quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Quem é o povo no Brasil?

O texto que publico nesta e nas próximas é um dos mais citados na historiografia do país – e, no entanto, um dos menos conhecidos. "Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro" é a aula inaugural de 1959 do curso regular do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), proferida a 12 de março daquele ano pelo historiador e general Nelson Werneck Sodré. Pela importância do texto e pela raridade de sua publicação, optamos por não condensá-lo. Portanto, os leitores terão acesso à íntegra da aula de Nelson Werneck Sodré. O ISEB – órgão do Ministério da Educação – congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e o próprio Nelson Werneck Sodré. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento. A Nação, portanto, era o centro desse pensamento – daí a adoção dos termos "nacionalismo" e "nacional-desenvolvimentismo". Respondendo àqueles que subestimavam o problema nacional, isto é, o rompimento das amarras de dependência que atrasavam o país, Ignácio Rangel, talvez o maior economista daquela época, definiu deste modo a questão: "A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos" (grifo nosso). Muito interessante é que certas polêmicas da época reaparecem no debate de hoje – o motivo é simples: há problemas do país, basicamente sua relação com os centros imperialistas, que ainda não foram completamente resolvidos. Portanto, a luta de ideias – e não só de ideias - continua no mesmo terreno. Uma dessas polêmicas – aliás, a central – estava plenamente acesa em março de 1959, quando a aula inaugural que publicamos foi proferida. Em 1958, um grupo dentro do ISEB, tendo Hélio Jaguaribe por principal representante, formulara o que eles mesmos chamaram "nacionalismo de fins" (hoje se diria "nacionalismo de resultados"). Relendo o que Jaguaribe escreveu no livro "O nacionalismo na atualidade brasileira" é muito fácil perceber hoje que o "nacionalismo de fins" era um abandono do nacionalismo. Em suma, enunciava-se que o desenvolvimento não necessitava de uma nacionalização da produção. Para ser mais exato, postulava-se que a nacionalização era um entrave à "eficácia técnica". Em nome desta, os adeptos do "nacionalismo de fins" aceitavam – aliás, propunham – a privatização inclusive de setores estratégicos, como a petroquímica. Na situação da época, pior do que hoje, era claro o que significava essa privatização: o domínio de setores essenciais da economia nacional por monopólios externos, isto é, por multinacionais. Não nos é, também, difícil, nos dias atuais, ver a que conduzia esse "desenvolvimentismo sem nacionalismo", como o chamou Nelson Werneck Sodré, até porque Hélio Jaguaribe se tornou, depois da ditadura, um patrono entre os tucanos. O desastre do governo Fernando Henrique é o próprio obituário do "nacionalismo de fins" - levado às suas últimas consequências, o "nacionalismo de fins" tornou-se o fim do nacionalismo e a tentativa de destruir a própria nação. Porém, já em 1958-1959, a maioria do ISEB rechaçou o nacionalismo sem nacionalismo – e, na verdade, sem desenvolvimentismo - de Jaguaribe e outros. A escolha de Nelson Werneck Sodré para realizar a aula inaugural de 1959 reflete a vitória, dentro do ISEB, do setor nacionalista sobre o outro setor, que, depois de sair da instituição, no correr dos anos se tornaria cada vez mais abertamente entreguista. Já nos referimos, na apresentação de um escrito de Álvaro Vieira Pinto, ao ódio que a reação dedicou ao ISEB, à sua depredação em 1964 e às perseguições que sofreram seus membros logo que a ditadura se instalou. No entanto, era impossível apagar da História a contribuição daqueles pensadores, de origem e formação tão diversas, mas unidos na tentativa de fazer do Brasil uma grande nação. Portanto, passemos à aula de Nelson Werneck Sodré – agradecendo outra vez a este grande amigo que é o vereador Werner Rempel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, o envio do texto que hoje passamos a publicar. NELSON WERNECK SODRÉ Deixamos de lado, propositadamente, a fase em que o Brasil era colônia. É suficiente, para definir quem é o povo no Brasil, considerar algumas fases de sua existência autônoma: a da Independência, a da República, a da Revolução Brasileira. Convém repetir o que convencionamos aceitar como geral no conceito de povo, antes de situar os três momentos particulares