quinta-feira, 22 de novembro de 2012

VIVA NOVEMBRO

Independente de qualquer questão após 105 anos da morte de zumbi dos palmares, hoje o Estado Brasileiro,começa a mudar a sua cara. Temos a lei 10.639/03, O Estatuto da Igualdade Racial, O Sistema de Cotas, um Senador Negro, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, A lei do 20 de Novembro, A lei do dia Nacional da Umbanda e agora a posse do Ministro Joaquim Barbosa, o primeiro negro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tribunal que durante anos era composto pela elite brasileira e hoje senta na cadeira de presidente um negro que estudou em escola pública. Mas falta muito não é só isso que o Estado Brasileiro irá pagar a dívida que tem com o nosso povo. Falta muito como o fim do genocídio, o fim da escravidão de crianças, o fim do racismo institucional e por ai vai..Pretas e Pretos desse Brasis, vamos continuar na luta. Viva Novembro.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

O TRADICIONAL X MODERNO

No principio o terreiro era apenas uma casa simples de chão batido, onde muitas vezes era iluminada á velas ou candeeiro. Os mais avançados usavam luminárias a gás. OIs orixás eram simples, usavam chita barata, palha da costa, miçangas, búzios ou até mesmo juta crua ou saco de alinhagem.As comidas dos orixás eram cozidas de maneira bruta. Ela uma pipoca feita na areia da pr aia, as panelas de barro, milho que levava horas cozinhando, as colheres eram de pau, tudo era simples. A decoração do barracão costumava ser em grandes festas feitas com palha de dendezeiro. As comidas eram as carnes dos animais sacrificados ou feito segundo a iguaria dos orixás que eram festejados. As bebidas eram suco de frutas, mingais e até mesmo leite de vaca ou cabra, conforma o que se festejava. Em festa de Orixás Borós (Homens) ainda se serviam bebidas alcóolicas produzidas no terreiro, como aluá, jurema, gengibre ou outras.Tudo na sua maior si... mplicidade. E isso acontecia, desde os tempos dos escravos até os idos dos anos 80. Hoje, os tempos mudaram: o chão batidos de cinzas, deram lugar ás lustrosas cerâmicas e mármores carrara, paredes com barro fixado ás varas entrelaçadas cderam espaço ao reboco revestido, quando não em pedras, às massas corridas, texturas em massa ou tintas de qualidade. O teto que antes pudera ser de palha em sua originalidade hoje é com telhas de cerâmica forrado a estuque de PVC ou madeira onde se apoiam suntuosos lustres que aprimoram a iluminação. Os Orixás que antes se trajavam de chita e palha ou juta hoje cedem lugar ás ricas sedas e brocados, rendas e bordados feitos de miçangas, pedrarias e cristais. Hoje, até orixás de simplicidade absoluta como Omolú, já estão sendo paramentados sem palha da costa e com ricos tecidos. As comidas seguem um cardápio digno de grandes restaurantes onde nem mesmo as carnes dos animais sacrificados não são servidas. As bebidas hj são as degustativas champanhas e sidras, refrigerantes, cervejas e outras bebidas alcoolicas. Comidas são cozidas na panela de pressão com utensilios de inox. Processadores e liquidificadores preparam o que antes só o pilão fazia... O que houve??? O que está havendo??? Evolução??? Sim... Evolução completa. Isso é bom. É muito bom. mas não esqueçamos que os grandes e mais importantes fundamentos são concedidos na originalidade como ele vem sendo feito FONTE: TEXTO RETIRADO DO FACEBOOK

