sexta-feira, 24 de junho de 2011

Faz sentido controlar a inflação elevando a Selic?

FERNANDO FERRARI FILHO E ANDRE DE MELO MODENESI

Nos últimos anos, os mercados de commodities têm sido influenciados pelo processo de globalização financeira, entendida como financeirização da riqueza. Nesses mercados, tem-se observado uma dinâmica especulativa na formação de seus preços. Esse comportamento especulativo dos preços das commodities, especialmente agrícolas e energéticas, explica boa parte das pressões inflacionárias globais, em 2007 e 2008. Essas pressões voltaram à tona no segundo semestre de 2010 e têm sido um dos principais responsáveis pela inflação mundial.

Como resposta a esse tipo peculiar de inflação - que vem pelo lado dos custos e, não, da demanda -, as autoridades econômicas internacionais adotaram políticas de elevação dos juros. Em uma situação em que a recuperação da economia mundial está longe de consolidada, essas autoridades deveriam elevar os juros para conter os efeitos (secundários) sobre a inflação doméstica oriundos de choques exógenos protagonizados pela alta das commodities?

No Brasil, infelizmente, o Banco Central (BC) parece entender que sim. Em linha com o regime de metas de inflação, a Selic é tida como o instrumento mais indicado para debelar as pressões inflacionárias - independentemente de sua natureza.

Assim sendo, com o intuito de desaquecer a economia e, portanto, conter o avanço dos preços, iniciou-se novo ciclo de alta da Selic no ano passado (atualmente ela se encontra em 12,25%). Todavia, a despeito das recorrentes elevações da Selic, a inflação brasileira continua se acelerando. Por uma razão muito simples: a inflação brasileira, assim como a de outros países emergentes, não é predominantemente de demanda.


SEGUIREMOS BATENDO RECORDES MUNDIAIS
DE JUROS, SEM QUE A INFLAÇÃO SE REDUZA DE FORMA CONTUNDENTE

Vejamos, portanto, nosso argumento de que a atual inflação brasileira não decorre de um excesso de demanda. Nos últimos 12 meses, entre junho de 2010 e maio de 2011, o IPCA acumulou alta de 6,55%. A contribuição, aproximada, de cada grupo de produtos para o referido valor foi a seguinte: alimentos e bebidas, 2,0%; transportes, 1,1%; educação, 0,6%; despesas pessoais, 0,8%; vestuário, 0,5%; habitação, 0,8%; saúde e cuidados pessoais, 0,6%; artigos de residência, 0,1%; e comunicação, 0,1%. Os grupos alimentação e bebidas e transportes - influenciados pelo choque internacional das commodities - foram responsáveis por quase metade da inflação, nos últimos 12 meses.

Considerando-se que a inflação brasileira deriva, fundamentalmente, de choques de preços internacionais, contrair a política monetária não é a solução mais apropriada. Além disso, vale lembrar que, em condições normais, conter a inflação com origem no lado da oferta por meio de elevação da taxa básica de juros acaba gerando um sacrifício adicional.

Por quê? Porque, por um lado, atua-se meramente sobre os sintomas e não sobre as causas da inflação. Nesse caso a política monetária meramente conteria os efeitos secundários da inflação importada: ao retrair a atividade, coibiria o repasse dos preços externos para os preços domésticos. Por outro lado, porque, ao se restringir a política monetária amplia-se o impacto recessivo de uma elevação dos custos de produção.

Isso é verdade, mesmo na hipótese de que o mecanismo de transmissão da política monetária funcione perfeitamente. A questão é que, no caso brasileiro, esse mecanismo não tem funcionado adequadamente. Nesse sentido, pode-se explicar a persistente coexistência de taxas reais de juros anomalamente altas (somos recordistas nesse critério) com níveis relativamente elevados de inflação. Em outras palavras, o IPCA tem-se mostrado pouco sensível ao nível de atividade econômica. Portanto, o BC não tem sido capaz de trazer o IPCA para a meta de inflação (4,5% ao ano), apesar das altas taxas.

