sexta-feira, 4 de junho de 2010

Declaração de Salvador



19 pontos para uma agenda afrodescendente nas Américas

O documento, fruto do II Encontro Afrolatino foi finalizada no último dia 26. A Declaração de Salvador visa aprofundar o intercâmbio de experiências sobre políticas públicas e ações específicas para a implementação da Agenda Afrodescendente nas Américas.


Os Ministros, Autoridades e representantes dos Ministérios e de Instituições de
Cultura de Barbados, Brasil, Colômbia, Cuba, Equador, Jamaica, México,
Nicarágua, Panamá, Paraguai, Uruguai e Venezuela e os representantes da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), da Secretaria-Geral Iberoamericana (SEGIB), da Agência Espanhola
de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID) e do Programa de
Apoio aos Povos Afrodescendentes Rurais da América Latina e do Fundo
Internacional de Desenvolvimento Agrícola (ACUA-FIDA), reunidos em Salvador,
Brasil, durante os dias 25 e 26 de maio de 2010, com o fim de aprofundar o
intercâmbio de experiências sobre políticas públicas e ações específicas para a
implementação da Agenda Afrodescendente nas Américas 2009 – 2019 e:
Destacando a relevância conceitual e política da “Conferência mundial contra o
racismo, a discriminação racial, a xenofobia e as formas conexas de
intolerância”, realizada em Durban, em setembro de 2001, bem como das
propostas consubstanciadas em sua Declaração e Programa de Ação;
Recordando o conteúdo da Declaração de Cartagena, firmada no âmbito do I
Encontro Iberoamericano de Ministros de Cultura para a Agenda
Afrodescendente nas Américas, realizado em Cartagena das Índias, Colômbia,
nos dias 16 e 17 de outubro de 2008;
Reconhecendo como exigência ética dos Estados, a valorização dos aportes dos
afrodescendentes na formação de nossas culturas, nossas histórias e nossas
nações.
Celebrando a força da diáspora africana como fonte inspiradora para estreitar
laços de fraternidade e unidade cultural entre os povos da América;
Afirmando a importância da participação ativa das populações
afrodescendentes nos processos de construção política e de desenvolvimento
sócio-econômico de seus países;
Ressaltando a necessidade do estreitamento dos laços de solidariedade entre a
América Latina, o Caribe e a África, para valorizar a matriz comum africana de
nossas culturas e promover os direitos dos afrodescendentes;
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Destacando o protagonismo das mulheres afrodescendentes e seu papel
decisivo no reencontro e no fortalecimento da Diáspora Africana;
Tendo em conta que a mídia e as tecnologias de informação e comunicação são
elementos essenciais no processo de valorização das identidades
afrodescendentes;
Recordando que o ano de 2010 foi proclamado pela Assembléia Geral das
Nações Unidas o Ano Internacional de Aproximação das Culturas;
Saudando a decisão da Assembléia Geral da ONU que declarou 2011 o Ano
Internacional das Pessoas de Ascendência Africana;
Considerando que a cooperação internacional é meio eficaz e multiplicador das
experiências e potencialidades nacionais, favorecendo a consolidação de
diretrizes comuns nas políticas públicas para os afrodescendentes;
ACORDAM:
1. Envidar esforços para a criação de mecanismos institucionais e
instrumentos de cooperação que reforcem a solidariedade entre América
Latina, Caribe e África, no âmbito governamental e da sociedade civil;
2. Criar a Secretaria Pro Tempore da Agenda Afrodescendente nas
Américas, designando a Fundação Cultural Palmares, do Brasil, para
exercer esta função até o terceiro encontro;
3. Fortalecer o Observatório Afro-Latino e do Caribe com esquemas de
cooperação nacional que permitam a circulação de conteúdos, com uma
