segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A Revolta da Chibata: há 100 anos, a saga do Almirante Negro e seus companheiros

Há 100 anos, no dia 22 de novembro, a Revolta da Chibata colocava fim ao mais repugnante resquício, até então, da escravidão. Apesar de decorrido um século, há ainda polêmica sobre esse acontecimento histórico. No entanto, a Marinha de hoje não é a mesma de um século atrás. Portanto, é possível ver que a Revolta da Chibata foi um acontecimento que livrou-a de uma mancha indigna.
A chibata fora introduzida na Marinha pelo almirante Cochrane e outros ingleses durante a Guerra de Independência. Em 1862, os castigos corporais levaram a uma polêmica parlamentar, com a defesa, pelo então deputado Tavares Bastos, da sua abolição. Permaneceu, porém, aquela mentalidade escravocrata, retratada por Gastão Penalva no almirante monarquista Luís Filipe Saldanha da Gama: “Saldanha, sobretudo, foi um temível chibateiro. Educado e fidalgo, originário do mais precioso estofo marinheiro - descendente dos Gama - filho dileto dos mais limpos armoriais do reino, impunha no seu navio a deplorável usança como torpe relíquia a conservar-se nos obscuros museus do crime” (cit. por Evaristo de Moraes Filho in Edmar Morel, “A Revolta da Chibata”).

A proclamação da República tornou ilegal a chibata. Os monarquistas da revolta da Armada a exumaram. Foi outra vez proibida pelo almirante Júlio César Noronha, ministro da Marinha do governo Rodrigues Alves. Mas, a despeito da posição do seu sucessor, almirante Alexandrino de Alencar, que conhecia bem - e amistosamente - desde jovem o líder da Revolta da Chibata, ela voltara a afligir os marinheiros, em geral negros, da então terceira maior esquadra do mundo.

Após um castigo de 250 chibatadas de um marinheiro do encouraçado Minas Gerais, a revolta estourou. Seu líder, o principal timoneiro do encouraçado, João Cândido, telegrafou ao Palácio do Catete: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já”.

E, na proclamação ao ministro da Marinha, depois de apresentar suas razões, diziam os marinheiros: “Por isto pedimos a V. Exa. abolir o castigo da chibata e os demais bárbaros castigos pelo direito da nossa liberdade, a fim de que a Marinha Brasileira seja uma Armada de cidadãos, e não uma fazenda de escravos, que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados”.

O governo do marechal Hermes da Fonseca, que recém tomara posse, enviou o comandante da Marinha e deputado José Carlos Carvalho para conversar com os marinheiros. Eis um trecho do relato deste comandante ao Congresso:

“... perguntei quem se responsabilizava por aqueles atos. Responderam-me: ‘todos’. E um deles acrescentou: ‘estamos em um verdadeiro momento de desespero; sem comida, muito trabalho, e as nossas carnes rasgadas pelos castigos corporais que chegam à crueldade. Não nos incomodamos com o aumento de nossos vencimentos, porque um marinheiro nacional nunca trocou por dinheiro o cumprimento de seu dever e os seus serviços à Pátria. (....) Nada queremos senão que nos aliviem dos castigos corporais, que são bárbaros, que nos deem meios para trabalhar compatíveis com nossas forças. V. Sª pode percorrer o navio, para ver que está tudo em ordem, e até o nosso escrúpulo, sr. comandante, chegou a este ponto: ali estão guardando o cofre de bordo quatro praças, com as armas embaladas; para nós aquilo é sagrado. Só queremos que o sr. presidente da República nos dê liberdade, abolindo os castigos bárbaros que sofremos, dando-nos alimentação regular e folga no serviço. V. Sª vai ver se nós temos ou não razão’. Mandaram vir à minha presença uma praça que tinha sido castigado na véspera. As costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.