A legislação trabalhista de Getúlio e seus inimigos

Não há mais o que flexibilizar na legislação trabalhista, já exaustivamente maleabilizada e alterada em detrimento dos assalariados BENEDITO CALHEIROS BOMFIM* Enumeremos outras significativas mudanças introduzidas no Estatuto celetista, em sua maior parte desfavoráveis aos trabalhadores. Ao art. 58, acrescentou-se parágrafo para não serem computadas como extraordinárias "as variações de horário no registro de ponto não excedentes de 5 minutos, observado o limite máximo de 10 minutos diários". Outro parágrafo ao mesmo artigo dispõe que a hora in itinere [em trânsito para o trabalho] "não será computada na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer condução". Alterou-se o mesmo dispositivo para instituir o "trabalho em tempo parcial", de duração não excedente a 25 horas semanais, com salário proporcional, permitido ao empregado com contrato vigente optar por tal sistema, através de negociação (Medida Provisória nº 2.164/01). O art. 134 foi adicionado de um parágrafo, para admitir que, "em casos excepcionais as férias serão concedidas em dois períodos". Permitiu-se a conversão de "‘1/3 do período de férias" em abono, bem como, mediante acordo coletivo, a concessão de férias coletivas ( art. 143). Excluiu-se do vínculo empregatício os associados de cooperativas, bem como entre estes e os tomadores de serviços daquela (art. 442, parágrafo único ). O contrato a prazo determinado, em sua redação original, não estabelecia condições para a sua validade, o que passou a ser feito pelo Decreto-Lei nº 229/67, podendo ser prorrogado mais de uma vez. A teor da Medida Provisória nº 1951-21/2000, o percentual de recolhimento do FGTS foi reduzido para 2%, nas hipóteses que prevê. Incumbe às partes, em ajustes coletivos, fixar a indenização devida nos casos de rescisão antecipada do contrato. O "contrato de experiência", não previsto no texto primeiro da CLT, foi introduzido pelo Decreto-Lei nº 229/76. O art. 453 foi reformulado para estabelecer que a aposentadoria espontânea do empregado importa extinção do vínculo empregatício sem ônus para a empresa. Deu-se nova redação ao art. 458, para não serem consideradas salários, despesas com educação, transporte para o trabalho, assistência médica, hospitalar, odontológica, seguro de vida, previdência privada. A Lei nº 10.272/01 modificou o art. 467 consolidado, para, em caso de rescisão, reduzir a 50% o pagamento do salário incontroverso, que, antes, era devido em dobro, excepcionando ainda os entes públicos desse acréscimo. Ao art. 469, a Lei nº 6.203/75 introduziu parágrafo para, em caso de necessidade, permitir a transferência do empregado para localidade diversa da que resultar do contrato de trabalho. O Decreto-Lei nº 1.535/77, reformulando o art. 138 da CLT, proíbe ao empregado prestar serviços a outro empregador durante as férias. Ao empregador ficou facultada, ainda, a concessão de férias coletivas (Decreto-Lei nº 1.535/77), não previstas na CLT primitiva. A Lei nº 9.601/98 e a Medida Provisória nº 1.702-2/98 alteraram disposições celetistas para criar outras modalidades de contrato por prazo determinado, inclusive por "tempo parcial", assim considerado aquele em que o empregado não trabalha mais de 5 horas semanais, além das legalmente previstas. Essa mesma Lei instituiu o banco de horas, pelo qual, mediante negociação, a empresa pode estipular jornada para todo o ano, segundo flutuações do negócio, com prazo de 1 ano para compensação. Criou-se, também, (Lei nº 9.608/98), o contrato de trabalho voluntário, cuja principal característica é a prestação de serviço não remunerada. A Medida Provisória nº 2.180-35/2000 introduz ao art. 884, o § 5º, afastando a exequibilidade de sentenças transitas em julgado envolvendo "aplicação ou interpretação tida como incompatível com a Constituição". Ao art. 476 da CLT foi acrescida a letra A, para admitir, mediante convenção ou acordo coletivo, suspensão do contrato de trabalho por um período de 2 a 5 meses, quando, com sua aquiescência, participe o empregado de curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo, desobrigado o empregador de pagar-lhe salário. O prazo em causa poderá ser prorrogado. Ao art. 625 adicionou-se a letra D para sujeitar "qualquer demanda trabalhista", antes de seu ajuizamento, à Comissão de Conciliação Prévia, impedindo o direito de acesso direto das reclamações do trabalhador à Justiça, o que contravém a C.F. [Constituição Federal], que assegura que nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser subtraída à apreciação do Judiciário. A Consolidação Trabalhista não contemplava, inicialmente, a figura da convenção coletiva, mas, unicamente, os contratos coletivos, cuja celebração sujeitava-se a regras extremamente simples, tornadas, porém, complexas pelas formalidades introduzidas naquele diploma legal com o instituto da convenção coletiva pelo Decreto-Lei nº 229/67. A ação sindical no setor público sofreu limitação imposta pelo Decreto nº 20.066/96. Ao Presidente do Tribunal Superior do Trabalho foi facultado emprestar efeito suspensivo aos recursos de decisões proferidas em dissídio coletivo de natureza econômica (Lei nº 4.725/65), faculdade que vem sendo exercitada quase sistematicamente. O art. 13 da Lei nº 10.192/01 determina que, no acordo ou convenção e no dissídio coletivo, é vedada a estipulação ou fixação de cláusula de reajuste ou correção salarial automática vinculada ao índice de preço. Tantas são as exigências feitas pela Instrução Normativa nº 4, do TST, para a instauração de dissídios coletivos de natureza econômica, que na maioria dos casos são eles julgados extintos, inviabilizando sua apreciação. Pautando-se pela filosofia neoliberal, os tribunais, especialmente o Tribunal Superior do Trabalho, na interpretação e aplicação da legislação trabalhista, vêm restringindo ainda mais o seu alcance e efeitos. Pela sua relevância, comecemos pela greve, cujo exercício é assegurado plenamente na C.F. Pois bem, o exercício desse direito fundamental do trabalhador torna-se impraticável, porque o TST considera a paralisação do trabalho quase sempre abusiva, tantos e tais são os pressupostos exigidos para sua legitimação. A severidade com que encara a paralisação coletiva leva a Corte a aplicar multas tão altas que, a serem pagas, tornaria impossível a sobrevivência da entidade multada. A substituição processual, uma das mais úteis e significativas conquistas dos trabalhadores e suas entidades de classe, inclusive por ser instrumento de economia e celeridade processual, tem sido objeto de tantas restrições, que, na prática, perdeu boa parte de sua eficácia e utilidade. O TST, e com ele toda a Justiça do Trabalho, abriu mão de seu poder normativo, que tanto servia aos sindicatos mais frágeis, sem capacidade de negociação. Como se não bastasse, capitaneados pelo TST, tribunais trabalhistas, com