plataforma interativa que maximize a difusão e o acesso à informação,
bem como o seu uso para a elaboração e execução de políticas públicas;
4. Implementar iniciativas de fomento ao desenvolvimento artístico, bem
como ao intercâmbio de manifestações culturais de origem
afrodescendente entre os Estados-parte da Agenda, tais como bolsas,
estágios, residências artísticas e participação em atividades culturais;
5. Salvaguardar as religiões e os espaços culturais de matriz africana,
reconhecendo sua importância para a formação social e vitalidade
cultural da América Latina e do Caribe;
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6. Fomentar a co-produção audiovisual e sua circulação para recuperar a
memória histórica e social das populações afrodescendentes nos países
da América Latina e do Caribe;
7. Estimular a edição e distribuição de publicações e material didáticopedagógico,
em suporte impresso e digital, sobre o aporte dos
afrodescendentes no processo de construção das nações da América
Latina e do Caribe;
8. Promover a reinterpretação e reconceituação da história, cultura e
tradições dos povos afrodescendentes para sua inclusão em programas
educacionais para a infância e juventude;
9. Promover a pesquisa, o ensino local e a difusão cultural das línguas dos
povos afrodescendentes;
10.Ressaltar a importância da adoção de medidas de ação afirmativa nos
diferentes campos, tais como a educação, particularmente a educação
superior, e o acesso ao emprego, entre outros.
11.Promover a aproximação, a troca de experiências e iniciativas de
cooperação entre as instituições dos países da América Latina e Caribe
dedicadas à promoção da igualdade de direitos e oportunidades e
valorização da cultura de matriz africana;
12.Promover iniciativas de cooperação destinadas ao desenvolvimento de
capacidades, apoio ao empreendedorismo e fomento à economia da
cultura e aos mercados culturais entre as populações afrodescendentes;
13.Fortalecer iniciativas culturais que favoreçam a inserção dos
afrodescendentes urbanos marginalizados, com especial ênfase sobre a
juventude;
14.Adotar medidas que assegurem os direitos culturais das comunidades
rurais afrodescendentes, em temas como a preservação das línguas e
tradições culturais e a proteção dos conhecimentos tradicionais;
15. Aprofundar ações que favoreçam a promoção de uma imagem digna dos
afrodescendentes mediante o uso dos meios de comunicação e
contribuir ao desenvolvimento de linguagens que elevem sua autoestima;
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16.Visibilizar o protagonismo das mulheres afrodescendentes na historia de
suas comunidades e da sociedade e apoiar seus projetos de
fortalecimento organizativos e culturais.
17. Desenvolver iniciativas conjuntas para valorização e salvaguarda do
patrimônio cultural material e imaterial das comunidades
afrodescendentes;
18.Designar a presente reunião “II Encontro Afro-Latino e Caribenho” e
adotar esta denominação nos próximos encontros da Agenda
Afrodescendente nas Américas;
19.Reconhecer a contribuição do trabalho desenvolvido pela UNESCO no
projeto “Rota do Escravo”, para promoção da cultura e da memória
africana e afrodescendente e recomendar a difusão e distribuição
massiva de seus conteúdos.
Adicionalmente, recomendam aprofundar, a partir das experiências nacionais, o
processo de reflexão e intercâmbio de conhecimentos sobre os temas da
agenda afrodescendente, mediante a celebração de encontros e atividades
acadêmicas, científicos e culturais.
Os participantes agradecem ao Ministério da Cultura do Brasil e ao Governo do
Estado da Bahia pelo esforço da organização desta reunião e a excelente
acolhida na cidade de Salvador.
Salvador, 26 de maio de 2010.

