segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Galbraith: como a especulação sem limites levou ao desastre de 1929

Em seu pitoresco livro “Uma Breve História da Euforia Financeira”, o economista - e assessor dos governos Roosevelt e Kennedy - relata, com seu conhecido estilo e verve, os acontecimentos que antecederam o crash que detonou a maior crise do capitalismo monopolista antes da atual, mostrando como a famosa alavancagem foi apresentada como inovação econômica, e seus promotores como gênios. A propósito, 80 anos depois, o Bear Stearns, o Lehman Brothers e outros tornariam a alavancagem de 1929 quase que uma brincadeira - com resultado, talvez, muito mais catastrófico

JOHN KENNETH GALBRAITH

Na longa história da economia e das finanças, nenhum ano se destaca tanto como o de 1929. Isso se deve, em parte, a que o desastre especulativo que então se produziu teve especial magnitude, e mais ainda porque deflagrou nos EUA, e no mundo industrializado como um todo, a crise mais extrema e duradoura porque jamais havia passado o capitalismo.

O ano de 1929 também é relembrado porque ficaram então evidentes todos os elementos do episódio eufórico, principalmente a força com que se apresentou a suposta inovação financeira. Esta última incluía, como sempre, as redescobertas maravilhas da alavancagem e o desfile de gênios celebrados publicamente. O otimismo gerou otimismo para aumentar os preços. Seguiu-se o colapso e, eventualmente, descobriram-se graves deficiências mentais e morais nos que se pensava que eram dotados de gênio, no melhor dos casos caídos no esquecimento, ou, na pior das hipóteses, expostos à desgraça pública, na prisão, ou cometendo suicídio.

Em 1929 e nos anos que seguiram, todos esses casos se deram até à saciedade.

A justificativa do afã especulativo foi a ordem política, social e econômica associada à benigna e inevitavelmente republicana administração de Calvin Coolidge e de seu secretário do Tesouro, Andrew W. Mellon [NOTA DO HP: Mellon, um dos principais magnatas dos EUA, dono do terceiro maior grupo monopolista do país, que controlava, entre outras, a Gulf Oil e a Alcoa, foi secretário do Tesouro de 1921 a 1932, nos governos republicanos de Harding, Coolidge e Hoover].

A 4 de março de 1929 começou a Presidência de Herbert Hoover. A disposição que então imperava ia ressurgir, um pouco menos de sessenta anos depois, com Ronald Reagan. Essa recorrência não foi um mero acidente. A maioria dos que dirigem operações especulativas ou que contam com somas consideráveis de dinheiro para investir são, como não poderiam deixar de ser, partidários dos republicanos em política.

A primeira manifestação do espírito de euforia dos anos vinte não foi em Wall Street, mas na Flórida, no grande boom imobiliário de meados da década. À parte o otimismo gerado por Coolidge e Mellon, o clima da Flórida exerceu uma indubitável atração. Para muitos, o contraste com o clima de Nova York ou Chicago constituiu uma brilhante descoberta. E também estava presente a alavancagem: os terrenos podiam ser adquiridos com um pagamento efetivo, em dinheiro, em torno de 10%. Assim, cada onda de compras se justificava a si mesma e estimulava a seguinte. Enquanto a especulação seguiu seu curso, em 1924 e 1925, cabia esperar que os preços dobrassem em questão de semanas. Quem ia se preocupar com uma dívida que rapidamente seria extinta?

Atuavam também outras forças compulsivas. Os terrenos selecionados como de “primeira linha da praia” distavam do mar, aplicando-se um critério de medição flexível, de 15 a 25 km. O conhecido Charles Ponzi, de Boston, cujo nome ficou associado às operações financeiras que pagavam substanciais dividendos aos primeiros investidores, com o dinheiro aportado pelos que viriam depois, se dirigiu agora ao negócio imobiliário. Ele promoveu uma subdivisão [de lotes] que, segundo dizia, eram “próximos a Jacksonville”, quando estavam, aproximadamente, a uns 100 km dali. O bom momento continuou. Tal foi a pressão exercida sobre os trens que serviam àquela linha, que se viram forçados a suprimir desnecessários transportes de mercadorias, incluídos os materiais de construção que o próprio boom demandava.

Em 1926, sobreveio o inevitável colapso. A afluência de novos compradores, necessários para sustentar o impulso, secou. Houve uma fútil corrida para sair do negócio. Circularam explicações superficiais e não de todo desbaratadas; assim, não se atribuiu a culpa ao aumento da especulação, mas aos furacões do Caribe, particularmente danosos, que se registraram no outono de 1926.