referidos: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive. Definindo, em relação a cada uma das três fases, quais as tarefas do desenvolvimento progressista (nos dois primeiros) ou progressista e revolucionário (no último), e quais as classes, camadas ou grupos que se empenharam (ou se empenham) na solução objetiva daquelas tarefas, teremos definido quem era (e quem é) o povo em cada uma. INDEPENDÊNCIA Comecemos pela mais antiga, a da Independência. A partir da segunda metade do século XVIII, particularmente no seu final, o problema político fundamental, no Brasil, é o da Independência: realizar a Independência constitui a tarefa do desenvolvimento progressista, naquela fase. Cada fase coloca os problemas quando esboça ou alcança as condições para resolvê-los. O problema da Independência, assim, não apareceu acidentalmente: condições externas e condições internas fizeram com que surgisse, esboçaram e depois definiram objetivamente as condições para resolvê-lo. A essência dos laços que subordinavam o Brasil a Portugal, na referida fase, encontrava-se no regime de monopólio comercial, que assegurava à metrópole participação espoliativa na renda das trocas entre a colônia e o exterior, no sentido da exportação e no sentido da importação, além da espoliação realizada com a tributação interna desigualmente distribuída, onerando os menos afortunados, como é da boa prática colonial em todos os tempos. A quem interessava a Independência? Externamente, interessava a quem se propunha conquistar o mercado brasileiro: a burguesia europeia, em ascensão rápida com a Revolução Industrial, e particularmente a burguesia inglesa, classe dominante em seu país. A expansão burguesa era incompatível com os mercados fechados, com as áreas enclausuradas, com o monopólio comercial mantido pelas metrópoles em suas colônias. Quando as condições mundiais estivessem amadurecidas, e os fatos, — no caso, as guerras napoleônicas, — assinalassem o desencadeamento do processo, a Inglaterra, dominadora dos mares, isto é, da circulação mundial de mercadorias, participaria ativamente dos movimentos de autonomia na área ibérica do continente americano. A quem interessava a Independência, internamente? Antes de verificar este ponto, convém ter uma ideia da estrutura social brasileira na época. Uma estimativa de 1823 admite a existência de quatro milhões de habitantes no Brasil. Desses quatro milhões, um milhão e duzentos mil são escravos. Do ponto de vista social, a população se reparte em: a) senhores de terras e de escravos, — que constituem a classe dominante, — e são em vastas áreas, senhores de terras e de servos, quando nelas existem relações feudais; b) pessoas livres, não vivendo da exploração do trabalho alheio, agrupadas numa camada intermediária, entre os senhores, de um lado, e os escravos e os servos, de outro, camada que recebera grande impulso com a atividade mineradora, compreendendo pequenos proprietários rurais, comerciantes, intelectuais, funcionários, clérigos, militares; c) trabalhadores submetidos ao regime da servidão; d) escravos. Como os servos e escravos, tanto quanto os pequenos grupos de trabalhadores livres que se dispersam particularmente em áreas urbanas, não têm consciência política, embrutecidos que se acham pelo regime colonial, só participam da luta pela autonomia a classe dominante de senhores e a camada intermediária. Esta, incontestavelmente, participa desde muito cedo da referida luta e está presente em todos os movimentos precursores dela, movimentos que, como a Inconfidência Mineira, reúnem militares, padres e letrados. Pelas condições que caracterizam a vida colonial, entretanto, a luta pela autonomia só poderia ter possibilidades de vitória quando englobasse a classe dominante. E esta padece de vacilações constantes; só esposará o ideal da Independência em sua fase final, empolgando-o, para moldar o Estado segundo os seus interesses. Está profundamente interessada no que a Independência tem de fundamental: a derrocada do monopólio de comércio. Suas vacilações, entretanto, não se prendem apenas à tradição colonial — quando era procuradora da metrópole aqui; prendem-se ainda ao temor de que a pressão externa contra o tráfico negreiro e o trabalho escravo encontre na autonomia oportunidade para alcançar seus objetivos, e prendem-se também ao temor de que o abalo social que a autonomia pode proporcionar traga-lhe ameaças ao domínio, particularmente no