sexta-feira, 9 de setembro de 2011

José Bonifácio, a Independência e sua luta contra a escravatura

No segundo tomo da sua História do Brasil, publicada em 1843, o general Abreu e Lima – ex-oficial de Bolívar que tivera sua patente militar reconhecida pelo Império e filho do padre Roma, líder da Revolução Pernambucana, fuzilado pelas tropas portuguesas em 1817 – descreve assim os motivos políticos imediatos da Independência:

“Por uma lei datada de 24 de abril de 1821, as Cortes de Lisboa declararam independentes do Rio de Janeiro todos os Governos Provinciais, e sujeitos tão somente aos Tribunais de Portugal. Por esta lei desorganizadora formou-se uma multidão de pequenos governos em todo o Brasil, que se negavam corresponder com o Príncipe Regente (…). Achou-se por esta forma D. Pedro reduzido a simples Governador do Rio de Janeiro, e de uma ou duas províncias do Sul, e cercado das maiores dificuldades pela diminuição das rendas públicas. Estas circunstâncias adversas, juntas ao espírito sedicioso da tropa portuguesa, fizeram com que D. Pedro escrevesse a seu Augusto Pai, no dia 21 de Setembro, nos termos mais expressivos, pintando-lhe o verdadeiro estado do país, e sua falsa posição” (Abreu e Lima, “Compêndio da História do Brasil”, Laemmert, Rio, 1843, Tomo II, cap. 7 – edição fac-similar da Biblioteca Digital do Senado; atualizamos a ortografia, mas não a pontuação, e mantivemos as maiúsculas).

Abreu e Lima reproduz a carta de D. Pedro a D. João VI, onde o príncipe, depois de descrever a catastrófica situação financeira do Brasil, pede demissão: “Peço a V. M. por tudo quanto há de mais sagrado, me queira dispensar deste Emprego, que seguramente mo matará pelos contínuos, e horrorosos painéis que tenho, uns já à vista, e outros muito piores para o futuro, os quais eu tenho sempre diante dos olhos”.

No entanto, “as Cortes de Lisboa continuavam em seu plano de sujeitar o Brasil à antiga dominação colonial”:

“Um Decreto de 29 de Setembro extinguiu os Tribunais da Chancelaria e do Tesouro, a Junta do Comércio, e várias outras repartições centrais, que se haviam estabelecido no Rio de Janeiro em tempo de D. João VI; e outro Decreto da mesma data ordenou o regresso do Príncipe com a injunção de previamente viajar incógnito pela Inglaterra, França e Espanha, para completar a sua educação política. A estes Decretos seguiu-se outro do 1º de Outubro, nomeando para cada Província um Governador das Armas, delegado do poder executivo de Lisboa; e a 18 do mesmo mês se decidiu, que embarcassem mais tropas para Pernambuco e Rio de Janeiro. É impossível conceber-se uma série de providências melhor adaptadas para frustrar todos os fins a que se destinavam. Então viram os brasileiros, que já não era possível esperar cousa alguma favorável de parte das Cortes de Lisboa, e que a sua sorte dependia deles mesmos; decidiram-se portanto pela independência”.

Observa Abreu e Lima que a ideia era de difícil execução porque “todas as cidades marítimas do Brasil estavam ocupadas pelas tropas portuguesas, as comunicações eram incertas e penosas”. No entanto, “a desaprovação da partida do Príncipe tornava-se mais e mais geral: os portugueses julgando que a sua ausência traria prontamente a independência, e os brasileiros porque supunham que só a sua cooperação podia evitar uma contenda sanguinolenta e duvidosa”.

O general e historiador pernambucano, mais próximo aos acontecimentos do que nós, relata como a ruptura veio de fora do Rio de Janeiro:

“Na Cidade de S. Paulo, onde os patriotas eram em maior número do que na capital, as cousas levavam caminho mais pronto e seguro. José Bonifácio de Andrada e Silva, vice-presidente da Junta Provincial, informado da próxima retirada do Príncipe convocou às onze horas da noite (24 de dezembro) os seus colegas, e conseguiu que assinassem uma representação, em que francamente se fazia ver a Sua Alteza Real, que a sua partida seria o sinal da separação do Brasil”.

O documento também é reproduzido no livro. José Bonifácio conseguira unir o partido português e o partido brasileiro numa mesma solicitação: a representação, assinada na noite do Natal, apelava a D. Pedro para que ficasse no Brasil em nome da continuidade da união com Portugal, contrariando seu próprio pedido – apenas um mês antes do decreto das Cortes - ao rei.

