quinta-feira, 22 de março de 2012

João Goulart: o discurso da Central do Brasil e a verdade histórica

Publicamos hoje a primeira parte do discurso de João Goulart, proferido no dia 13 de março de 1964 para cerca de 200 mil pessoas em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em apoio às reformas que o presidente pretendia implementar ainda naquele ano. Nacionalização das refinarias de petróleo, democratização do acesso à terra, ampliação da liberdade partidária com extensão do direito de voto a todos os brasileiros maiores de 18 anos, reforma educacional e maior controle nacional da economia, incluindo limites às remessas de lucro ao exterior, são alguns dos principais pontos das reformas estruturais, chamadas reformas de base, que foram estancadas pelo golpe de Estado que derrubou o presidente apenas 19 dias depois do histórico pronunciamento JOÃO GOULART Devo agradecer às organizações sindicais, promotoras desta grande manifestação, devo agradecer ao povo brasileiro por esta demonstração extraordinária a que assistimos emocionados, aqui nesta cidade do Rio de Janeiro. Quero agradecer, também, aos sindicatos que de todos os estados mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os patrícios, neste instante mobilizados em todos os recantos do país, e ouvindo o povo através do rádio ou da televisão. Dirijo-me a todos os brasileiros, e não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas. Dirijo-me também aos milhões de irmãos nossos que dão ao Brasil mais do que recebem e que pagam em sofrimento, pagam em miséria, pagam em privações, o direito de serem brasileiros e o de trabalhar de sol a sol pela grandeza deste país. Presidente de oitenta milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios. Vou falar em linguagem rude, mas que é sincera e sem subterfúgios. É também a linguagem de esperança, de quem quer inspirar confiança no futuro, mas de quem tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade que vivemos. Aqui estão os meus amigos trabalhadores, pensando na campanha de terror ideológico e de sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu Presidente, na presença das lideranças populares mais representativas deste país, que se encontram também conosco, nesta festa cívica. Chegou-se a proclamar, trabalhadores brasileiros, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse dona da democracia, ou proprietária das praças e ruas. Desgraçada a democracia que tiver de ser defendida por esses democratas. Democracia para eles não é o regime da liberdade de reunião para o povo. O que eles querem é uma democracia de um povo emudecido, de um povo abafado nos seus anseios, de um povo abafado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia do anti-sindicato, ou seja, aquela que melhor atenda aos seus interesses ou aos dos grupos que eles representam. A democracia que eles pretendem é a democracia dos privilégios, a democracia da intolerância e do ódio. A democracia que eles querem, trabalhadores, é para liquidar com a Petrobrás, é a democracia dos monopólios, nacionais e internacionais, a democracia que pudesse lutar contra o povo, a democracia que levou o grande Presidente Vargas ao extremo sacrifício. Ainda ontem eu afirmava no Arsenal de Marinha, envolvido pelo calor dos trabalhadores de lá, que a democracia jamais poderia ser ameaçada pelo povo, quando o povo livremente vem para as praças – as praças que são do povo. Para as ruas – que são do povo. Democracia, trabalhadores, é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do meu dever. Não só para interpretar os anseios populares, mas também para conquistá-los pelo caminho do entendimento e da paz. Não há ameaça mais séria para a democracia do que tentar estrangular a voz do povo, dos seus legítimos líderes populares, fazendo calar as suas reivindicações. Estaríamos, sim, brasileiros, ameaçando o regime, se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, desta Nação e desses reclamos que, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, levantam o seu grande clamor pelas reformas de base e de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será o complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros, que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria. Ameaça à democracia, enfim, não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo brasileiro, é explorar os seus sentimentos cristãos, na mistificação de uma indústria do anticomunismo, insurgindo o povo até contra os grandes e iluminados ensinamentos dos grandes e santos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado nacional. O inolvidável Papa João XXIII é que nos ensina, povo brasileiro, que a dignidade da pessoa humana exige normalmente, como fundamento natural para a vida, o direito e o uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade para todos. É dentro desta autêntica doutrina que o governo brasileiro vem procurando situar sua política social, particularmente no que diz respeito à nossa realidade agrária. O cristianismo nunca foi o escudo para privilégios condenados pelo Santo Padre, nem também, brasileiros, os rosários podem ser levantados contra a vontade do povo e as suas aspirações mais legítimas. Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade das suas esperanças. Os rosários não podem ser erguidos contra aqueles que reclamam a discriminação da propriedade da terra, hoje ainda em mãos de tão poucos, de tão pequena maioria. Àqueles que reclamam do Presidente da República uma palavra tranquila para a Nação, àqueles que em todo o Brasil nos ouvem nesta oportunidade, o que eu posso dizer é que só conquistaremos a paz social através da justiça social. Perdem seu tempo, também, os que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais, como perdem também seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra o povo, contra os seus direitos ou contra as suas reivindicações. Ação repressiva, trabalhadores, é a que o governo está praticando e vai ampliar cada vez mais e mais implacavelmente, aqui na Guanabara e em outros Estados, contra aqueles que especulam, contra as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo, que sonegam gêneros alimentícios ou que jogam com seus preços. Ainda ontem, dentro de associações de cúpula de classes conservadoras, ibadianos de ontem levantaram a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra os que o exploram na rua e em seus lares, através da exploração e da ganância. Mas não tiram o sono as manifestações de protestos dos gananciosos, mascaradas de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer impunidade para suas atividades antipopulares e antissociais. Por outro lado, não receio ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar – e tenho proclamado e continuarei proclamando nos recantos da Pátria – a necessidade da revisão da Constituição. Há necessidade, trabalhadores, da revisão da Constituição da nossa República, que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento desta Nação. A Constituição atual, trabalhadores, é uma Constituição antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada, uma estrutura injusta e desumana. O povo quer que se amplie a democracia, quer que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; quer que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facilitado participar da vida política do país, através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e que seja assegurada à representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações, ideológicas ou religiosas. Todos, todos os brasileiros, todos têm o direito à liberdade de opinião, de manifestar também sem temor seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na própria Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a todos os brasileiros. Está nisso, trabalhadores, está nisso, povo brasileiro, o sentido profundo desta grande e incalculável multidão que presta, neste instante, sua manifestação ao Presidente, que vem também lhe prestar conta de seus problemas, mas também de suas atitudes e de sua convicções nas lutas que vem enfrentando, luta contra forças poderosas, mas confiando sempre na unidade do povo e das classes trabalhadoras, unidade que há de encurtar o caminho da nossa emancipação. É apenas de se lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional. São, certamente, os piores surdos e os piores cegos, porque poderão, com tanta surdez, e com tanta cegueira, ser, amanhã, responsáveis, perante a História, pelo sangue brasileiro que possa ser derramado, ao pretenderem levantar obstáculos à caminhada do Brasil e à emancipação do povo brasileiro. De minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo continuarei fazendo para que o processo democrático siga o caminho pacífico, para que sejam derrubadas as barreiras que impedem a conquista de novas etapas e do progresso. E podeis estar certos, trabalhadores, de que, juntos, governo e povo, operários, camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões brasileiros que colocam os interesses da Pátria acima de seus interesses, haveremos de prosseguir, e prosseguir de cabeça erguida, a caminhada da emancipação social do país. O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade. A maioria dos brasileiros já não se conforma com a ordem social imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que nada têm se impacientam com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído também com o esforço dos trabalhadores e o sacrifício dos humildes. Vamos continuar lutando pela construção de novas usinas, pela abertura de novas estradas, pela implantação de mais fábricas, de novas escolas, de hospitais para o povo sofredor; mas sabemos, trabalhadores, que nada disso terá sentido profundo se ao homem não for assegurado o sagrado direito ao trabalho e a uma justa participação no desenvolvimento nacional. Não, trabalhadores; não, brasileiros: sabemos muito bem que de nada vale ordenar a miséria neste país. Nada adianta dar-lhe aquela aparência bem comportada com que alguns pretendem iludir e enganar o povo brasileiro. Meus patrícios, a hora é a hora da reforma, brasileiros, reforma de estrutura, reforma de métodos, reforma de estilo de trabalho e reforma de objetivo para o povo brasileiro. Já sabemos que não é mais possível produzir sem reformar, que não é mais possível admitir que esta estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional, para milhões e milhões de brasileiros, da portentosa civilização industrial, porque dela conhecem apenas a vida cara, as desilusões, o sofrimento e as ilusões passadas. O caminho das reformas é o caminho do progresso e da paz social. Reformar, trabalhadores, é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada, inteiramente superada, pela realidade dos momentos em que vivemos. Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da Supra. Assinei-o, meus patrícios, com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos. Ainda não é a reformulação do nosso panorama rural empobrecido. Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado. Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro. O que se pretende com o decreto que considera de interesse social, para efeito de desapropriação, as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais, e terras beneficiadas por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável. Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, que se apoderam das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou setenta bilhões de dinheiro do povo, não deve beneficiar aos latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas, sim, ao povo. Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos da dívida pública e a longo prazo. Reforma Agrária com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. Reforma agrária, como consagrado na Constituição, com pagamento prévio e a dinheiro é negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso, o decreto da Supra não é a reforma agrária. Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária autêntica. Sem emendar a Constituição, que tem acima dela o povo, poderemos ter leis agrárias honestas e bem intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas.