surpreendente e incompreensível liberalidade, vêm deferindo liminares em ações rescisórias, para sustar execução de sentenças, com acintosa ofensa à coisa julgada e em afronta à letra do art. 489 do CPC, que veda expressamente - e para esse fim especial assim prescreveu - se suspenda a execução da sentença rescindenda. A jurisprudência trabalhista sumulada, além de conceder a prescrição total nos casos que envolvam prestações sucessivas decorrentes de alteração contratual, ainda restringiu a dois anos do ajuizamento da ação o prazo prescricional em outras hipóteses, tais como: pedidos de complementação de aposentadoria, correção de desvio de função, diferenças de equiparação salarial. Onde os tribunais trabalhistas estão também exorbitando, com danosas repercussões para as relações de trabalho e de postos de emprego, é na interpretação extensiva que estão dando às normas que regem a terceirização de mão-de-obra, admitindo com frequência a licitude da contratação de pessoal vinculado à atividade-fim da empresa tomadora de serviço. Relatório do Tribunal de Contas da União, publicado na imprensa em 18.06.02, informa que o Governo terceirizou, desde 1995, quase 30 mil postos de trabalho. O processo equivale a um repasse anual de R$1,5 bilhão para prestadores de serviço e organismos internacionais, equivalente a 24% de todos os gastos de pessoal civil ativo no Brasil. O Enunciado nº 41 consubstanciava a interpretação do art. 477, restritivamente, nestes termos: "A quitação, nas hipóteses dos §§ 1º e 2º do art. 477, da CLT, concerne exclusivamente aos valores discriminados no documento respectivo". O Enunciado nº 330, substituindo o 41, ampliou, in pejus do trabalhador, os pressupostos para a validade do instrumento de rescisão, dispondo que a quitação "tem eficácia liberatória em relação às parcelas expressamente consignadas no recibo, salvo se oposta ressalva expressa e especificada ao valor dado à parcela ou parcelas impugnadas". Eis outro exemplo da frequente mudança de orientação jurisprudencial, em prejuízo do assalariado: O Enunciado nº 265, firmou o entendimento de que "a transferência para o período diurno de trabalho implica na perda do direito ao adicional noturno". Com isso, tornou sem efeito a orientação, antes pacífica, inclusive do Pleno do TST, no sentido de que, mesmo suprimido o serviço noturno que se tornara habitual, o valor do adicional incorporava-se ao salário. Os ressarcimentos reconhecidos judicialmente ao trabalhador - ao contrário do que acontece com a sucumbência na Justiça comum - são desfalcados do valor dos honorários devido a seu advogado, salvo quando perceba menos que o dobro do salário mínimo e esteja assistido por seu sindicato (Enunciado nº 219). Como se vê, a legislação trabalhista vem passando por incessante maleabilização, quase sempre em detrimento dos interesses e direitos dos empregados. O Presidente do TST, ministro Francisco Fausto, criticando a forma com que o Governo quer extinguir direitos do trabalhador, afirmou que a Corte que dirige já vem adotando decisões flexibilizadoras da CLT. Ainda recentemente o Tribunal Superior julgou legal cláusula de convenção coletiva excluindo o pagamento de 18 minutos extras de jornada diária aos trabalhadores, além de outra que prevê o não-pagamento do adicional noturno para os que cumprem jornada de 13h às 23h 18min, com 30 minutos de intervalo. A ineficiência da fiscalização, nas empresas, do cumprimento da legislação trabalhista, faz parte da política liberal de enfraquecimento da presença do Estado nas relações de trabalho. A todos esses fatores negativos, junte-se a agravante consistente na circunstância de que os direitos trabalhistas que remanescem, quando pleiteados na Justiça, à exceção dos sujeitos a rito sumaríssimo, são neutralizados pela excessiva demora em sua tramitação, benéfica aos empregadores. Não satisfeitos com essa poda que vem se fazendo nos interesses e direitos dos trabalhadores, o Governo e entidades patronais pretendem reformar o art. 618 da CLT, para acabar com o que nela resta de tutelar do hipossuficiente, particularmente seus arts. 468 e 444. Como observa o ministro Arnaldo Sussekind, se o questionado Projeto governamental vier a ser convertido em lei, inúmeros direitos dos trabalhadores serão certamente reduzidos, entre eles: "a. Valor da remuneração do repouso semanal, que poderá ser em qualquer dia da semana; b. redução dos adicionais de trabalho noturno, insalubre ou perigoso e de transferência provisória do empregado; c. ampliação do prazo para pagamento do salário; d. ampliação da hora do trabalho noturno; e. ampliação das hipóteses de trabalho extraordinário; f. extensão da eficácia da quitação de direitos; g. redução do período de gozo das férias, ampliação do seu fracionamento e alteração da forma de pagamento da respectiva remuneração, observado, a nosso ver, o disposto na Convenção da OIT nº 131, que o Brasil ratificou; h. redução dos casos de ausência legal do empregado, inclusive da licença-paternidade; i. redução do valor do depósito do FGTS; j. transformação do 13º salário em parcelas mensais". ("Prática Jurídica", maio/2002, p. 41). O professor Cláudio Armando Couce de Menezes afirma que a negociação in pejus do trabalhador já vem ocorrendo no Brasil, do que são exemplos: a. supressão de intervalos para almoço e refeição; b. pagamento, pelo frentista de posto de gasolina, de cheque devolvido; c. limitação das horas in itinere. O trabalhador fica à disposição do empregador em transporte por este concedido, pelo menos duas horas diárias, mas o pacto coletivo determina o pagamento de apenas 1 hora; d. redução do período de estabilidade por acidente de trabalho; e. ampliação do prazo para anotação das CTPS, com criação de um "período de experiência" não previsto em lei; f. hora noturna de 60 minutos. (Jtb,13.05.02, p. 19-914/7) A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho divulgou estudo elencando 57 itens relacionados com direitos previstos na CLT, que, se aprovado o Projeto de reforma desta, poderão ser alterados, em prejuízo dos assalariados, por via de negociação coletiva. (apud "Jornal dos Trabalhadores no Comércio do Brasil", maio/2002, p. 16). CONCLUSÃO Pode-se, pois, dizer que, salvo a irrecusável necessidade de suprimir a anacrônica contribuição sindical e mais alguns poucos pontos suscetíveis de modernização e aperfeiçoamento, inclusive na área da organização sindical, não há mais o que flexibilizar na legislação trabalhista, já exaustivamente maleabilizada e alterada em detrimento dos assalariados. A agravar o quadro descrito de precarização das relações de trabalho, sobressai o efeito do impacto do desemprego que fragiliza as associações sindicais, tornando-as impotentes para sustentar reivindicações outras que não a manutenção de postos de emprego, obtida frequentemente à custa de perdas salariais e outros direitos legais e contratuais.