Os fatos subsequentes, com o “fico” de D. Pedro a 9 de janeiro de 1822 e a sublevação do general Avilez, no Rio, são mais conhecidos. Porém, o mais decisivo aconteceu dias depois:

“Tendo chegado de S. Paulo o Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva como Orador da Deputação, que vinha pedir a S. A. R. demorasse a sua partida por motivos de recíproca conveniência para Portugal e para o Brasil, houve por bem o mesmo Príncipe nomeá-lo, com data de 16 de janeiro de 1822, Ministro dos Negócios do Reino e dos Estrangeiros. O primeiro cuidado do novo Ministro foi restabelecer a centralização das Províncias, que as Cortes haviam aniquilado, e que se tornava de primeira necessidade contra as agressões externas. Com estas vistas promulgou-se o Decreto de 16 de fevereiro, ordenando a convocação de um Conselho dos Procuradores das Províncias, cujos membros deveriam ser escolhidos na razão de um Conselheiro por cada uma, que tivesse dado quatro Deputados às Cortes. D. Pedro se declarou Presidente deste Conselho”.

Entretanto, “quatro províncias somente se reuniram nesta aliança: Rio de Janeiro, S. Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul” e duas outras estavam já em guerra com os portugueses: Pernambuco e Bahia.

Que José Bonifácio tenha levado a cabo a Revolução da Independência a partir destas condições políticas, diz quase tudo sobre a sua grandeza. Como ele mesmo dirá mais tarde, na “Ode aos Baianos”, escrita num momento difícil, exilado após seu conflito com D. Pedro I: “Amei a liberdade, e a independência/ Da doce cara pátria, a quem o Luso/ Oprimia sem dó, com riso e mofa —/ Eis o meu crime todo.”

Nesta página, publicamos hoje um trecho do ensaio que lhe dedicou Octávio Tarqüínio de Souza em “O Pensamento Vivo de José Bonifácio” (1945).

Nos anos 30, 40, 50 e 60 do século passado, Octávio Tarqüínio, talvez devido à sua bastante popular tradução de 1928 dos “Rubaiyat”, de Omar Khayyam, era um escritor e historiador bastante conhecido – assim como sua esposa, Lúcia Miguel Pereira, autora de excelentes biografias de Machado de Assis e Gonçalves Dias. Hoje, nem tanto - o que reflete, sobretudo, a tremenda estreiteza e monopolização do movimento editorial em nosso país. Não se trata de uma discriminação política (Octávio, pessoalmente, não era um campeão das causas progressistas), mas uma discriminação ao que é nacional. No entanto, sua “História dos Fundadores do Império do Brasil”, em 10 volumes, permanece como fonte imprescindível para quem se interesse por esse período da vida de nosso país.

C.L.


OCTÁVIO TARQÜÍNIO DE SOUZA


Homem de ciência, mineralogista, químico, botânico; homem público, estadista, administrador; parlamentar; homem de letras, poeta, pensador, crítico — José Bonifácio não escreveu uma obra coerente, dessas de que é possível, sem maior esforço, extrair e destacar o essencial. O que deixou – sem falar, é claro, nos seus trabalhos especializados de cientista, nas suas pesquisas e descobertas mineralógicas – são antes esboços, anotações, projetos. E a explicação está em que, além de certa feição pessoal de temperamento inquieto, as circunstâncias que lhe cercaram a vida não favoreceram a realização da obra que pretendeu escrever. Mas nesses elementos esparsos, disjecti membra, logo se adivinha o pensamento mais alto e mais lúcido dentre os brasileiros do seu tempo. [NOTA DO HP: o poeta latino Horácio chamou “disjecti membra poetae” (“membros dispersos do poeta”) à dificuldade de transformar trechos numa obra coerente].

Tendo nascido em 1763 e morrido em 1838, José Bonifácio dividiu quase igualmente os anos de sua vida entre os séculos XVIII e XIX, em plena mocidade no primeiro para receber-lhe mais vivamente as influências, já com o espírito amadurecido no segundo para tomar uma posição antes de crítica e de julgamento.

As leituras dos dias de moço – Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Descartes, Locke, Leibnitz e muitos outros, citados desordenadamente em escritos seus dessa época – feitas com o deslumbramento das grandes descobertas, deixaram-lhe vestígios perduráveis; o amor da natureza, a crença na racionalidade de suas leis, a noção dos direitos naturais derivados de necessidades próprias da condição humana; o que não o impediu de adotar uma atitude cética no tocante à bondade natural do homem, e de repetir o dualismo rousseauniano – natureza e cultura.