E assim milhares de pessoas ficaram sem moradia. A responsabilidade do desastre foi desviada do homem e de sua capacidade para o engano em matéria financeira, e se transferiu para Deus e as condições climáticas. Também, embora em menor medida, se manifestou a tendência a promover iniciativas de caridade mal orientadas, em resposta à ação do vento.

Um funcionário da Seaborard Air Line, segundo matéria do The Wall Street Journal, expressou seu temor de que a demanda da Cruz Vermelha por fundos para aliviar os efeitos do furacão, “prejudicasse por mais tempo a Flórida do que havia feito a contrapartida dos fundos recebidos”.

Em 1925, as compensações bancárias de Miami chegaram a US$ 1.066.528.000; em 1928, haviam caído para 143.364.000.

No ano de 1928, o afã especulativo, e a ideia a ele associada, mudou-se para o clima muito menos estável da baixa Manhattan.

Os preços das ações ordinárias na Bolsa de Nova York haviam começado a subir em 1924. A elevação continuou em 1925 e experimentou algum retrocesso em 1926, possivelmente como reflexo do colapso do boom imobiliário da Flórida. Subiu de novo em 1927 e, como se poderia dizer com propriedade, tropeçou com a crua realidade em 1928 e, particularmente, em 1929.

Na primavera desse último ano houve uma queda amortecida. O conselho do Federal Reserve [N.HP: o banco central dos EUA], afastando-se muito ligeiramente de sua timidez sem paralelo, e de sua notória incompetência, anunciou que poderia reduzir as taxas de juros para deter o boom, e o mercado retrocedeu um pouco. A ação do banco central foi vista como um exercício de sabotagem econômica. Charles E. Mitchell, que se encontrava à frente do National City Bank, e estava na crista da onda, apressou-se a conter a ameaça. Acerca de seu banco, em uma declaração de uma arrogância sem precedentes, manifestou: “Acreditamos que mais que qualquer advertência do Federal Reserve ou outro organismo, prevalece nosso compromisso de evitar qualquer crise perigosa no mercado monetário”. O National City Bank emprestaria todo o dinheiro necessário para neutralizar uma restrição do Federal Reserve.

O efeito foi mais que satisfatório: o mercado decolou novamente. Nos três meses do verão, o aumento dos preços superou o já impressionante aumento registrado durante todo o ano anterior. Os preços aumentaram porque os investidores privados ou as instituições e seus conselheiros estavam convencidos de que eles aumentariam mais, e esta convicção produziu o aumento.

A alavancagem estava magnificamente servida, e, inclusive, com uma maravilhosa novidade da época. Em sua forma mais comum, permitia a aquisição de valores com 10% de margem: 10% do aspirante a proprietário e 90% do emprestador. Não era barato. Naquele verão, quem tomava emprestado pagava as então incríveis taxas de juros de 7 a 12% e em certa ocasião se chegou a 15.

Os trusts de investimentos – United Founders Corporation, Goldman Sachs e muitas empresas similares – foram especialmente celebrados por seu gênio para descobrir e utilizar a alavancagem. O grupo United Founders vinha de uma original promoção, em 1921, onde fracassou e foi resgatado com uma injeção de capital de US$ 500 de um amigo. Então, tomou dinheiro emprestado e vendeu títulos para financiar o investimento em outros títulos, num total, com o tempo, de um bilhão de dólares. Este – ativos valorizados em um bilhão de dólares a partir de um investimento original de 500 dólares – pode ter sido o mais notável exercício de alavancagem de todos os tempos, com a possível exceção do caso dos bancos de Michigan e dos papéis alavancados por pregos de dez tostões [N.HP: no século XX, “um grupo de bancos de Michigan se uniu para compartilhar a propriedade das mesmas reservas. Estas eram transladadas de uma instituição para outra, antecipando a visita do inspetor do governo. E (…) a economia era ainda maior: a camada superior de moedas de ouro contidas no cofre apresentava uma altura tanto mais impressionante porque por baixo haviam colocado uma camada mais grossa de pregos de 10 tostões” (Galbraith, “A Short History of Financial Euphoria”)].

Não menos dramática foi a extravagante alavancagem patrocinada pelo Goldman Sachs.

