansão dos gastos públicos e os déficits fiscais como instrumentos necessários para estabilizar as economias capitalistas e, também, para promover o desenvolvimento econômico.

Após a crise dos anos 70 e a introdução das políticas neoliberais, importantes governos continuaram a utilizar os gastos públicos como instrumento de política econômica, mesmo quando diziam o contrário.

Um exemplo paradoxal é o da economia norte-americana. Tanto a política desenvolvida pelo governo Reagan (1981-1989) como a fórmula encontrada pelo governo George W. Bush, iniciado em 2001, para tirar os Estados Unidos da trajetória recessiva iniciada no final de 2000 tiveram por base a expansão dos gastos públicos.

Outro exemplo a destacar é o da Alemanha, país reconhecidamente rigoroso quanto ao equilíbrio das contas públicas. A trajetória recessiva da economia mundial em 2001 provocou um relaxamento do controle orçamentário, de tal forma que o déficit público originalmente previsto, de 1% do PIB em 2001, foi ampliado para pelo menos 2,5% (The Economist, edição brasileira encartada no jornal Valor, 9 de outubro, p. 12).

Esses exemplos mostram que um déficit público orientado para combater a exclusão ou para permitir a realização da capacidade produtiva (e, portanto, sua expansão) é visto como algo positivo até mesmo por governos que, na casa dos outros, estimulam a paranoia do superávit primário.

Mostram, também, que mesmo governos controlados pelo capital financeiro percebem que um superávit fiscal orientado para o pagamento de juros pode significar um freio ao desenvolvimento.

Portanto, a “paranoia” do superávit primário imposta pelo FMI e realizada pelo governo FHC não é equívoco, ingenuidade, ignorância ou esquizofrenia do presidente da República, mas sim uma política determinada e deliberada de concentração e transferência de riquezas.


AMPLIANDO A DEPENDÊNCIA

Nos anos 90, o país também recebeu investimentos estrangeiros de monta. Mas, na ocasião, aqueles investimentos não vieram participar de um ciclo de crescimento; em compensação resultaram num aprofundamento sem igual da dependência externa do Brasil.

Dois indicadores deixam isso claro: o saldo em conta corrente e o passivo externo. O saldo em conta corrente contabiliza as relações do Brasil com os demais países do mundo: se o saldo é negativo, isso significa que o país está enviando mais recursos para o exterior do que recebendo.

O passivo externo, por sua vez, é a soma de nossa dívida externa com o investimento estrangeiro no Brasil (no mercado financeiro, acionário ou sob a forma de investimento direto): o valor resultante indica a presença do capital estrangeiro na economia brasileira. Se abatermos desse número nossas reservas em moeda estrangeira mais os haveres externos dos bancos brasileiros, obteremos um indicador chamado “passivo externo líquido”. Em outras palavras: o saldo em conta corrente é uma medida de “fluxo”, enquanto o passivo externo é uma medida de “estoque”.

Em 1991, o saldo de transações correntes entre o Brasil e o mundo era negativo em 1,4 bilhão de dólares. Já em 2000, nosso saldo negativo foi de 24,6 bilhões de dólares. Em apenas uma década, multiplicamos por 17 nosso déficit em transações correntes. Em percentuais, a relação entre o déficit no balanço de pagamentos (saldo de transações correntes) e o PIB aumentou de menos de 1% para um déficit de 4,4% em 2000.

Em 1994, nosso passivo externo líquido era de 185 bilhões de dólares. Em 2000, ele cresceu para 355 bilhões de dólares. Isso indica um aumento da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Ou seja, hoje somos mais suscetíveis, ou menos resistentes, a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos.

Uma análise qualitativa da presença do capital estrangeiro na economia brasileira confirma que o modelo econômico iniciado no governo Collor e ampliado e aprofundado no governo FHC implicou sérios desequilíbrios nas esferas comercial, financeira, produtiva e tecnológica.