Discurso do ministro da Cultura, Juca Ferreira, proferido no III Fórum da Aliança das Civilizações

A reflexão sobre o tema da diversidade cultural surgiu, no final dos anos 90, em contraposição a dois fenômenos de abrangência planetária, que se tornaram evidentes após o fim da Guerra Fria. De um lado, estava o fenômeno da globalização, caracterizado por uma crescente integração de mercados e o temor da homogeneização cultural. Em complemento a este processo, difundia-se o consenso de Washington, com sua ênfase na desregulamentação da economia e redução do papel do Estado. No plano das formulações teórico-ideológicas, o entusiasmo pela globalização alcançava seu ápice na hipótese de Francis Fukuyama sobre o “fim da história”. Celebrava-se então o triunfo do binômio “democracia representativa – liberalismo econômico”, visto como a única proposta capaz de propiciar o desenvolvimento pleno de nossas sociedades.

Em paralelo ao avanço da globalização, notava-se a emergência de um outro fenômeno de amplo alcance: a exacerbação da intolerância, com a proliferação dos nacionalismos, a expansão do fundamentalismo religioso e a crescente incapacidade das potências ocidentais de manterem um diálogo franco e respeitoso com o resto do mundo. Essa tensão montante no plano internacional foi sistematizada por Samuel Huntington em sua proposta de um “conflito de civilizações”. Segundo o estudioso norte-americano, diferenças culturais, profundas e insuperáveis, estariam por conduzir-nos a uma era de grande turbulência, que somente poderia ser enfrentada mediante o reforço da projeção cultural do Ocidente e a adoção de uma política de segurança global ainda mais agressiva, sobretudo na contenção das chamadas “novas ameaças”.
O surgimento do conceito de diversidade cultural e a aprovação, no âmbito da UNESCO, da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais constituíram, possivelmente, a alternativa mais qualificada e construtiva ao mundo conformado por esses dois fenômenos.

No que diz respeito à globalização, os propositores da diversidade cultural souberam ressaltar o caráter daninho da homogeneização promovida pela hegemonia das indústrias culturais anglo-saxãs. Tal como no campo da biologia, também na área da cultura é a diversidade que nos garante perpetuação da criatividade. Ambientes culturais homogeneizados tendem a caminhar para uma senilidade precoce, marcada pelo aumento do academicismo e por uma redução acentuada da capacidade de inovar. A cultura respira diversidade, ela precisa das diferenças, através de diálogos interculturais e da miscigenação cultural, para sentir-se estimulada e manter-se vivaz. Sem diálogo, sem trocas, sem estranhamentos e amalgamentos, a cultura definha. Mais grave ainda é a perda da memória e a perda de significados dos patrimônios materiais e imateriais que singularizam as diversas culturas. Quando todas as salas multiplex do planeta mostram as mesmas 8 ou 10 super-produções, construídas a partir dos mesmos estereótipos e convenções, e feitas nos mesmos estúdios, sabemos que a sétima arte corre o risco de desaparecer.

Essa perspectiva de valorização da diversidade cultural soube igualmente contrapor-se ao fatalismo do conflito de civilizações. Ela veio ensinar-nos – à moda do pensamento dialético – que aquilo que, aparentemente, nos afasta, de fato nos une. A diversidade cultural nos diferencia sem nos separar. O que estranhamos nos estimula. O que não conhecemos a fundo nos fascina e nos inspira. O diverso está cheio de poesia. Em outras palavras, a perspectiva da diversidade cultural veio descortinar um novo paradigma de convivência internacional, onde a diferença não conduz ao conflito, mas sim ao congraçamento e complementaridade. Conforme nos ensina a história, civilizações ensimesmadas, uniformes e incapazes de dialogar com a diferença tendem a declinar. Sua força vital desaparece e sua hegemonia perde toda a legitimidade.

A recente crise econômica e financeira internacional mostrou-nos a todos, com suficiente clareza, as limitações da utopia neoliberal. O desmonte das estruturas de Estado, as privatizações vorazes e as imensas facilidades concedidas à livre circulação de capitais trouxeram-nos mazelas bem maiores do que benefícios. Do mesmo modo, a lógica da intolerância, com seu maniqueísmo ideológico e seus ataques preventivos, fez apenas com que proliferassem no cenário internacional a insegurança e os ressentimentos. Tal como nas tragédias gregas, a proposta do conflito de civilizações, ao tornar-se motor da política externa de algumas das principais potências ocidentais, passou a ser uma construção que acabou por transformar premissas falsas em resultados desoladores.

A valorização da diversidade cultural talvez seja o melhor instrumento de que dispomos para superar esse estado de coisas. Em lugar de pensarmos o desenvolvimento e o bem-estar como um caminho unívoco, exclusivo da civilização ocidental, melhor será entendermos que existem diversas possibilidades a serem descobertas e valorizadas. Em lugar do conflito, o diálogo. Em lugar de dominação, respeito e interações. Em lugar de destruição de valores e de sistemas simbólicos, um ambiente saudável e propício à plena realização da condição humana. Mesmo a proposta civilizacional do Ocidente – construída ao longo dos últimos três milênios – contempla uma pluralidade de alternativas, infinitamente maior do que aquela proposta pelos teóricos do neoliberalismo. E não podemos esquecer que ela é, em boa parte, produto de um intenso contato com outras culturas. Em praticamente todas as áreas e manifestações, ela se alimentou da mestiçagem com outras civilizações.