A existência de problemas no mecanismo de transmissão amplia ainda mais o sacrifício imposto pela política monetária à sociedade brasileira. Nesse particular, não é demais ressaltar que o custo de uma redução da inflação por meio da elevação da Selic tem sido muito alto, pois (1) a economia cresce pouco (temos a pior taxa média de crescimento dentre os países emergentes), (2) o real é umas das moedas que mais se valoriza e (3) as contas públicas são contaminadas, transformando o superávit primário em déficit nominal.

O alto sacrifício imposto pela política monetária à sociedade brasileira torna urgente a busca de mecanismos alternativos de combate a inflação. Ou seja, critica-se a concepção de que a Selic deva ser o único instrumento de combate a inflação. Nesse caso não há “receita de bolo”: pressões inflacionárias com causas distintas devem ser combatidas com diferentes instrumentos. O BC ensaiou uma mudança nesse sentido com o uso das medidas de controle de crédito (acanhadamente denominadas de macroprudenciais) tomadas no final do ano passado.

Entretanto, parece que ele abandonou tal caminho, o que lamentamos, e voltou a elevar a Selic, o que consideramos inapropriado. Infelizmente, indo nessa direção, vamos continuar batendo recordes mundiais em termos de taxas de juros (reais), sem que a inflação se reduza de forma mais contundente.

* Fernando Ferrari Filho é professor titular da UFRGS e Andre De Melo Modenesi é professor adjunto do IE/ UFRJ. Ambos são pesquisadores do CNPq.
Publicado no Jornal Valor Econômico

Os salários, os empregos e os que acham que eles são “excessivos”

A tabela foi extraída da nova edição de “Análise da Seguridade Social”, uma publicação primorosa da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) e da Fundação ANFIP de Estudos da Seguridade Social.

Em breve, publicaremos artigo mais extenso sobre esse trabalho. Por ora, o que nos faz dar conhecimento desta tabela , é a atual tagarelice (por ser sinistra, não é menos tagarelice) sobre um suposto superaquecimento do mercado de trabalho, que levaria a um “excessivo” aumento dos salários. Vejamos, então, a tabela.

Seus números não se referem aos empregados totais na economia brasileira, mas à criação ou destruição de empregos - o saldo de novos postos de trabalho, subtraindo das admissões as demissões.



Mesmo assim, é possível ter uma ideia bastante clara de como os brasileiros ganham pouco e de como o aumento do emprego, nos últimos anos, foi um aumento nos empregos de salários mais baixos, o que seria normal e saudável, se não fosse a queda nas faixas salariais mais altas, o rebaixamento salarial - em termos de número de salários mínimos - na parcela maior dos que conseguem emprego (e, certamente, o fato do salário mínimo ainda ser tão baixo).

Evidentemente, a situação é muito melhor que no governo Fernando Henrique, quando, entre 1995 e 1998, as demissões superaram as admissões em 1.108.600. Os dados, todos oficiais, de 1995 até o ano passado, estão na página 50 de “Análise da Seguridade Social em 2010”.

Aqui, reproduzimos os números dos três últimos anos. Apesar da crise penetrar aqui já no último trimestre de 2008, nesse ano a economia crescia, até setembro, a uma taxa de +6,4%.

Até então a parcela maior dos que conseguiam empregar-se, obtinha salários de 1,5 a 2 salários mínimos (v. tabela). A crise - que provocou, somente entre os trabalhadores com carteira assinada, 1.483.673 demissões em 2009 (cf. CAGED12) – fez com que o número dos que conseguiram empregos nesse patamar caísse de 1 milhão e 40 mil, em 2008, para 8 mil e 800 no ano seguinte.

Em 2009, essa faixa salarial de 1,5 a 2 salários mínimos passou a ser terciária. Os salários da maioria dos que conseguiram empregar-se foi numa faixa inferior, de 1 a 1,5 salário mínimo - e, em segundo lugar, lastimavelmente, na faixa de menos do que 1 salário mínimo.