que se refere à ascensão do grupo mercantil. A camada intermediária também está interessada na autonomia, pela qual elementos seus já combateram e se sacrificaram, e não apenas os do grupo mercantil, mas muitos outros, os intelectuais, padres e militares à frente. Servos e escravos não têm consciência política do processo, embora acompanhem-no com o seu apoio, na medida do possível. Se a tarefa do desenvolvimento progressista do Brasil, nessa fase histórica, é a realização da Independência, como vimos, e se o povo, em tal fase, é representado pelo conjunto de classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva daquela tarefa, o povo brasileiro abrange, então, todas as classes, camadas e grupos da sociedade brasileira. Claro está que cada uma com o seu coeficiente próprio de esforço e de interesse: a classe dominante com as suas vacilações e pronunciamento tardio; a camada intermediária com a sua vibração; as demais na medida da consciência política de seus elementos. Ocorre que essa composição política é transitória: conquistada a Independência, com a manutenção da estrutura colonial (e por isso mesmo não se trata de uma revolução), povo tornar-se-á outra coisa. Dele já não fará parte a classe dominante senhorial que tratará, na montagem do Estado, de afastar totalmente as demais classes, camadas e grupos do poder e da participação política, como veremos adiante. Situemos, agora, a fase em que o país muda de regime, com a derrocada da monarquia. Qual era a tarefa progressista a realizar no Brasil, em tal momento? Era, certamente, a de liquidar o Império, que representava o atraso. O Brasil apresentava-se agora muito diferente: sua população atinge a catorze milhões de habitantes; nela, os escravos, ao fim da penúltima década do século, são cerca de setecentos mil. A área escravista reduziu-se muito e mantém-se em estagnação econômica; mas a área da servidão ampliou-se muito, quanto ao espaço, embora compreenda principalmente zonas fora do mercado interno. Dos catorze milhões de habitantes, admite-se que apenas trezentos mil sejam proprietários, compreendidos parentes e aderentes: constituem a classe dominante. Nela, a velha homogeneidade desapareceu, entretanto, verificando-se uma cisão: há uma parte que permanece ancorada nas relações de trabalho da escravidão ou da servidão, e outra parte que aceita, prefere ou adota relações de trabalho assalariado. Desapareceu a homogeneidade porque, em determinadas áreas, as velhas relações foram, a pouco e pouco, substituídas por novas relações. O Brasil passou, na segunda metade do século XIX, por grandes alterações, realmente: as cidades se desenvolveram depressa, em algumas zonas a população urbana cresceu em poucos anos, o comércio se diversificou e se ampliou, apareceram pequenas indústrias de bens de consumo, o aparelho de Estado cresceu, surgindo o numeroso funcionalismo que desperta tantas controvérsias, mas a divisão do trabalho multiplicou também as suas formas, aparecendo atividades até então desconhecidas. As profissões ditas liberais passaram a atrair muita gente; desenvolveu-se o meio estudantil; atividades intelectuais começaram a ocupar espaço na sociedade urbana. Ora, tudo isso revelava o aumento da velha camada intermediária colocada entre senhores e escravos, ou entre senhores e servos, ou entre patrões e empregados. Aparece, agora, com fisionomia definida, tão definida quanto lhe permitem as próprias características, como classe média, ou pequena burguesia. É curioso notar que constitui uma peculiaridade brasileira, e não só brasileira, o fato de ser a pequena burguesia historicamente mais antiga do que a grande burguesia e do que o proletariado. Nos fins do século XIX, sua importância é destacada, quando a burguesia começa a definir-se, recrutada particularmente entre os latifundiários, e o proletariado dá os primeiros passos, recrutado principalmente no campesinato. As relações de trabalho no campo sofrem grandes alterações também. Enquanto algumas áreas permanecem aferradas à escravidão, que só abandonam com o ato abolicionista, e outras permanecem aferradas à servidão, as que se desenvolvem economicamente excluem o trabalho escravo, que as entrava, e começam a operar com o trabalho assalariado, em parte com os elementos introduzidos pela imigração sistematizada. É um processo paralelo e conjugado em que os polos antagônicos crescem interligados, diferenciando nos latifundiários uma camada que passa a constituir a burguesia, e diferenciando nos trabalhadores uma camada que passa a constituir o proletariado e o semi-proletariado. Esse processo se desenvolve também nas áreas urbanas, onde proletariado e semi-proletariado aumentam lentamente seus contingentes. Com a extinção do trabalho escravo, permanecerão as relações feudais e semifeudais no campo, conjugadas ao latifúndio. Nas áreas urbanas, a burguesia amplia muito depressa o seu campo, com as atividades comerciais, industriais e bancárias.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