As investigações de ordem experimental e científica a que se entregou durante largo período apuraram-lhe o senso objetivo. O pensamento de Fedro – Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria [se não for útil o que fizermos, a glória será vã], que usou como epígrafe de algumas memórias apresentadas à Academia das Ciências de Lisboa, foi o verdadeiro lema de sua vida, denunciando-lhe a conformação do espírito, levado menos pela curiosidade especulativa do que pela importância prática de problemas e fatos. Conformação de espírito que a educação apurou, pois, nele, o mineralogista eminente, capaz de caracterizar várias espécies minerais, novas, confundia-se com o trabalhador, com o operário: no estágio que fez em Freiberg “assentou praça de mineiro”.

De volta de uma longa excursão científica de dez anos por quase toda a Europa, cumulado de funções públicas em Portugal, tentou muito mais a José Bonifácio o desempenho de cargos, como o de Intendente Geral das Minas e Metais, em que poderia por a funcionar jazidas e empreender a exploração de novas, do que o de professor de Metalurgia da Universidade de Coimbra, confinado em estudos teóricos.

Sentia-se homem de ação, queria dedicar-se à atividade prática. Nessa tendência tão marcada em sua natureza, o estudioso da vida e das obras de José Bonifácio encontrará muitas vezes o segredo de certas atitudes políticas. Apreciando-o sob essa face, um dos nossos mais honestos historiadores de ideias, que debaixo de outros aspectos lhe fez muita justiça, concedendo-lhe até o tratamento de grande homem, desfigurou-o enormemente neste injusto conceito: “na política impressionou-se também mais pelo lado meramente exterior dos acontecimentos”.

A demonstração do contrário, isto é, de que José Bonifácio considerou menos o aspecto externo dos fatos do que a sua significação íntima e profunda, ressalta do exame mais demorado da participação que teve nos sucessos políticos entre 1821 e 1833 e da leitura de trabalhos – a representação à Assembléia Constituinte sobre a escravatura, os apontamentos para a civilização dos índios, o manifesto de 6 de agosto de 1822 às nações amigas.

Bastante diferente de muitos dos seus contemporâneos, não se ateve a exterioridades, não se subordinou a figurinos políticos, não se deixou enlear por palavras. Daí o seu esforço para incutir em D. Pedro a noção do papel que devia representar, as suas ideias em favor de um governo que tivesse autoridade e não se reduzisse a simples sombra de poder, o seu monarquismo ortopédico para consolidar a unidade do Brasil, os conflitos e choques com os patriotas do Rio – Gonçalves Ledo, José Clemente, Januário – estes, sim, muito mais impressionados com o lado exterior dos sucessos, com os pregões do liberalismo europeu, com a moda, a forma, a estética das coisas políticas.

Tão pouco adstrito, em política, ao lado exterior dos acontecimentos, foi José Bonifácio que, tendo plantado, como asseverou, a monarquia no Brasil, não se moveu senão por considerações práticas, de oportunidade, imediatistas, e, diante do monarca, em meio de uma corte improvisada, continuou apenas um cidadão, uma figura tão humana na simplicidade de sua vida – recusando, quase como quem repele uma alcunha deprimente, o título de marquês, e rejeitando a grã-cruz da ordem do Cruzeiro como quem teme o ridículo de possuí-la, quanto mais de ostentá-la.

A prova de que José Bonifácio não se contentava em política com o lado meramente exterior dos sucessos está na posição singular em que se colocou comparadamente com a de seus contemporâneos. Chegando ao Brasil depois de trinta e seis anos de ausência, veio encontrar a antiga colônia elevada à categoria de reino, sede da monarquia portuguesa e possuindo já todo o aparelhamento dos serviços públicos indispensáveis – secretarias, tribunais, repartições, estabelecimentos de ensino. Era a fachada de um novo Estado que se construíra, uma vida nova que se desenvolvera ao impulso das medidas de ordem econômica tomadas por D. João – a abertura dos portos brasileiros ao comércio universal, a revogação do alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibira indústria no Brasil, etc. Não tardou, com as repercussões da revolução do Porto de 1820, a erupção entre nós de um movimento emancipador e separatista, que culminou na proclamação de 7 de setembro de 1822. As ideias liberais em voga animaram esse movimento. A liberdade, todas as liberdades foram decantadas. D. Pedro declarava aos mineiros: “vós amais a liberdade, eu adoro-a”. Os mais ardentes patriotas clamavam por uma Constituição que haveria de conter, sem faltar um só, todos os direitos do homem, numa edição, se possível, correta e aumentada. Para os revolucionários mais sinceros isso era o suficiente. Tivesse o Brasil uma Constituição liberal, e tudo estaria resolvido. José Bonifácio, incontestavelmente homem de seu tempo, detestava o despotismo, queria também uma Constituição para o seu país. Mas não achava que só isso fosse necessário, nem acreditava que assim se resolvessem os problemas brasileiros. Estava de acordo com que se estabelecesse um governo democrático, garantias constitucionais, sistema representativo. Não lhe bastava, entretanto, a organização política copiada do melhor modelo inglês, francês ou norte-americano: via a necessidade de uma reforma de estrutura, de um novo regime de propriedade de trabalho, de profundas alterações de natureza social e econômica. E enquanto todos ou quase todos os dirigentes do momento, em verdade impressionados de preferência pelo lado meramente exterior dos acontecimentos, julgavam possível, viável, natural a criação de um Império constitucional, sem adotar nenhuma medida quanto à escravidão, José Bonifácio para logo se convenceu que essa era a grande questão a enfrentar.