Quando houve a recuperação na criação de empregos em 2010, essa distribuição dos empregos em relação aos salários continuou preponderante. Ou seja, a mediana foi deslocada para baixo em relação ao período de antes da crise – a recuperação do emprego se deu com um rebaixamento do nível dos salários.

Em 2008, os empregos (não a criação de empregos, mas os empregos) diminuíram em todas as faixas salariais acima de 3 salários mínimos. Portanto, o limite salarial até onde os empregos cresceram (ou, o que é dizer a mesma coisa, onde as admissões foram em número maior que as demissões) foi de R$ 1.245,00 (salário mínimo=R$ 415,00). Acima disso, houve menos empregos.

Pior ainda nos últimos dois anos, os empregos reduziram-se em todas as faixas salariais acima de dois salários mínimos. Assim, em 2009, caíram os empregos com salário acima de R$ 930,00 (salário mínimo=R$ 465,00). Em 2010, o limite foi R$ 1.020,00 – além desse salário, os empregos diminuíram.

A realidade, portanto, mostrou-se incompatível com uma das lendas neoliberais: a de que existe desemprego porque o trabalhador não está qualificado. Exatamente nas faixas salariais em que estão os trabalhadores mais qualificados é que houve mais demissões do que admissões. Permanece, portanto, que há trabalhadores desempregados simplesmente porque falta emprego para eles. É um problema de crescimento da economia e não de sofisticação tecnológica - que sempre pode ser adquirida, até rapidamente, se existe necessidade, isto é, emprego. Mas, sem dúvida, esse não é o caso numa economia crescentemente importadora.

Com uma oferta de trabalho onde os salários são tão baixos, pode parecer espantoso que alguns – até no próprio governo – digam que há gente demais empregada, com os salários, por isso, sendo “pressionados” para cima, o que causaria inflação. Como se a restrição do mercado interno pelo rebaixamento de salários, os juros altos e taxa diminuta de investimento não nos deixassem, precisamente, à mercê dos preços de monopólio – inclusive, dependentes do preço das importações, por mais subsídio cambial que o BC e a Fazenda lhes concedam.

Mas tal sapiência já tem marca registrada há 70 anos – e, ao longo desse tempo, já foi desmoralizada várias vezes, inclusive, em 1977, por um sindicalista conhecido por Lula.

No final dos anos 30 e início dos anos 40 do século passado, o reacionaríssimo entreguista Eugenio Gudin (nem todo entreguista consegue ser tão reacionário) afirmou que o problema do Brasil era o pleno-emprego - aliás, o “hiperemprego” - que levava o país à inflação.

Há pessoas de boa fé que consideram que Gudin foi um “economista”. Ledo engano. Desde cedo, ele foi um diretor e/ou membro do conselho de filiais de empresas estrangeiras, que traduzia o interesse dessas empresas em jargão pseudo-teórico, copiado de autores também estrangeiros.

Gudin era tão reacionário que, lá por 1968, atacou a ditadura que apoiara sofregamente desde o primeiro momento - aliás, desde muito antes – porque, dizia ele, o governo da época optara erradamente por “incrementar a taxa de desenvolvimento” ao invés de promover “um combate radical à inflação”. Ele esclarece o que era esse “combate radical”: “Uma ‘taxa mínima de desemprego’ e de capacidade ociosa é indispensável no combate à inflação. A começar porque há em todos os países uma ‘taxa de desemprego normal’” (cf. Gudin, “O pleno emprego e a inflação”, set./1968).

Bem, basta substituir a palavra “normal” por “natural”, e teremos o besteirol de hoje, com alguns débeis mentais discutindo se são oito, dez ou quinze milhões os brasileiros que devem estar desempregados. O espantoso mesmo, com empregos, convenhamos, miseráveis - como mostra a nossa tabela - é a falta de vergonha de uns e o servilismo de outros.