terça-feira, 19 de junho de 2012

“Cantiga de esponsais”- Machado de Assis

(...) Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. (...) MACHADO DE ASSIS Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção. Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão", — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; — ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua. Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha. — Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha. — Eh! eh! adeus, sinhá, até logo. Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele... Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única de tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: — a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem ideia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada. E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta. — Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado. — Sinhô comeu alguma coisa que fez mal... — Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica... O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico. — Para quê? disse o mestre. Isto passa. O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final. "Está acabado", pensava ele. Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras: — Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas... Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo, e não concluídas. E então teve uma idéia singular: rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra. — Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão... O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza. — Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar... Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá... — Lá, lá, lá... Nada, não passava adiante. E, contudo, ele sabia música como gente. - Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré... Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam. — Lá... Lá... Lá... Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça, embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Paradoxo: Crise Política na Cultura X Participação Social por Charles Narloch e Patricia Canetti

Carta dos conselheiros titulares de artes visuais e arte digital no Plenário do CNPC Caros colegas, Temos pela frente um desafio que precisamos responder à altura: a criação e renovação dos Colegiados Setoriais do Conselho Nacional de Política Cultural - CNPC, junto ao Ministério da Cultura - MinC, para o período 2012 a 2014. Os membros dos Colegiados Setoriais participam da formulação de políticas públicas de cultura no Governo Federal e avaliam a aplicação do Plano Nacional de Cultura. Exercem um papel fiscalizador das ações do MinC, cobrando pertinência e coerência em sua execução. O CNPC deve ser o mais legítimo canal de diálogo com o MinC, assim como ocorrem com os conselhos nacionais das demais áreas de governo. São dezenove segmentos com representação da sociedade civil no CNPC. Todos são eleitos democraticamente. Se pensarmos estrategicamente - e deixarmos de lado o pensamento segmentado - podemos afirmar que a participação política das artes visuais naquela instância cresceu desde o início da criação do Sistema Federal de Cultura, em 2005. Atualmente teremos dois Colegiados Setoriais diretamente relacionados à arte contemporânea - artes visuais e arte digital - e quatro outros de áreas afins, que anteriormente também eram vinculadas pelo MinC às artes visuais: arquitetura, artesanato, design e moda. Como conselheiros titulares de artes visuais e arte digital no Plenário do CNPC, pedimos a atenção de todos para a importância deste espaço conquistado de participação social e, principalmente, neste momento específico, de renovação e ampliação. Quase sem divulgação pelo MinC, está deflagrado o processo de eleição dos delegados estaduais que participarão dos Fóruns Nacionais Setoriais. Para que o processo continue representativo, todos nós precisamos ficar atentos e participar. São os delegados eleitos nos Fóruns Estaduais Setoriais que, em Brasília, reunidos em um segundo momento, para o Fórum Nacional Setorial, poderão votar e concorrer às vagas dos Colegiados Setoriais; Todos os Estados e o Distrito Federal deverão eleger seus delegados, três para cada área setorial. (O MinC vai arcar com as despesas de deslocamento de todos os delegados eleitos até Brasília. Nossa participação conjunta nos últimos anos, somada às outras 17 representações setoriais, nos mostrou a importância de construirmos Colegiados Setoriais atuantes, compostos pelos diversos agentes que compõem cada área. Entretanto, em nossa avaliação e pela experiência que tivemos naquele espaço, percebemos que o CNPC e o próprio MinC vivem uma crise inédita: Se, por um lado, alguns setores do MinC defendem essa instância como um espaço legítimo para a pactuação das políticas públicas com a sociedade, outros (também do MinC) parecem ignorar as conquistas dos últimos anos e tentam, visivelmente, minimizar ou neutralizar o papel do conselho e de seus colegiados. Trata-se, portanto, de um triste paradoxo. Até então o MinC foi o maior defensor da implantação de um Sistema Nacional de Cultura em que o Conselho Nacional e seus equivalentes nos Estados e Municípios seriam as instâncias deliberativas mais relevantes para o fortalecimento da participação social. Mas o que se percebe é que o MinC, que pautou Estados e Municípios para a adoção dessa prática, hoje precisa reaprender o que ensinou. O processo eleitoral, discutido e deliberado pelo CNPC, foi ignorado pelo MinC. Denúncias e pedidos de atenção dos atuais conselheiros não faltaram, como já divulgamos, mas estes foram solenemente ignorados ou até menosprezados pela ministra Ana de Hollanda, protagonista ímpar de uma série de demonstrações declaradas de desprezo às práticas legítimas de pactuação de políticas públicas. Pelo exemplo ou orientação da ministra, secretarias e instituições vinculadas do MinC parecem - neste momento - estar alheias ao processo eleitoral do CNPC, situação muito diferente da vivida em 2010, quando o envolvimento das mesmas foi total. Diante desta realidade, exclusiva do atual governo e inédita desde a eleição do ex-presidente Lula, o desencanto e o desânimo têm contaminado aqueles que militam nos mais diversos segmentos culturais, levando tantos a um sentimento de incredulidade e decepção. Preocupados que estamos com esta reação quase atônita da sociedade, propomos aqui a manutenção da ocupação crítica e consciente daquele espaço, como resposta política eficaz. Uma luta legítima, mas usando a inteligência como estratégia. Estamos propondo aqui uma ampla mobilização de todos os agentes culturais brasileiros para a eleição de seus delegados. Se é isso que a atual ministra quer evitar, é isso que conscientemente deveremos oferecer. Nos Colegiados e no Plenário do CNPC, temos a oportunidade de mostrar ao Governo Federal que não pensamos apenas em “nossos quadrados”, mas na defesa da cultura como um todo. Por isso, não é hora de nos dividirmos, por mais que as “gavetas” que nos classificam naquele espaço instiguem diferenças e peculiaridades. Somos agentes em diferentes segmentos culturais, por todo o país. Temos muito a contribuir nas artes visuais e arte digital, mas também no artesanato, no patrimônio cultural, nos museus, na moda, no design ou na arquitetura e urbanismo, já que muitos de nós também atuam nesses segmentos. Por que nos considerarmos divididos se podemos somar? Ocupar esses espaços no CNPC é mais do que legítimo, é um exercício político que nos permitirá conquistar maior respeitabilidade e, finalmente, sermos ouvidos. Inscreva-se no portal do MinC e mobilize seu segmento em sua cidade, em seu Estado. As inscrições encerram no dia 24 de junho; Para votar ou ser votado, o cadastramento online é obrigatório. Ajude a divulgar o que o MinC parece manter em segundo plano e vamos mostrar ao Governo Federal a força e a persistência da cultura. Abraços! Charles Narloch Membro titular do Colegiado Setorial de Artes Visuais, membro titular do CNPC (2010-2012) Patricia Kunst Canetti Membro titular do CNPC, representante do segmento de Arte Digital (2008-2012)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O Dom Casmurro de Machado pelo crítico Agripino Grieco