Ideias que esposara ainda quando estudante em Coimbra e que à contemplação do espetáculo da sociedade brasileira, por ocasião da volta à pátria, mais se tinham fortalecido. Ideias que eram suas e de seus irmãos, e que lhes compensam erros e desvarios porventura cometidos. Antes da representação à Assembleia Constituinte, José Bonifácio, mal chegado ao Brasil, na viagem mineralógica de pouco mais de cinco semanas que fez pelo território de São Paulo, em companhia de Martim Francisco, nos começos de 1820, tivera ensejo de tomar contato com as misérias da sociedade escravocrata. Em Itu preparava-se uma expedição para ir comprar índios Caiapós nas margens do Paraná, e os dois mineralogistas itinerantes não contiveram a sua repulsa: “a sorte daqueles índios, assim como a dos Guarapuavas, no distrito de Curitiba, merece toda a nossa atenção, para que não ajuntemos ao tráfico vergonhoso e desumano dos desgraçados filhos da África, o ainda mais horrível dos infelizes índios de quem usurpamos as terras...”. Aliás, Martim Francisco, na memória de outra viagem científica feita em 1803, escrita provavelmente logo depois, admirava-se dos castigos e maus tratos infligidos pelos senhores à “desgraçada raça africana”, e concluía: “não basta a injustiça de um tráfico tão vergonhoso para a humanidade, ainda aumentamos nossos crimes pagando tão mal os seus serviços: mas a natureza, que nada deixa sem recompensa, em prêmio de nossos furores... faz grassar em nosso país moléstias endêmicas na África e deteriora nossos costumes pela comunicação com eles, pois no seio da escravidão só podem germinar enxames de vícios e baixezas”.

Seria um estudo interessante o que examinasse mais particularmente a posição dos Andradas da Independência em face da escravidão – o que fizeram ou tentaram fazer – e as consequências que sofreram em sua vida e carreira política por terem assumido essa posição. Joaquim Nabuco, que sugeriu o tema (O Abolicionismo, p. 56-nota), em relação apenas a José Bonifácio, adianta que talvez quem empreender o estudo venha a descobrir que as ideias conhecidas do estadista que “planejou e realizou a Independência” explicam em boa parte o ostracismo a que se viu condenado.

Seja como for, a verdade é que, não se cingindo ao lado exterior dos acontecimentos, mas fazendo obra de reformador social, José Bonifácio pretendeu acabar com o tráfico africano e com a escravidão, ao iniciar o Brasil a sua existência de nação independente. “Como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos” - perguntava ele aos deputados reunidos na Assembleia Constituinte. E dava ao seu apelo a ênfase de um moralista: “comecemos pois, desde já, esta obra pela expiação de nossos crimes e pecados velhos”. Dos negros que chegavam aos nossos portos abafados nos porões dos navios e “mais apinhados que fardos de fazenda”, o mais ilustre dos Andradas se sentia cristãmente irmão, vendo neles seus semelhantes: “se os negros são homens como nós e não formam espécie de brutos animais, se sentem e pensam como nós...”. Mas não o inspiravam apenas sentimentos generosos no combate que sustentava contra a escravidão: razões de estadista, de sociólogo, de economista o amparavam, e todas se conjugam nessa representação em que, num estilo muitas vezes defeituoso, desigual, de gosto incerto, palpita uma nobre e quente vibração humana, um alto, um justo e equilibrado pensamento. Todos os males econômicos, sociais, políticos e morais do regime do trabalho servil, José Bonifácio expôs e condenou. Não souberam, melhor, não o quiseram ouvir os dirigentes da classe que dominava e continuaria a dominar o Brasil no século XIX – os senhores de engenho e fazendeiros empenhados na exploração dos seus latifúndios. O que lhes propunha a representação parecia-lhes prejudicial, louco, revolucionário. Mais encarniçado ainda do que eles em combater e inutilizar a ação do ministro da Independência, seriam os traficantes de escravos, todo um bando poderoso de ricos comerciantes portugueses, “negreiros” implacáveis na sua ganância.