Isso não implica desmerecer a democracia ou mesmo relativizá-la. Pelo contrário, a proposta da diversidade cultural aspira a uma democracia ainda mais ampla, plural e inclusiva. Ela nos leva a valorizar os diferentes grupos de nossas coletividades e dar-lhes condições efetivas de participar do processo de construção social do bem-estar. Ela nos insta a assegurar a todo cidadão a oportunidade de desfrutar de uma ampla gama de opções culturais, seja como criador, seja como consumidor. Ela nos conclama a promover a cooperação e o intercâmbio com outros países, outras culturas e outros modos de estar-no-mundo. Quando nos deixamos conquistar pela proposta da diversidade cultural, passamos a sonhar com uma Aliança das Civilizações baseada no equilíbrio e no respeito – não na imposição unilateral de valores. Quando começamos a amar a diversidade, ganhamos a capacidade de ver e escutar o outro. Aprender com ele, crescer com ele. Igualdade na diversidade.

Daí concluirmos que o conceito de boa governança deva ser expandido para contemplar muito mais do que os elementos tradicionais da racionalidade, previsibilidade, probidade e transparência. Boa governança é escutar a sociedade, é distribuir bem a riqueza produzida e garantir o acesso sustentável aos recursos naturais. É combater a exclusão social e cultural, e governar aprimorando as instituições do Estado, de modo a torná-las mais eficazes e democráticas. Boa governança é entender o bem-comum da forma mais ampla possível, contemplando o respeito às comunidades e a promoção das aspirações materiais e espirituais do indivíduo. Boa governança, enfim, é atuar em favor da cultura da paz e do convívio harmônico no concerto das nações. Somente assim poderemos superar as dificuldades atuais e chegar a um futuro melhor. Um futuro de respeito entre os homens e de reencontro do conceito de desenvolvimento com a ideia da felicidade.

Muito obrigado.

Juca Ferreira
Ministro de Estado da Cultura

CONTO AFRICANO‏

"HÁ GENTE QUE FICA NA HISTÓRIA DA HISTÓRIA DA GENTE..."

CONTO POPULAR DA GUINÉ-BISSAU
Dizem na Guiné que a primeira viagem à Lua foi feita pelo Macaquinho de nariz branco.
Segundo dizem, certo dia, os macaquinhos de nariz branco resolveram fazer uma viagem à Lua a fim de traze-la para a Terra. Após tanto tentar subir, sem nenhum sucesso, um deles, dizem que o menor, teve a idéia de subirem uns por cima dos outros, até que um deles conseguiu chegar à Lua. Porém, a pilha de macacos desmoronou e todos caíram, menos o menor, que ficou pendurado na Lua. Esta lhe deu a mão e o ajudou a subir. A Lua gostou tanto dele que lhe ofereceu, como regalo, um tamborinho.
O macaquinho foi ficando por lá, até que começou a sentir saudades de casa e resolveu pedir à Lua que o deixasse voltar. A lua o amarrou ao tamborinho para descê-lo pela corda, pedindo a ele que não tocasse antes de chegar à Terra e, assim que chegasse, tocasse bem forte para que ela cortasse o fio. O Macaquinho foi descendo feliz da vida, mas na metade do caminho, não resistiu e tocou o tamborinho. Ao ouvir o som do tambor a Lua pensou que o Macaquinho houvesse chegado à Terra e cortou a corda.
O Macaquinho caiu e, antes de morrer, ainda pode dizer a uma moça que o encontrou, que aquilo que ele tinha era um tamborinho, que deveria ser entregue aos homens do seu país. A moça foi logo contar a todos sobre o ocorrido. Vieram pessoas de todo o país e, naquela terra africana, ouviam-se os primeiros sons de tambor.

"Sempre me espanto com a beleza deste continente. Seus animais exuberantes, sua imensa sabedoria... Sua gente tão sofrida, exemplo de luta e resistência.
África, berço da humanidade. África, mãe abandonada a própria sorte. África,África, África..."