Que dicção deliciosa, que arte enleante na maneira por que os detalhes, em geral prosaicos, tombam gota a gota e adquirem por vezes não sei que beleza lírica! AGRIPINO GRIECO Se me exilassem para sempre do Brasil, permitindo-me levar na bagagem apenas cinco livros nacionais, é evidente que não dispensaria o meu Alencar, o meu Castro Alves, Pompeia, Euclides, mas também não dispensaria este romance do não totalmente meu Machado de Assis. Tudo aqui é em numerosos capítulos curtos, como já era no Brás Cubas e voltaria a ser no Esaú e Jacó. Entanto, se o assunto e as intenções valem pouco no trabalho, que dicção deliciosa, que arte enleante na maneira por que os detalhes, em geral prosaicos, tombam gota a gota e adquirem por vezes não sei que beleza lírica! Imperceptível o sotaque inglês e, esquecida uma ou outra afetação de purismo, saltam mil recordações cariocas, e simples palavras revivem cenas e tipos ainda vistos ou comentados em nosso tempo de criança. Havia terraço no Passeio Público, o Imperador passava de coche, as casas não dispensavam o ornato do oratório, a sobrecasaca era a farda solene dos burocratas, lia-se Walter Scott, demandava-se com fúria. Ignoro se Machado acreditaria fazer em Dom Casmurro livro à moda de Sterne: sei, sim, que fez, querendo ou não querendo, romance de costumes, tanto quanto era possível que ele o fizesse, e os que hoje se interessam tão fortemente pelas questões de folclore devem atentar que não lhe faltam à narrativa muitos documentos de folclore urbano. Trate-se embora de coisa desagradável, que doçura na expressão "calundus", empregada a certa altura pelo autor! Até a lentidão é saborosa nesse Rio em que o ritmo não era de automóvel. Raras as repetições, frequentíssimas noutros volumes seus, e as personagens não parecem na iminência de cair em catalepsia. Se eu organizasse um Baedeker para a leitura de Machado, aconselharia, mesmo perturbando a ordem cronológica, que principiassem pelo Dom Casmurro e só abordassem as antipáticas Memórias Póstumas de Brás Cubas muito mais tarde, como não aconselharia ninguém a iniciar-se no Eça através das pretensiosas cartas de Fradique Mendes. Tem-se a impressão de que nas Memórias as almas são examinadas com uma lupa, enquanto em Dom Casmurro há outro desafogo e não escapa a bonomia de determinadas passagens que começam num ar inquietante, de suposta catástrofe, e concluem em vulgares incidentes de quotidianismo burguês. Curioso é que o romancista, divertindo-se ao de leve com a vaidade administrativa de dado sujeito ou com os ciúmes de Bentinho, prove que nós só ironizamos bem aqueles defeitos de que participamos muito ou pouco. Machado, servindo em ministério, ficava radiante quando o convidavam para fazer parte do gabinete do ministro, acolhia reverente senadores e deputados, e, em função de marido, era ciosíssimo dos seus direitos junto à alva Carolina, não franqueando a quase ninguém, em intimidades alarmantes, a sua morada do Cosme Velho. Mesmo consentindo que o menino Bento e a menina Capitu brinquem de missa, o exato é que, receoso talvez de complicações com uma gente rancorosa, Joaquim Maria só se refere a padres e frades com relativa brandura. Sua sege, no momento, não é a da viagem de Sterne, e seu leproso não é o da cidade de Aosta, da narração de Xavier de Maistre: uma verdade local se impõe aos leitores. E que sutileza de toque nas insinuações que chegam de mansinho, até se aclararem subsequentemente! Noutros volumes, Machado, dando-nos o pão, dá-nos também o castigo, e aqui só nos dá o pão. Nada em ressalto, conta-se tudo a meia voz. Ainda que ele continue refratário a descrever a paisagem, que é nele simples nomenclatura ("Não tornaria a contemplar o mar da Glória, nem a serra dos Órgãos..."), adivinha-se-lhe por estas páginas a estima dos jardins e o prazer de vagar pelas ruas velhas do centro ou dos bairros, e sente-se que ele protestaria contra a mutilação dos nossos parques, o do Passeio, onde Bentinho conversou com José Dias, e o do campo de Santana, que ele conheceu quando apenas campo e sem parque, sem a obra-prima de Glaziou, vendo talvez, ao ir como jornalista ao Senado, as lavadeiras às voltas com trouxas de roupas. É o jardim uma das raras dádivas do governo aos pobres, e querem retirá-la. Nenhuma fatigante literatura de tese em Machado. Ninguém busque encontrar nele um corpo de doutrina, coerência de atitudes filosóficas. Nas suas tiradas, um aforismo ou um paradoxo destrói quase sempre o anterior. Contraditar-se não era a menor das suas volúpias. Porque constranger-se – pensaria ele – escolhendo entre duas opiniões, se tudo é matéria para uma boa frase? Sem ostentação, sabe ir encaminhando placidamente o fato que, aparentemente mínimo, é na realidade o que define tudo, decide de tudo. Dos cochichos acaba saindo uma voz nítida que nos perseguirá sempre. E nem nos