O Goldman Sachs Trading Corporation foi criado por Goldman e Sachs no final de 1928, com o único propósito de reunir ações ordinárias e especular com elas. A primeira oferta de ações foi modesta – cem milhões de dólares – que serviram para adquirir outras ações. No verão seguinte, a Trading Corporation fundou a Shenandoah Corporation, oferecendo ao público suas ações ordinárias e preferenciais, mas conservando em última instância nas suas próprias mãos o controle das ordinárias.

A finalidade da Shenandoah era também adquirir ações ordinárias. Todos os ganhos obtidos com o valor desses títulos enriqueceram aos titulares das ações ordinárias – incluindo, sobretudo, a Trading Corporation, e não aos titulares das preferenciais, de rendimento fixo. Em seguida, a Shenandoah criou a Blue Ridge Corporation, repetindo o processo. O aumento no valor das ações ordinárias alavancadas da Blue Ridge incrementou, por sua vez, a carteira de ações ordinárias da Shenandoah. Esses ganhos, por sua parte, se refletiram no patrimônio da Trading Corporation.

A única coisa que não se percebeu foi a maneira como esse processo poderia atuar no sentido inverso: as obrigações fixas acabaram por diminuir o valor de mercado e os rendimentos das ações ordinárias. Veio a queda. As do Goldman Sachs Trading Corporation, lançadas a US$ 104, subiram até US$ 222,50 poucos meses mais tarde, para caírem, no final da primavera de 1932, para US$ 1,75.

Os homens mais celebrados da época foram os que cavalgaram o boom e o fizeram avançar. Os mais notáveis foram o canadense Arthur W. Cutten; Bernard E. Smith, perversamente apelidado Bernard E. “Sell ´Em Ben” (“Vende-se, Ben”) Smith; o agente da Bolsa M. J. Meehan, que gozou de celebridade especial; os dois grandes presidentes de bancos, o já mencionado Mitchell, do National City, e Albert H. Wiggin, do Chase; o rei sueco dos fósforos e financista internacional, o extraordinário Ivar Kreuger; e Richard Whitney, o mais eminente e aristocrático dos agentes da Bolsa e subdiretor – futuro diretor – da Bolsa de Nova Iorque.

Em apoio a essas personalidades e com o objetivo de manter a confiança do público, convocaram-se professores de economia, que asseguravam a seus ouvintes que o que estava ocorrendo se manteria perfeitamente dentro das normas do triunfante capitalismo contemporâneo.

O mais proeminente desses sábios acadêmicos – e o mais lamentável dos que se posicionaram – foi Irving Fisher, de Yale, que, como já foi dito, era o economista mais inovador de seu tempo. Por sua vez profundamente comprometido com a Bolsa, também sucumbiu ao impulso básico especulador, que, sem dúvida, é o que melhor serve à boa fortuna que se está experimentando. No outono de 1929, ganhou fama duradoura por sua amplamente difundida conclusão de que “os preços das ações atingiram, ao que parece, um permanente nível de estabilização”.

Também chegavam manifestações otimistas das Universidades de Harvard, Michigan, Ohio, e, notadamente, de um jovem economista de Princeton, um certo Joseph Stagg Lawrence, que, quando as ações alcançaram o seu pico, fez esse comentário, amplamente citado: “A coincidência do juízo de milhões de pessoas cujas estimativas fazem funcionar esse admirável mercado que é a Bolsa, se traduz em que as ações não estão nesse momento sobrevalorizadas”, acrescentando a seguinte pergunta: “Onde está esse grupo de homens que, com sua onisciente sabedoria, pretendiam vetar o juízo dessa multidão inteligente?”.

Alguns poucos opuseram esse veto, e não escaparam à denúncia aberta e selvagem. Paul M. Warburg, que, ao menos até que falou contra o mercado, havia sido um dos banqueiros mais respeitados do seu tempo, foi objeto de especial condenação, como também o igualmente conhecido, ainda que com menor reputação, Roger Babson.

Ao iniciar-se o dia 21 de outubro, veio o fim.

A Bolsa abriu mal a semana que se iniciava a 21 de outubro, com uma atividade escassa para o que era usual na época. As coisas ficaram piores na quarta-feira. A quinta-feira foi o primeiro dos dias de desastre. As ações caíram incontrolavelmente nessa manhã. Como havia sucedido na segunda-feira, o teletipo ficou muito atrás das operações. Se fizeram chamadas para obter mais margem para aqueles que ainda não sabiam plenamente da sua desgraça. A referência comum foi novamente o pânico.