A DEFESA DOS DIREITOS INDÍGENAS

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), instância nacional que congrega organizações indígenas regionais, face ao momento político que inclui manifestações públicas e eletrônicas de agrupamentos e membros de determinados povos indígenas focadas basicamente na questão da reestruturação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), vem a público fazer os seguintes esclarecimentos:

As organizações indígenas que compõem a APIB, algumas com mais de 20 anos de trajetória, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), às quais vieram se somar a Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal (ARPIPAN), Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), a Grande Assembléia do Povo Guarani (Aty Guassu) e Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE), foram iniciativas pioneiras propriamente indígenas de articulação e luta pela defesa dos direitos indígenas.

Fiéis aos anseios e à memória de lideranças tradicionais e políticas que, enfrentando um contexto político adverso marcado pelo preconceito, a discriminação e o racismo de uma sociedade etnocêntrica e um regime de governo autoritário, resultante da ditadura militar, arrancaram do Estado Brasileiro o reconhecimento dos direitos dos Povos Indígenas através da Constituição Federal de 1988. As organizações indígenas da APIB se apropriaram dessa conquista e fizeram valer esses direitos lutando por sua efetivação.

Desta forma, os povos e organizações indígenas conquistaram a demarcação de terras indígenas, embora o passivo de áreas não demarcadas ainda seja grande e vergonhoso, se for considerado o prazo de cinco anos estabelecido pela Constituição. Houve também a apropriação de um novo marco legal que institui o caráter multiétnico e pluricultural do Estado brasileiro, princípio norteador do tratamento diferenciado, que reivindicado pelos povos e organizações indígenas influenciou políticas públicas específicas em áreas como a saúde, a educação, a participação e o controle social.

A dívida social do Estado Brasileiro para com os povos indígenas é sem dúvida gigantesca, contudo, as conquistas de mais de 20 anos de luta, alavancadas pelo grau de organização e lutas acumuladas pelos povos indígenas, suas lideranças e instâncias de representação, não podem ser esquecidas e desprezadas por quem quer que seja, ainda mais neste momento histórico em que as forças inimigas representadas pelo latifúndio, o agronegócio, as mineradoras, as madeireiras, os grandes empreendimentos, enfim, o desenvolvimentismo neoliberal, depredador da mãe natureza e desumano, se aglutinam para reverter os direitos constitucionais dos povos indígenas apostando, como já o fizeram representantes da intelectualidade burguesa nos finais do século passado, na dizimação desses povos para tomar por assalto as terras indígenas e os recursos naturais, hídricos e da biodiversidade que há milhares de anos os povos indígenas preservam.

Diante deste quadro, as organizações que compõem a APIB chamam os povos e lideranças indígenas do Brasil, aqueles que dia a dia enfrentam as arremetidas dos inimigos, para que não arredem o pé na defesa dos seus direitos, tendo em vista as demandas e aspirações não atendidas pelo Estado Brasileiro, principalmente no atual governo, fazendo valer o respeito e a aplicabilidade da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Declaração da ONU sobre os Direitos Indígenas e a Constituição Federal.

Do Presidente Lula, a APIB reivindica que antes que finde o seu governo faça de tudo para cumprir com a agenda de compromissos pactuados, sobretudo no seu segundo mandato, no âmbito da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) ou diretamente com os povos e organizações indígenas, visando atender as seguintes demandas:

1- Aprovação do Novo Estatuto dos Povos Indígenas, engavetado há mais de 15 anos no Congresso Nacional, Lei infraconstitucional que deverá nortear todas as políticas e ações da política indigenista do Estado.

2 - Criação do Conselho Nacional de Política Indigenista, instância deliberativa, normativa e articuladora de todas essas políticas e ações atualmente dispersas nos distintos órgãos de Governo.

3 – Aprovação da medida provisória e implementação da Secretaria Especial de Saúde Indígena e efetivação da autonomia política, financeira e administrativa dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI`s).

4. Demarcação, proteção e desintrusão das terras indígenas priorizando casos críticos como Mato Grosso do Sul, que expressam processos etnocidas e de extermínio dos povos indígenas, sob comando de fazendeiros e representantes do agronegócio.