irritamos quando o autor retorna a um trecho anterior para melhor explicação, como os sujeitos que se despedem e voltam para procurar a bengala ou um livro esquecido. Tanta gente a se preocupar com a infância, a juventude e a velhice de Machado de Assis, fazendo vida romanceada, fazendo o romance do romancista. Para quê? Amontoam-se as conjecturas, as hipóteses, as probabilidades em torno ao grande prosador. Ora, nesse homem, o mais importante acontecimento biográfico foi mesmo o haver composto o Dom Casmurro. Em vão os maus exegetas tramaram tudo para tornar o ídolo odioso. Machado resiste aos que quase o espatifam a golpes de turíbulo. Quando me dizem: "Você não gosta de Machado de Assis!", respondo: "Não gosto é dos machadianos tais e tais (enumero os nomes de vários senhores e senhoras), que o exploram em biografias ou ensaios idiotas e lhe atribuem uma onividência genial...". Também declaro não gostar dos antimachadianos à Liberato Bittencourt, dignos em tudo de figurarem entre aqueles machadianos. Mas posso deixar de gostar de Capitu, embora se tenha abusado dos seus olhos não menos que do sorriso de Gioconda, do nariz de Cleópatra e dos pés de Cendrillon? Lamento apenas que fiquem num detalhe e esqueçam inúmeros outros. Ruim a tendência a imobilizar-se nesses trechos seletos, que acabam convertendo-se em lugares-comuns pela negligência dos antologistas e diminuem o interesse de conjunto em relação às obras do mestre. Aliás a celebridade desses olhos de Capitu deve derivar de um equívoco. Dezenas de amadores creem que ressaca, no caso, é, não coisa de mar, e sim convalescença de bebedeira, a sugerir o langor, o cansaço e também o fascínio que há debaixo das pálpebras femininas após uma noite de orgia. Certo, o mais obsceno das mulheres está-lhes sempre nas pupilas. As damas ocultam tudo e o mais comprometedor se acha ali à mostra. Todavia, antes do Dom Casmurro, que é de 1899, antes dos "olhos de cigana oblíqua e dissimulada" de Capitu, Gomes Leal, no Anticristo, livro de 1884, já falara nos "olhares oblíquos" dos judeus. Lembre-se que a apresentação da heroína é feita em linguagem de passaporte: "Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo". Mas impressionante, mesmo para quem haja vivido longa vida e corrido muitas literaturas, é a perfídia sempre engatilhada dessa brasileira, o seu maquiavelismo do coração, pior que o do espírito. Capitolina recorda-nos a manta descrita por Fabre e que devora o macho depois de fecundada. Aprendeu ela música, e isso enterneceria Machado, que foi sócio do Clube Beethoven e amigo do pianista Artur Napoleão, adorou cantoras famosas e aludia sempre a óperas, tudo com um interesse que não parece ter demonstrado pela pintura e pela escultura. Observe-se que não fornece ele propriamente minúcias de adultério, detendo-se sempre à margem da cena escandalosa. E uma nota soberba é quando Capitu incide numa espécie de distração ou de cincada e pergunta a Bento, o pai putativo, se já reparara que os olhos do pequeno Ezequiel possuíam a "expressão esquisita" dos olhos de Escobar, o pai autêntico. Inconsciência, provocação, prazer de lembrar o delito? Um pouco de tudo nesse pedacinho admirável. Nem se esqueça o que vai esparso pelo livro em matéria de lucidez de ódio, sendo evidente que as personagens de Machado se odeiam sempre mais do que se amam. A alguns parecerá que Bento, pela força do hábito, deveria acabar estimando o rapaz, como ocorre num dos mais conhecidos romances de Bourget, mas o nosso Bentinho, apesar de todas aquelas mansuetudes de superfície, é da raça dos implacáveis, de uma implacabilidade tanto mais forte quanto disfarçada em aparência de olvido ou perdão. Taine, falando antes da aparição de Daudet, referiu-se à falta de crianças na literatura francesa. Também as crianças não exuberam em Machado, e este Ezequiel, aparecendo assim em ambiente difícil, não trouxe grande beleza e nobreza à classe. Agora, perguntarei a mim mesmo se Capitu é uma grande figura universal. Poderá ela entrar na galeria em que figuram Julieta, Margarida, Manon Lescaut, Eugênia Grandet, Carmem? Não creio. À maneira de certos vinhos que da Europa vêm para cá, o nosso romancista não resistirá à travessia do Atlântico. Franceses, lendo-o naturalmente em tradução francesa, enxergarão nele um francês, o que lhe tira qualquer nota de sedução na originalidade americana, e preferirão os que, embora mais fracos, lhes levam umas tintas de tropicalismo. No Dom Casmurro, onde o laboratório de experiências do autor está menos à mostra do que no Brás Cubas, Machado, como de costume, insiste em algumas palavras, mas, sendo estas sempre comuns (nada do léxico farto de Camilo ou Coelho Neto), não gritam, não adquirem cor vermelha no papel. Estranhe-se que lhe escapassem os vocábulos "chacarinha" e "taramela", assim mesmo à lusitana. Não lembro que ninguém