João Goulart e o desenvolvimento independente da nação brasileira

Resta, em nossa lembrança da Campanha da Legalidade, responder à seguinte questão: quem era o homem que os golpistas, rasgando a Constituição de 1946, queriam impedir de tomar posse na Presidência da República, e que o povo se levantou para defender – a ele, à democracia e à Constituição? Em sua biografia de Jango – que o nosso infalível amigo Werner Rempel, vereador de Santa Maria, RS, nos regalou -, o historiador Jorge Ferreira faz uma breve recensão das deformações a que foi submetida a imagem de Jango. Realmente, há livros e textos acadêmicos que parecem escritos pelos golpistas de 1964. No entanto, Jango foi fiel, durante toda a sua vida, ao legado de Getúlio – e não apenas isso: como presidente do PTB, ele desenvolveu esse legado no sentido de identificar-se, ainda mais, com as aspirações nacionais à independência e ao desenvolvimento, tendo como centro as grandes massas do povo de nosso país. João Goulart, aliás, escrevia bem, como se pode ver por sua correspondência com Getúlio. Ou por sua resposta ao "The New York Times", que a 8 de março de 1953 publicou, em editorial, um ataque ao então ministro do Trabalho – o mais jovem ministro da História da República –, ataque prontamente papagueado pela reação golpista dentro do país. Jango respondeu: "O Ministério do Trabalho não foi criado para servir de instrumento deste ou daquele grupo, mas sim para atender a todos – patrões e empregados – sem qualquer distinção. Argumentam os pseudo-guardiães da democracia brasileira, contudo, que sou apenas o ‘ministro dos trabalhadores’, pois estaria inteiramente divorciado da indústria e do comércio. Na verdade, venho dedicando especial atenção ao proletariado, que não dispõe, como aquelas duas classes, de meios prontos e eficazes para a defesa dos seus direitos. O trabalhador, isoladamente ou através dos sindicatos, recorre somente ao seu Ministério. Mas isso, essa confiança do proletariado na Secretaria de Estado que dirijo, deveria constituir um motivo de tranquilidade e nunca de alarme. Pretender-se-ia, talvez, que o operariado brasileiro, já tão desencantado, não acreditasse nos poderes constituídos? Nesse caso, sim, estaríamos fazendo o jogo dos inimigos do regime, que desejam levar as massas ao desespero, a fim de implantar no país o clima de inquietação social propício à subversão da ordem. "No meu caso, além de ataques infames à minha honorabilidade, inventam as mais sórdidas mentiras e intrigas, como é exemplo essa pitoresca ‘república sindicalista’ que anda nas manchetes de alguns jornais. Acusam-me de peronista porque prestigio as organizações dos trabalhadores, que são os sindicatos. Ora, os sindicatos são, exatamente, os órgãos de representação e defesa dos interesses profissionais e econômicos das diferentes categorias, tanto de empregados como de empregadores. É dever do Ministério do Trabalho, portanto, estimular e prestigiar a organização sindical. Jamais poderia estar nos meus intuitos a transformação dessas entidades em instrumentos de ação política, não só porque isto seria desvirtuar-lhes as finalidades, como também a isso se opõem os preceitos da lei. "Nesta oportunidade, e a propósito de um editorial no The New York Times, devo dizer que o Ministério do Trabalho não pretende utilizar-se da sua influência para fazer inclinar o movimento operário neste ou naquele rumo, mas deseja tão-somente que se oriente no sentido dos legítimos interesses das classes trabalhadoras e rigorosamente dentro da Constituição, das leis e dos sagrados interesses nacionais. "Também não passa de torpe intriga o boato de que sou contra o capitalismo. À frente do Ministério do Trabalho estou pronto para aplaudir e estimular os capitalistas que, fazendo de sua força econômica um meio legítimo de produzir riquezas, dão sempre às suas