Posteriormente, no discurso em que propôs a anistia aos revoltosos, diria o senador Ruy Barbosa:

“... é necessário não esquecermos o valor da gente que tripula essas máquinas de guerra. Digamo-lo, com alguma vaidade, com algum desvanecimento, por honra dos nossos compatriotas. O que constitui as forças das máquinas de guerra não é a sua mole, não é a sua grandeza, não são os aparelhos de destruição – é a alma do homem que as ocupa, que as maneja, e as arremessa contra o inimigo. As almas dessas máquinas que povoam os nossos grandes dreadnoguths [vasos de guerra], hoje, em nossa baía, sejamos justos (…), as almas desses homens têm revelado virtudes que só honram a nossa gente e a nossa raça. (…) Gente dessa ordem não se despreza. (…) Estes castigos foram abolidos por ato legislativo do Governo Provisório. Abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas, quando nos batíamos pela liberdade, abusos que fazem desconhecer no soldado e no marinheiro as qualidades principais daqueles que têm de expor a vida para defender a Nação. A escravidão começa por desmoralizar e aviltar o senhor antes de desmoralizar o escravo”.

No entanto, não era essa a mentalidade predominante no governo da época – o que haveria de ser demonstrado pela traição à anistia – que é melhor representada, como disse Evaristo de Moraes Filho em seu prefácio à obra clássica de Edmar Morel, “A Revolta da Chibata”, pelo elitismo do então ministro da Guerra, Dantas Barreto, ao descrever os danos à casa do comandante do Batalhão Naval: “A casa do comandante Marques da Rocha, um primor de arte nos seus arranjos e decorações interiores, onde aos domingos aquele oficial levava homens da mais elevada categoria social do Brasil para almoços ou jantares especiais, estava como as outras construções da ilha [das Cobras], toda crivada de balas, com as paredes esboroadas, pinturas e quadros inutilizados por completo”.

Aos 87 anos, no dia 28 de março de 1968, o líder da revolta da Chibata concedeu entrevista para os arquivos do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Os trechos a seguir são dessa entrevista, realizada pelo historiador Hélio Silva, pela jornalista Dulce Alves, pelo superintendente do museu, Sérgio Junqueira e por seu diretor-executivo, Ricardo Cravo Albim, com a paritcipação do filho mais novo de João Cândido, Adalberto Cândido.
Entrevista do líder da Revolta da Chibata ao MIS, em 1968
Hélio Silva - Se hoje você voltasse a ser o mesmo marujo daquele dia [22 de novembro de 1910], você teria agido hoje como agiu?
JOÃO CÂNDIDO - Teria agido da mesma forma.

H.S. - Com que idade você ingressou na Marinha?
JOÃO CÂNDIDO - Com 14 anos. Pertenci à Marinha de 5 de dezembro de 1895 a 30 de dezembro de 1912. Eu entrei na Marinha com 14 anos e entrei bisonho. Entrei bisonho, toda luz que me iluminou, que me ilumina, graças a Deus, que é pouca, foi adquirida, posso dizer, na Marinha.

H.S. - Você teria, se possível, pertencido até hoje à Marinha?
JOÃO CÂNDIDO - Certamente. Eu estaria afastado já, pois já teria passado da idade.

H.S. - Você não guarda queixas da Marinha?
JOÃO CÂNDIDO - Não, nenhuma.

H.S. - Você não tem queixas do mar?
JOÃO CÂNDIDO - Não, o mar é meu amigo.

H.S. - No Brasil, legalmente, o castigo corporal foi abolido com a proclamação da República...
JOÃO CÂNDIDO - O terceiro decreto assinado por Deodoro foi abolindo o castigo corporal nas Forças Armadas.

H.S. - Por que faltas eram castigados os marinheiros?
JOÃO CÂNDIDO - Pelas mínimas, mínimas faltas. Era só antipatia. Tomava antipatia do oficial, pronto.

H.S. - Como era chicoteado o marinheiro?
JOÃO CÂNDIDO - Amarrados em um aparelho, um ferro que tem na coberta dos navios, eram expostos ali, amarrados e castigados brutalmente.

H.S. - Nus da cintura para cima?
JOÃO CÂNDIDO - Nus da cintura para cima.