os proferisse nunca dessa forma no Brasil e, em meu recanto de província, "chacrinha" e "tramela", muito mais doces de pronúncia, é que eram frequentes. Pior ainda um "comborço". Quando esse homem de extremo bom gosto se equivoca vai logo ao mau gosto extremo. Diversas passagens de Dom Casmurro recordam outras de livros de Machado. A heroína, até metade do romance, faz pensar em Iaiá Garcia e Helena. Aquilo de possível arranhão nos joelhos de uma senhora qualquer traz à memória uma cena de Quincas Borba, entre Sofia e Palha. A página em que Ezequiel, ainda garoto, goza com o sofrimento do rato na boca do gato, mostra um esboço de concorrente ao sádico da "A causa secreta". As coisas equinas e as coisas de dinheiro, especialmente as lotéricas, não se desprendem das cogitações de Machado: "a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande"; "os saldos da juventude"; "fazendo vir do credor a relevação da dívida"; "contrato feito no próprio cartório do céu"; "como quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair branco o maldito número"; "tais promessas são como a moeda fiduciária"; "não faz moratórias, perdoa as dívidas integralmente"; "ajuste de contas morais"; "reformar uma letra"; "Purgatório é uma casa de penhores"; "o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta"; "Jeová, posto que divino, ou por isso mesmo, é um Rothschild mais humano"; "a minha imaginação era uma grande égua ibera" (e, a propósito destas éguas, "que concebiam pelo vento", desfaça-se uma dúvida de Bentinho: são de Virgílio e não de Tácito). Vejamos algumas reminiscências de leituras europeias. O italiano Marcolini é uma transposição (mais uma) do ator Delobelle à condição de tenor. A pirueta de José Dias ante o projeto, ainda muito vago, de uma viagem à Europa, aproveita o caso da leiteira de La Fontaine, aliás aproveitado de vários outros do Oriente e do Ocidente. Um resquício do "dormeur éveillé" das Mil e uma noites, na tradução de Galland, vem nos "sonhos do acordado" (e quantos sonhos em Dom Casmurro!). A mania dos superlativos em José Dias é efeito repetido de velhas anedotas, especialmente italianas, havendo em Donville uma esplêndida, que só não reproduzimos devido ao fecho escabroso. "Ancianidade viçosa" representa feliz variante de "verte vieillesse". Já "inimigos contíguos" será pouco harmoniosa variante de "énnemis intimes". Quando Machado diz que "a alopatia é o catolicismo da medicina", apenas altera o conceito dos Goncourt: "Il me semble voir dans une pharmacie homéopathique le protestantisme de la médecine." Também há "olhos policiais" no poeta português Macedo Papança. De quem a prioridade? A expressão machadiana: "não a conheceu, nem podia, tão outra a fizeram os anos e a morte", deriva da frase garrettiana: "tão outro estará mudado". Na ironia: "O céu e a terra acabam conciliando-se", influíram dois versos de Molière que o uso concentrou num só: "Il est avec le ciel des accomodements". A propósito dos amores de Bentinho e Capitu: "Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas...". Garrett: "Os anjos aqueles dias / Contaram na eternidade: / Que essas horas fugidias, / Séculos na intensidade, / Por milênios marca Deus / Quando as dá aos que são seus". Se os vermes dos livros respondem que nada sabem dos textos que roem e só querem roer, mostram-se modestos, porque devem ter aprendido alguma coisa ao roer conscientemente um volume de Lachambeaudie, onde existe a fábula intitulada "Le rat dans la bibliothêque". E tão renaniano era o nosso Machado que o seu Ezequiel morre quase como a irmã de Renan (ele de febre tifoide e ela de febre perniciosa), sendo igualmente sepultado em região da Ásia. Mas vou concluir narrando um caso não desinteressante a propósito de Joaquim Maria. Costumo eu passar de ônibus em frente a um sobrado do Engenho Novo, de frontaria toda descascada. Possui duas árvores à frente e, ao lado, vistosa casa de cachorro. Pois certo velhote que viaja comigo, e que me contou já haver lido quinze vezes o Dom Casmurro, afirma ter sido ali a morada de Bentinho. Foi para ali que ele se transferiu da rua Matacavalos, sentindo talvez uma diminuição nisso de tornar-se suburbano, parecendo-lhe possivelmente a primeira viagem de trem uma aventurosa expedição de sertanista. E foi naquele sobrado que lhe veio a ideia de escrever a História dos subúrbios. O tal velhote conheceu, em menino, um sujeito idoso que fora copeiro de Bento e, meio revoltado com a sua casmurrice, a sua indiferença pela vizinhança, o vira muitas vezes "hortar, jardinar e ler", como se diz no livro, vendo-o igualmente encher à noite folhas e folhas de papel. Pouco depois dessas informações, o meu companheiro de ônibus apontou para um muro coberto ao mesmo tempo de flores e de cacos de garrafa, e transmitiu-me este comentário: "A alma de Machado era também assim...".