iniciativas um sentido social, humano e patriótico. Sou contra, isso sim, o capitalismo parasitário, exorbitando no ganho e imediatista no lucro, contra o capitalismo cevado à base da especulação, que afinal só contribui para o desajustamento social. Não é admirável que, enquanto uns estão ameaçados e morrem de fome, outros ganham num ano aquilo que normalmente deveriam ganhar em 50 anos ou até séculos." Jango era um homem dessa estirpe. Talvez seu grande defeito fosse não perceber até que ponto eram deteriorados os seus inimigos – vale dizer, os inimigos do povo brasileiro. Mas esse é o típico defeito de pessoas que julgam os outros por seu próprio bom caráter. Infelizmente, não é possível, na vida, usar essa medida para avaliar a realidade. O mal, afinal de contas, existe. Nesta página, publicamos hoje o discurso do presidente João Goulart, em fevereiro de 1964, anunciando, em cadeia de rádio e TV, que seu governo conseguira equacionar o problema da dívida externa numa negociação soberana, em que os bancos externos, até por falta de alternativa, aceitaram a proposta brasileira. A perspectiva que ele traça a partir daí é claramente enunciada com a questão da expansão do mercado interno. Para além de fatores políticos conjunturais, o país havia resolvido um dos estrangulamentos que o impediam de desenvolver-se. Não por acaso, o imperialismo e seus sequazes internos apressaram-se a golpear o regime constitucional no fim do mês seguinte. C.L. JOÃO GOULART Posso, nesta oportunidade, afirmar à Nação que as manifestações expressas de concordância e apoio já recebidas dos países que são os nossos maiores credores, me autorizam a anunciar que, nos próximos dias, estarão definitivamente ajustadas as bases de reescalonamento da dívida comercial brasileira, nos termos propostos pelo meu Governo. "Quando assumi a presidência da República, defrontava-se o país com pesados encargos financeiros no exterior. "A extremada preocupação de governos anteriores em obter recursos externos levou à acumulação de compromissos sem esquemas de pagamentos viáveis, transladando a responsabilidade de sua liquidação para os governos que se sucedessem. Com isso criou-se situação em que a não-implementação das obrigações e o apelo a sucessivas prorrogações de nossos compromissos vieram abalar nosso crédito no exterior. À medida que se revelava nossa incapacidade em solver a dívida externa em curto prazo, era o país compelido a condições reconhecidamente inaplicáveis em face da própria política econômico-financeira interna. "Encontrei, com vencimento previsto para o biênio 1964/65, compromissos no montante de um bilhão e trezentos milhões de dólares, equivalentes à nossa receita de exportação no período de um ano. Tornou-se patente que o restabelecimento da normalidade dos pagamentos externos do Brasil e a crescente estabilidade da economia brasileira ficariam grandemente facilitados, desde que o nosso compromisso financeiro não excedesse a 150 milhões de dólares por ano, ou a 300 milhões em dois anos. "Empenhei-me em restabelecer, em termos altivos, o diálogo com os países credores, convencendo-os da necessidade de um reescalonamento em bases reais e a longo prazo para que o Brasil possa, sem sacrifício e sem quebra de sua autoridade e soberania, cumprir rigorosamente seus compromissos e atender aos imperativos do desenvolvimento e da emancipação nacional. Estamos decididos a evitar que se repita uma concentração de compromissos financeiros acima de níveis reconhecidamente razoáveis. "Encontramos agora melhor compreensão para a situação brasileira. Com a receptividade de nossas gestões, restauraremos o crédito do Brasil no exterior. Ao contrário do que aconteceu no passado, ajustaremos agora os compromissos externos à nossa efetiva capacidade de pagamento. O Governo que me suceder não encontrará o mesmo impasse que enfrentei e que só agora é superado. "Levamos a efeito uma negociação da maior relevância para o país com total respeito à sua soberania. Devemos ressaltar que a recomposição de nossos esquemas de pagamentos externos se faz sem qualquer intromissão em nossa vida interna, sem qualquer ingerência na programação da nossa política econômico-financeira. "Equacionado o problema de nossas relações financeiras internacionais, impunham-se, paralelamente, diversas medidas tendentes a sanear as finanças internas e a resguardar o processo de desenvolvimento do país. "A primeira dessas medidas