quinta-feira, 8 de março de 2012

U.S. Deutsch Bank e outras aventuras edificantes

Vários autores já disseram, e demonstraram, que a chamada “globalização” era, meramente, globalização financeira. Resta, talvez, dizer que esse berro do neoliberalismo significou o domínio dos bancos de outros países pelos grandes bancos norte-americanos. CARLOS LOPES Um velho amigo – hoje um conhecido psicanalista – tinha uma especial birra contra “livros de jornalista”, categoria em que incluía desde John Reed até as obras de ficção de Hemingway (mesmo - aliás, sobretudo - a melhor parte: os contos). Jornalistas, dizia ele, não vão além da superfície dos fatos – e, ainda por cima, apresentam-na como se fosse a sua essência. Existe alguma injustiça nessa apreciação, pois há muitas exceções, mas foi inevitável pensar no que dizia esse amigo ao ler “Bumerangue”, o livro do jornalista norte-americano Michael Lewis sobre a crise na Islândia, Grécia, Irlanda, Alemanha e nos municípios dos EUA. Impossível evitar a lembrança, ao ler: “a sociedade mais rica que o mundo já viu alcançou esse status concebendo meios cada vez melhores de dar às pessoas o que elas querem” (Lewis, “Bumerangue”, trad. Ivo Korytowski, Sextante, 2011, págs. 203/204). Pois essa frase, leitores, é referente aos EUA, onde, antes da atual crise, havia, oficialmente, 45 milhões de pessoas sem direito a qualquer assistência médica, exceto a reservada aos indigentes – reconhecidamente, uma assistência médica indigente. Um país em que, desde 1981, houve um arrocho salarial tão achatador que é difícil medi-lo, até porque as estatísticas sobre salários, desde Reagan, sofreram estranhas alterações de critérios – e, mesmo assim, os números não conseguiram deixar de registrar o arrocho (o que não é nenhuma novidade. Conferir, por exemplo, o livro, já antigo, de um professor de economia norte-americano: David M. Gordon, “Fat and Mean: The Corporate Squeeze of Working Americans and the Myth of Managerial ‘Downsizing’”, Free Press, 1996 – esse livro não foi atualizado, pois seu autor faleceu logo após a publicação. Mas não é uma questão em disputa que o arrocho salarial aumentou nos anos posteriores a 1996). RATING Se Lewis preenche seu livro com preconceitos, alguns reacionaríssimos – é nauseante o seu medo de qualquer manifestação popular -, os fatos que menciona, no entanto, são muito interessantes. Inclusive sobre os EUA, que não é, neste livro, o seu assunto principal. O leitor, provavelmente, lembra-se quando, em agosto do ano passado, a Standard and Poor's (S&P), uma dessas “agências” vigaristas de classificação (“ratings”), rebaixou sua nota dos títulos do governo norte-americano. Foi uma torrente de lamentações na mídia. Até o sr. Mantega, que desde 2006 incensava o “investment grade” dessas agências, em especial o da S&P, saiu em defesa dos papéis norte-americanos. Também, pudera: 65% das reservas do Brasil estavam (e estão) aplicadas em papéis do governo dos EUA, exatamente com a fundamentação de que esses papéis tinham classificação “Aaa” da S&P e outras agências norte-americanas de rating (cf. BCB, “Relatório de Gestão das Reservas Internacionais”, v. 3, Brasília, 2011, pág. 21). Parecia uma tragédia para o governo dos EUA. No entanto, foi uma tragédia para os países que têm uma equipe econômica composta por bobos e/ou serviçais. O sr. Mantega tinha razões para se queixar, mas não as que ele emitiu publicamente: “As consequências da afirmação de uma grande agência de classificação de crédito americana de que as chances de o governo americano saldar suas dívidas haviam diminuído foram reduzir o custo dos empréstimos do governo americano e elevar esse custo para todos os demais” (“Bumerangue”, pág. 173, grifo nosso). Há outra questão sobre os EUA – aliás, mais de uma – que deixaremos para o próximo artigo. Primeiro, algumas considerações sobre o que Lewis ignora em seu livro. SUBSIDIÁRIAS Vários autores já disseram, e demonstraram, que a chamada “globalização” era, meramente, globalização financeira. Resta, talvez, dizer que esse berro do neoliberalismo significou o domínio dos bancos de outros países pelos grandes bancos norte-americanos. Isso explica, por exemplo, o artigo 63 do “Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”, também conhecido como “Tratado de Lisboa”, que substituiu, sem consulta popular, a “constituição europeia” derrotada nas urnas em vários países: “Artigo 63º: 1) … são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. 