H.S. - E a marujada formada, era um espetáculo público?
JOÃO CÂNDIDO - Era um espetáculo público.

H.S. - Como era esse instrumento de suplício?
JOÃO CÂNDIDO - Quando não eram as varas de marmelo, era uma corda intitulada corda de barca, linha de barca, e sempre os carrascos colocavam agulhas e pregos, preguinhos pequenos, na ponta cobertos...

H.S. - Alguma vez você foi chicoteado?
JOÃO CÂNDIDO - Não senhor, graças a Deus.

Ricardo Cravo Albin - Por que, com o seu tratamento, pelo menos ao senhor um tratamento correto, o que lhe deu o germe que culminou nesta revolta?
JOÃO CÂNDIDO - Vamos entrar nesse assunto. Já de moço, a rapaziada congregava muitos moços, eles sempre tinham uma certa confiança em mim. Eu, mesmo em criança, já era líder até dos velhos. Eu tinha interesse pelo bem estar de todos, pela saúde de todos e essas coisas.

H.S. - Havia uma conspiração em curso, um movimento articulado para um determinado protesto ou foi uma coisa que num dado momento espontâneo se generalizou?
JOÃO CÂNDIDO - Havia uma conspiração, havia uma conspiração de protesto. E a Marinha seguramente sabia, a Marinha toda sabia. Foi um movimento organizado. Levamos mais de dois anos como movimento organizado.

R.C.A. - Quais eram os outros chefes?
JOÃO CÂNDIDO - Dias Martins, que comandou mais tarde o cruzador “Bahia”, Gregório do Nascimento que mais tarde comandou o encouraçado “São Paulo”, André Avelino que comandou o encouraçado “Deodoro”. Todos congregaram os marinheiros dos navios em que serviam e outras repartições.

H.S. - Esse movimento pretendia, realmente, tomar conta de navios e fazer um ultimato ou pretendia lançar apenas um protesto, esperando que fosse bem ouvido?
JOÃO CÂNDIDO - Não senhor, nós pretendíamos era impor, impor como impusemos. Nada nos foi oferecido, nós só impusemos, queremos isso e tem que se decidir por isso. Há mil inimigos, inimigos a que pouca importância dou, eles criticam a revolta dos marinheiros, por esse ou aquele motivo. A chibata, na Marinha do Brasil, aqueles oficiais ingleses, Cochrane e outros que eram piratas na Marinha inglesa, expulsos de lá andaram pelo mundo roubando. Primeiro, organizou a Marinha chilena, depois veio para o Brasil, aqui no Brasil ele impunha. Eu, quando vim para a Marinha, ainda encontrei uma porção de oficiais ingleses contratados. Oficiais austríacos, portugueses, ainda na Marinha.

H.S. - No momento em que você tomou conta do navio, você tinha uma especialização, era marinheiro de primeira classe, portanto, você era um marinheiro já com certos estudos. Era o primeiro timoneiro...
JOÃO CÂNDIDO - Do Minas Gerais.

H.S. - Como foi possível você, assumindo o comando, dirigir as manobras do navio, você já tinha prática de fazer isso sob o comando dos oficiais?
JOÃO CÂNDIDO - Já, já. A gente já tinha prática, estava tudo dividido. (...) todas as frações, quem devia ocupar os postos de combate...

H.S. - Então a marujada executou aquilo que estava habituada a executar, apenas os oficiais não estavam dando ordens...
JOÃO CÂNDIDO - Quem estava dando as ordens era eu. Para o Minas Gerais e para todos os navios que haviam aderido ao movimento de pronto, além de que julgamos inconveniente e dispensamos. Dispensamos, não, aproveitamos a tripulação nos navios que estavam com a revolução.

H.S. - Você declara em seu depoimento: “o resto foi rotina de um navio de guerra”.
JOÃO CÂNDIDO - Além dos conhecimentos que já tínhamos na Marinha, ganhamos mais conhecimentos durante o tempo que estivemos lá assistindo à construção da nova esquadra. Eu, na Marinha, posso dizer, a arte de governar navio não é difícil, mas é espinhosa.