Contudo, ao meio dia daquela quinta-feira, as coisas melhoraram brevemente. Os grandes banqueiros da época, incluindo Thomas Lamont, do Morgan; Mitchell, do National City; e Wiggin, do Chase, se reuniram na sede do Morgan e resolveram atuar. Richard Whitney, o agente de ações desse último banco, apareceu no recinto da Bolsa para efetuar compras estabilizadoras com dinheiro que os banqueiros haviam posto a sua disposição. Acreditou-se que com declarações e iniciativas tranquilizadoras tudo voltaria a ser como antes. Mas, desgraçadamente, e como deveria se prever, a confiança se evaporou durante aquele fim de semana. Registrou-se um elevado volume de vendas na segunda-feira, e a terça-feira, 29 de outubro, foi o dia mais devastador na história da Bolsa. Agora nada deteria a corrida para vender ou para conseguir a coisa mais parecida possível com uma venda. Não ajudou, na situação, o rumor de que os grandes banqueiros estavam caindo fora, o que pode muito bem ter sido o caso. Nas semanas seguintes, as segundas-feiras eram os dias particularmente ruins, e a Bolsa seguia caindo.

Poucos, talvez, concordarão em que essa história teve muito pouco de original ou de notável. Os preços dispararam pelas expectativas de que iam seguir subindo, e essas expectativas eram confirmadas pelas compras resultantes. E logo se produziu a inevitável desilusão dessas expectativas, ao que parece por algum acontecimento ou iniciativa prejudicial, ou, talvez, porque, simplesmente, havia acabado a afluência de compradores intelectualmente vulneráveis.

Como consequência do afundamento, se produziram outros dois fenômenos previsíveis.

Charles Mitchell e Albert Wiggin foram fulminantemente despedidos. O primeiro, muito implicado nos negócios de ações, passou mais de dez anos defendendo-se nos tribunais de acusações por sonegação do imposto de renda. Havia se desfeito de sua depreciada carteira, passando-a à sua esposa, e possivelmente outras manobras, a fim de conseguir uma elevada dedução na perda de capital. Com o tempo, foi exonerado de toda responsabilidade criminal, mas teve que enfrentar longos processos cíveis e fazer frente a elevados pagamentos. A Wiggin, também um grande operador, e escassíssimo de valores de seu próprio banco, foi negada a sua aposentadoria. Cutten, Meehan e “Sell ´Em” Ben Smith foram convocados diante de comissões do Congresso. Cutten padecia de amnésia aguda. Quando Meehan foi convocado, distraidamente viajou para o exterior, mas não tardou a regressar e pedir desculpas.

Richard Whitney acabou na prisão de Sing Sing por malversação. Em 1932, em Paris, Ivar Kreuger, antes um financista de projeção mundial, promotor e especulador, agora considerado ladrão de altos voos, saiu um dia, comprou uma pistola e disparou contra si mesmo. Entre outras coisas, haviam descoberto sua falsificação dos bônus do Estado italiano: uma manifestação imoderada da liberdade de imprensa. Irving Fisher perdeu milhões e Yale o resgatou, oferecendo-lhe um modesto posto. Dois gigantes da época, Joseph P. Kennedy e Bernard Baruch, foram dividir ganhos e seguir gozando de estima por haverem deixado o negócio a tempo.

Em outubro de 1929, se disse que a Bolsa não fazia mais que refletir influências externas. Durante o verão anterior havia acontecido, como se descobriu tardiamente, uma queda na produção industrial e de outros poucos índices econômicos disponíveis. O mercado de valores, de uma maneira racional, havia respondido àquelas influências. A culpa não foi da especulação e de suas inevitáveis consequências; mas foi atribuída a esses fatores completamente externos, mais profundos. Os economistas profissionais mostraram um especial talento colaborador para estender e defender essa ilusão. Uns poucos, ao tratarem dessa história, seguem-no fazendo.

Claro que não foram totalmente convincentes. Alguns passos, então tomados, não deixaram de ter sua utilidade: a criação da Comissão de Valores e Câmbio; restrições às holdings em pirâmide, que haviam sido particularmente numerosas no setor elétrico; e o controle das margens obrigatórias. Mas, como sempre, a atenção centrava-se nos instrumentos da especulação. Nada se falou sobre isso, e na realidade não poderia fazer-se, em relação ao fator decisivo: a natureza mesma da especulação.