2) … são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros” (cf. Jornal Oficial da União Europeia/PT, 30/03/2010, pág. C 83/71, “Versão Consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”, grifos nossos). O texto é explícito: os países da UE, inclusive os da “zona do euro”, abriram mão oficialmente de se defender da especulação financeira externa, isto é, norte-americana. Na verdade, já o tinham feito na prática, a começar pelos países da UE que não adotaram o euro (Inglaterra, Suécia, Polônia, Hungria, Romênia, Dinamarca, Bulgária, República Checa, Lituânia e Letônia). Mas isso foi uma consequência de um fato financeiro: os bancos europeus já haviam se tornado, na prática, subsidiárias dos grandes bancos norte-americanos (o Tratado de Lisboa somente foi assinado em dezembro de 2007 – um ano depois, a crise dos EUA levaria a Europa de roldão). Em suma, os imperialismos alemão, francês e de outros países europeus tornaram-se, por via financeira (facilitada ou permitida pela ocupação militar, que já dura quase 70 anos, da Alemanha, assim como do Japão, pelos EUA), uma espécie de “imperialismo dependente” – ou, se o leitor quiser, um “subimperialismo” ou “imperialismo subsidiário” – que existe dentro dos limites definidos pelo imperialismo norte-americano, e que se presta a ser capanga de seu senhor, através da OTAN. Bem entendido, não pretendemos inventar um novo conceito: apenas descrever um fato. O exemplo mais evidente é, exatamente, o dos bancos alemães. Como observa Lewis, só existem dois grandes bancos privados alemães: o Deutsch Bank e o Commerzbank - que absorveu o terceiro, o Dresdner. Os outros são estatais ou são cooperativas relativamente pequenas de crédito. Tanto o Deutsch quanto o Commerzbank afundaram no dilúvio de “derivativos” que compraram dos bancos norte-americanos. Agiram – e agem - como intermediários dos bancos dos EUA, assim como os bancos islandeses, irlandeses, etc., etc. - com a diferença de que a Alemanha não é um país periférico da UE, tal como a Irlanda ou Portugal, mas o principal país da UE e da “zona do euro”. Quando denominamos os bancos europeus de “subsidiárias” dos bancos norte-americanos não estamos, necessariamente, nos referindo à sua propriedade. No entanto, também essa questão, a da propriedade – isto é, a nacionalidade – em vários casos é bastante duvidosa. Vejamos o maior de todos, o Deutsch Bank, um banco tão grande que, em depósitos, só há um outro na Europa que se lhe compare, o Credit Suisse, com matriz em Zurique, fora da UE e da “zona do euro”. Aparentemente nada há de mais característico da burguesia financeira e monopolista alemã do que o Deutsch Bank. No entanto, oficialmente, 53% dos acionistas do Deutsch são estrangeiros, isto é, não-alemães. Hoje, também oficialmente, 13% deles (eram 16% em 2009) são norte-americanos. O que não inclui a propriedade norte-americana através de filiais de bancos norte-americanos na Alemanha e demais países da Europa, ou em outras partes do mundo, nem aquela sob controle de bancos europeus que, na verdade, são controlados pelos bancos norte-americanos. Notemos que 75% das ações do Deutsch pertence a outros bancos. E esses são números retirados do último relatório anual do banco –, portanto, merecem estar sob suspeita. INVESTIGAÇÃO O Deutsch, no período anterior à crise, não