foi hoje adotada pelo Conselho da Superintendência da Moeda e do Crédito e diz respeito a uma reforma do sistema cambial, com vistas ao equilíbrio do Balanço de Pagamentos, mediante forte estímulo às exportações. "A reforma elimina o inconveniente de deterioração progressiva da remuneração cambial dos produtos exportados em relação aos custos internos crescentes. Ao mesmo tempo, atende à preocupação de evitar impacto inflacionário na economia e agravamento do custo de vida ao manter uma taxa especial para determinação da gama de produtos importados. Essa taxa será garantida ainda à Petrobras para aquisição de equipamentos indispensáveis ao seu programa de investimentos, e, bem assim, serão tomadas medidas complementares para assegurar os recursos essenciais ao programa de execução do monopólio estatal do petróleo e aos programas prioritários do Governo. "Evita-se, ao mesmo tempo, a possibilidade dos artifícios que vinham sendo utilizados, burlando o fisco e as normas vigentes e estabelecendo, de fato, condições desfavoráveis para as empresas estatais que se dedicam às exportações. Com a reforma, a Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo, poderá atender satisfatoriamente a seus compromissos firmados, que representam vendas da ordem de três bilhões de dólares, dentro dos próximos 15 anos. "Ao eliminar-se o artificialismo elimina-se, também, o grande obstáculo que vinha bloqueando nosso comércio com os países da faixa bilateral, especialmente os promissores mercados do Leste europeu, porquanto a rigidez da taxa cambial obrigava a sobrepassos tanto na exportação quanto na importação no comércio com esses países. Assegura-se ainda, com a reforma, o monopólio para o Banco do Brasil das divisas produzidas pelo café e açúcar, produtos que vêm obtendo boa cotação no mercado internacional, o que representará uma disponibilidade de mais de um bilhão de dólares, para que o Governo possa atender a seus programas prioritários. "Estas medidas, da maior importância na vida econômica e financeira do país, através das quais passam ao comando direto do Banco do Brasil as cambiais oriundas dos produtos básicos da nossa exportação, representam uma etapa no sentido do controle cambial progressivo, condição necessária à completa liberação das forças produtoras nacionais e ao pleno desenvolvimento econômico e social do Brasil. "A contínua deterioração das condições do comércio internacional, suportada pelos países em desenvolvimento, exportadores de produtos primários, veio despertar a consciência universal de que não somente correm riscos seus programas de industrialização em busca de melhores níveis de vida, mas também de que se alarga progressivamente a distância que separa as regiões subdesenvolvidas do mundo. "O grupo de países altamente industrializados, com uma renda média "per capita" da ordem de 1.500 dólares e podendo dedicar de 15 a 25% dessa renda a poupança e investimentos para a formação do capital fixo, está capacitado a ostentar níveis de crescimento entre 5 a 9% ao ano, o que lhe permitiria alcançar, ao fim de uma geração, uma renda "per capita" da ordem de 3.630 dólares. Enquanto isso, o grupo de países em desenvolvimento, partindo de uma renda média "per capita" da ordem de 120 dólares e confrontando com uma taxa de crescimento demográfico superior à dos países industrializados, só tem podido dedicar à formação de capital fixo a percentagem de 5 a 12% dessa renda e não deverá alcançar, ao fim de uma geração, um nível de renda média "per capita" superior a 251 dólares. "Nessas condições, se já é insuportável a diferença de vida atualmente existente entre países altamente industrializados e os subdesenvolvidos, ainda maior será a distância entre os dois mundos com o correr dos anos se não for retificada em seus fundamentos a ordem econômica internacional. "Dentro de vinte e cinco anos a população mundial duplicará, atingindo seis bilhões de pessoas, cinco dos quais viverão nas atuais regiões subdesenvolvidas. Ao se manterem as tendências presentes, aquela disparidade gritante não poderá deixar de provocar situação incompatível até com os princípios de dignidade humana e solidariedade cristã. "A participação dos países subdesenvolvidos no comércio internacional diminui progressivamente em relação à dos industrializados. Enquanto as exportações destes últimos passavam de 37 bilhões de dólares em 1950 para 85 bilhões de dólares em 1960, as exportações