5. Não construção de empreendimentos que impactam direta ou indiretamente as terras indígenas, tais como: a Transposição do Rio São Francisco, o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte e as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH`s) no Xingu e na região sul do país, bem como rodovias, ferrovias, portos, linhas de transmissão e outros empreendimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC II) para evitar estragos irreparáveis à mãe natureza, sobretudo à sobrevivência física, cultural e espiritual dos povos que nelas habitam.

6. Fim da criminalização e prisão arbitrária de lideranças indígenas que lutam especialmente pelos direitos territoriais de seus povos e comunidades, influenciando a soltura de índios detidos de forma injusta e arbitrária como o caso do cacique Babau do povo Tupinambá da Serra do Padeiro, dentre outros tantos.

7. Publicação de Decreto que institui a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas para que todo o investimento e os resultados obtidos no processo de consulta aos povos indígenas não seja em vão.

8. Reestruturação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que há muito tempo é reivindicada pelas organizações indígenas da APIB no intuito de adequar este e outros órgãos, políticas e ações do Governo a um novo patamar da política indigenista, que não seja paternalista, assistencialista, tutelar e autoritário, em respeito ao reconhecimento da autonomia dos povos indígenas consagrada pela Constituição Federal vigente.

Antes, porém, o Governo deve admitir publicamente que foi de sua inteira responsabilidade a determinação de formular e decretar as mudanças previstas no órgão indigenista, não assegurando a devida consulta aos povos indígenas, conforme a Convenção 169 da OIT, mesmo a seus representantes na Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), para afastar de uma vez por todas as acusações, difamações e cobranças feitas a estas lideranças por suas bases, no sentido de terem supostamente consentido com as mudanças sem considerar as reais necessidades das comunidades indígenas. Mas havendo irregularidades, estas devem ser apuradas e os representantes envolvidos responsabilizados, inclusive junto às regiões e organizações indígenas que os indicaram.

Sabendo que se perdeu tempo demais, a APIB reivindica que sejam efetivados os acordos realizados com o Presidente da FUNAI em 11 de fevereiro deste ano, realizando com extrema urgência, sob coordenação das organizações indígenas regionais que compõem a APIB e a CNPI, seminários de esclarecimento ou consultas para colher e acatar os legítimos anseios dos povos e comunidades indígenas, visando ajustar o Decreto da Reestruturação e assegurando, ainda, a efetiva participação dos povos e organizações indígenas na elaboração do Regimento Interno da FUNAI e no processo de indicação de coordenações regionais, de localização das Coordenações Técnicas Locais e na composição dos Comitês Regionais. É importante que na hora de implantar a reestruturação a FUNAI se preserve as estruturas e ações que de alguma forma deram certo, como na área da educação, visando assegurar o importante suporte que oferecem à atuação de outros órgãos de governo.

A APIB entende que enquanto não for criado o Conselho Nacional de Política Indigenista, a CNPI é um espaço importante de diálogo e interlocução entre o Governo e os povos indígenas, conquistado pela Grande Assembléia Nacional Indígena– o Acampamento Terra Livre. A APIB ressalta, ainda, a importância do trabalho desenvolvido por seus representantes, que possibilitou a consolidação de propostas para o Novo Estatuto dos Povos Indígenas, a elaboração do Projeto de Lei do Conselho Nacional de Política Indigenista e a aprovação e encaminhamento de outras ações, entre outros ganhos, apesar da longa agenda de demandas pendentes.

O atendimento destas demandas até o final do atual Governo poderá significar a inclusão da questão indígena na centralidade das políticas do Estado superando a prática de ser tratada marginalmente ou como moeda de troca pelos sucessivos governos.

Com relação às distintas manifestações contra a reestruturação da FUNAI, a APIB manifesta o seu repúdio contra as esferas do setor público que permitiram que se chegasse a esse nível e ainda contra indivíduos, setores corporativos e agrupamentos políticos e partidários que se aproveitando do sofrimento e das necessidades seculares dos povos indígenas, manipulam e desvirtuam as lutas indígenas em benefício próprio, prejudicando a materialização de conquistas arrancadas do Estado, a despeito dos interesses contrários das classes dominantes no país. É importante que tais segmentos sejam identificados e responsabilizados por eventuais conflitos entre índios ou destes com as forças da seguridade pública.