agiu apenas como intermediário dos bancos norte-americanos na Europa - como foi o caso de alguns bancos franceses (especialmente o BNP Paribas e o Société Générale; a propósito, a França só tem – se é que tem – mais um grande banco privado, o Crédit Lyonnais; não há setor mais monopolizado, onde o mercado tenha sido mais banido ou tão manietado, quanto o chamado “mercado financeiro”). O fato é que o Deutsch agiu, em Wall Street, e não apenas na Europa, como um banco norte-americano em todo o período imediatamente anterior à crise – de 2004 até a quebra do Lehman Brothers, o Deutsch Bank lançou, em Wall Street, US$ 32 bilhões em derivativos sobre as hoje notórias “hipotecas sub-primes” dos EUA. E essa magnitude foi o que se conseguiu comprovar na investigação do Senado dos EUA sobre a crise, chefiada pelos senadores Carl Levin (democrata/Michigan) e Tom Coburn (republicano/Oklahoma). O relatório dessa investigação de dois anos (“Wall Street and the Financial Crisis: Anatomy of a Financial Collapse”) foi abafado pela mídia. E não foi, certamente, devido à sua extensão de 5.900 páginas - a versão sem os documentos citados tem 639 páginas -, pois o senador Levin tomou a providência de sintetizá-lo em seu site. Algumas partes dos depoimentos no Subcomitê Permanente de Investigações do Senado, que Levin preside, foram reproduzidas no documentário “Inside Job”. PAPÉIS Um dos trechos mais divertidos do livro de Lewis é o relato de um empresário irlandês sobre um banqueiro que se “aborreceu” com ele quando tentou quitar uma dívida. Não é para menos: o que é um banco sem devedores? Se todas as dívidas fossem quitadas, seria uma catástrofe para os bancos, por várias razões. Hoje em dia, a principal é que os papéis especulativos, os “derivativos”, são lançados em cima de dívidas – mais exatamente, são “derivados” de papéis que são títulos de dívida. Esses papéis de papéis são uma invenção do maior banco dos EUA – o JP Morgan, hoje JP Morgan Chase, depois que os Rockefellers assumiram formalmente o seu controle – em 1994. Uma das coisas mais hilariantes, depois disso, foi a tentativa de alguns “historiadores econômicos” de remontar a origem desses papéis ao Japão feudal do século XVII, e, até, aos primórdios do surgimento do homem sobre a Terra. Mais interessante é a narrativa de uma jornalista inglesa, aliás, editora do “Financial Times”: Gillian Tett, “Fool’s Gold - How the Bold Dream of a Small Tribe at J.P. Morgan Was Corrupted by Wall Street Greed and Unleashed a Catastrophe”, Free Press, 2009 (o livro pretende ser uma defesa do J.P. Morgan – mas, com uma defesa dessas, cheia de episódios hediondos, melhor seria entregar os inventores dos “derivativos” logo ao carrasco). O “derivativo” mais famoso é um papel denominado “credit default swap” (CDS). O que se chama “swap” é uma operação em que um papel substitui outro, com indexador diferente. Simplificadamente: um especulador tem um papel indexado pelo câmbio e, por exemplo, troca, com outro especulador, esse título por um indexado, digamos, pela taxa de juros do Banco Central. Os dois especuladores estão, portanto, apostando em quem (ou qual título) terá o maior rendimento num determinado prazo – quem perder pagará ao outro a diferença. Nada disso se distingue de um cassino, exceto pela complicação do “mercado financeiro”, imprescindível para enganar os trouxas, e pelo fato de que nos cassinos é preciso ter dinheiro verdadeiro para apostar – ou o sujeito não vai adquirir as fichas com que são efetivadas as apostas. No cassino financeiro, não. Vejamos o “credit default swap” (CDS). “Credit default” significa inadimplência – uma dívida em que houve “default” é uma dívida que não foi paga. O CDS, portanto, deveria ser uma espécie de seguro em caso de inadimplência do outro título – que, por sua vez, é baseado em outros papéis, por exemplo, hipotecas sobre casas. Mas, uma empresa de seguros somente