dos primeiros cresceram apenas de 19 bilhões para 27 bilhões de dólares no período em causa. "No conjunto das exportações mundiais, a participação de uma região em desenvolvimento como a América Latina baixava a 6,5% do total de 1962, contrastando com uma parcela de 11,4% em 1948 e ainda inferior à participação de 1938, da ordem de 7,3%. "O Brasil confia que, na próxima Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, a realizar-se em Genebra a partir de 23 de março, surgirá uma solução de grandeza, na medida dos graves problemas que mantêm o mundo em clima de intranquilidade e apreensão. Considera o Governo brasileiro indispensável que nela se consagrem definitivamente certos princípios cuja aceitação se faz inadiável. Assim, o princípio de que não se deve mais exigir estrita reciprocidade de concessão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, liberando-se estes dos encargos da retribuição de vantagens negociadas; o de que não é justo aplicar normas iguais para países em diferente nível de desenvolvimento econômico; o de que não é lícito que os países desenvolvidos se sirvam de cláusulas de salvaguarda ou fórmulas novas para dificultar a livre competição de artigos de países subdesenvolvidos em seus mercados; o de que a solução do problema dos países subdesenvolvidos deve ter prioridade sobre a eliminação dos obstáculos entre países desenvolvidos, pois, do contrário, se estariam aumentando as dificuldades daqueles; o da livre entrada dos produtos tropicais nos mercados dos países industrializados. "O Brasil dará o melhor dos seus esforços num labor de compreensão e entendimento, para que se alcancem plenamente os objetivos colimados. "Ao pugnar por um esforço coletivo pela reestruturação do comércio mundial, o Brasil tem consciência de que ocupa uma posição singular entre os países que encetaram a marcha para o desenvolvimento. "Conseguimos reunir dentro de nossas fronteiras os fatores necessários para a expansão econômica. Sendo assim, nosso máximo empenho deverá concentrar-se na plena mobilização dos nossos próprios recursos. "Enfrentamos hoje problemas resultantes da capacidade ociosa de setores de nossa produção que só poderão ser resolvidos com a expansão do mercado interno. Este constitui um dos objetivos fundamentais das reformas de base, pois somente através delas poderemos transformar a grande maioria da população brasileira, que permanece marginalizada, em elementos ativos do processo econômico. "Preparando o terreno para essas reformas, cabe ao Estado, após adequada ordenação de seus compromissos financeiros no exterior e do saneamento de suas finanças, promover o pleno emprego dos fatores internos disponíveis. "Nesse sentido, e em consonância com as diretrizes da reforma cambial, o Governo divulga, dentro de três dias, programa elaborado para enfrentar a aceleração do processo inflacionário. Simultaneamente, e ante o imperativo de se resguardar a capacidade aquisitiva das classes médias e trabalhadoras, o Governo, ao elevar os índices do salário mínimo, fará executar medidas concretas destinadas à defesa direta da economia popular. "Desde já o Governo adverte que não permitirá, sob nenhum pretexto, manobras especulativas que venham a agravar ainda mais as dificuldades de vida do nosso povo. Usaremos de todos os meios legais para combater quaisquer tentativas de exploração ilícita, partam de onde partirem, que visem a anular antecipadamente os benefícios das novas e inadiáveis tabelas de salário que serão decretadas. "Evidencia-se, assim, estar o Governo realizando enormes esforços, dentro da órbita de suas atribuições constitucionais, quer no âmbito externo quer no interno, no sentido de criar condições indispensáveis para acelerar o progresso do país e assegurar a participação crescente do povo brasileiro no desenvolvimento nacional. "Insisto em ressaltar que o êxito de todos esses esforços administrativos somente será atingido com a realização das reformas de base através das quais serão extintas, dentro do território nacional, as profundas e intoleráveis desigualdades sociais. "Brasileiros, o ano de 1964 não será apenas marcado por um ingente esforço do Governo em prol da recuperação econômico-financeira do país: 1964 será também o ano da decisão definitiva das reformas de base, para que, por meio delas, possamos assegurar a conquista pacífica dos grandes objetivos nacionais de emancipação econômica e justiça social."