pode (ou poderia, pois até isso, hoje em dia, está bastante avacalhado) segurar alguma coisa se tiver cobertura – isto é, se possuir dinheiro, ou um ativo real conversível em dinheiro, que permita, em caso de necessidade, pagar o seguro. Como frisa Lewis, a diferença do CDS em relação a um seguro “normal” é que ele não tem cobertura – é apenas um papel, supostamente lastreado em hipotéticos ganhos futuros (isto é, ganhos que não existem) com a especulação, mas, na verdade, um papel que existe para se especular sem que haja qualquer ativo real, dinheiro ou propriedades, de valor comparável - exatamente como o preço das casas nos EUA não tinha (e não tem) qualquer relação com o preço dos “derivativos” lançados em cima de suas hipotecas. Certamente, isso é apenas uma “pirâmide” (ou, como chamam os norte-americanos, um “esquema Ponzi”, nome derivado de um famoso vigarista, Charles Ponzi). Mas é uma pirâmide de um tamanho que nenhum faraó sonhou – a última estimativa do BIS, o chamado “banco central dos bancos centrais”, correspondente a junho de 2011, é que havia US$ 708 trilhões em “derivativos” - ou seja, 11 vezes a produção de valor adicionado a mercadorias e serviços no mundo, isto é, o PIB mundial, estimado para 2011 em US$ 65 trilhões (cf. BIS, “OTC derivatives market activity in the first half of 2011”, 16/11/2011; The Economist, “In search of growth”, 25/05/2011). Apesar de óbvio, é adequado lembrar que a falta de cobertura dos papéis não impede que o dinheiro ganho com eles possa se converter em propriedades, em ativos reais - desde palácios na Côte D’Azur até ex-estatais ou empresas privadas ex-brasileiras. Nesse sentido, a comparação entre o “valor” dos derivativos e o PIB mundial é imprecisa: este último se refere à produção de valor, e apenas durante um ano, enquanto que existe muito mais valor, já produzido, no mundo - isto é, já cristalizado em propriedades. Depois dessa breve excursão pela vigarice globalizada (algo em que o indigitado Charles Ponzi jamais pensou – foi necessário o JP Morgan para concebê-la), voltemos ao Deutsch Bank no período anterior à crise. MISTÉRIO O “gestor” de derivativos do Deutsch era um americano, Greg Lippman, tão bem sucedido que teve sua biografia financeira incluída num livro que parece humorismo, pela coleção de trambiqueiros que reúne: “The Greatest Trades of All Time: Top Traders Making Big Profits from the Crash of 1929 to Today”, de Vincent Veneziani. Qual era o mistério do espetacular (e bilionário) sucesso de Lippman – e, portanto, do Deutsch Bank – em Wall Street? Simplesmente, fabricar títulos podres, vendê-los a alguns patos, e apostar contra eles, através de outros títulos. A investigação do Senado dos EUA publicou várias mensagens e documentos internos, mostrando que Lippman e o Deutsche tinham, desde 2007, chegado à conclusão de que a bolha dos derivativos sobre hipotecas ia estourar, de que era, literalmente, um “esquema Ponzi”, de que os títulos que vendiam não passavam de “bosta” (literalmente: “crap”), etc. - e que o Deutsch estava apostando contra seus próprios títulos. Evidentemente, não era apenas o Deutsch Bank que fazia isso. Todos os chamados “bancos de investimentos” - isto é, de especulação - de Wall Street (Bear Stearns, Lehman Brothers, Merril Lynch, Morgan Stanley, Goldman Sachs e Salomon Brothers) faziam isso, assim como o JP Morgan Chase, Citigroup, Bank of America, etc. O jogo era ganhar com a crise. O que eles não parecem ter previsto foi o tamanho da crise que estavam provocando, que foi muito além dos derivativos sobre as hipotecas, porque havia causas muito mais profundas que a trapaça – ainda que colossal – em cima dessas hipotecas. A rigor, o estouro dos papéis lançados em cima do mercado imobiliário dos EUA foi um sintoma agudo de uma doença gravíssima, causada pelo engessamento da economia imperialista por meia dúzia de cartéis e monopólios financeiros.