VIVA OS PÁSSAROS JUNINOS

O Pássaro Junino é a única manifestação cultural que só pode ser vista no Estado. É feita pelo amor e dedicação das comunidades da região, que se esforçam e não ganham nada em troca para oferecer um espetáculo à parte à sociedade paraense. Além disso, é pura tradição, pois nasceu no tempo da Belle Époque e, mesmo com tantas dificuldades, até hoje sobrevive. Com isso, não irei cansar de fazer um apelo aos nossos Parlamentares, vamos defender os Pássaros Juninos. E Hoje inicio uma campanha, quem defende a Cultura dos Pássaros Juninos?

Código Florestal: texto aprovado no Senado pode ser recuperado

O GLOBO BRASÍLIA - A presidente Dilma Rousseff quer recuperar o texto do Código Florestal aprovado no Senado e derrubado na Câmara. Ela procura, no entanto, uma alternativa para que, vetando parcialmente as 21 modificações, não deixe um vácuo que gere insegurança jurídica para os produtores rurais. O mais provável é que a presidente opte por vetar alguns pontos do texto. Para tanto, uma equipe de técnicos de cinco ministérios prepara sugestões e não descarta um veto total. Para dar opção ao Planalto, líderes do Senado estão costurando acordo para aprovar semana que vem o projeto dos senadores Jorge Viana (PT-AC) e Luiz Henrique (PMDB-SC). Dilma avaliou que não poderá assinar abaixo do texto aprovado pelos deputados. Isso porque ele cassa o acordo entre o governo e ruralistas na fase anterior do trâmite da matéria, no Senado, e retoma a anistia aprovada pelos deputados em maio do ano passado para quem desmatou em beiras de rios (APPs). — A presidente está querendo uma fórmula para recolocar o texto do Senado e dar tratamento diferenciado aos pequenos produtores de um a dois módulos. Seria um sinal para os pequenos produtores e atrairia setores mais resistentes — disse Viana.

Senador Randolfe Rodrigues diz que há setores fascistas no PSOL

Quarta-feira, Maio 09, 2012 Senador Randolfe Rodrigues diz que há setores fascistas no PSOL
Parlamentar, que já pertenceu ao PT, não nega boatos de que pode deixar o partido. Em OGlobo. "Eles não leram uma obra básica do Lenin: Esquerdismo, a doença infantil do comunismo" O senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) assumiu o mandato no ano passado como o mais jovem integrante da nova legislatura. Rapidamente, tornou-se um dos mais atuantes parlamentares do Congresso. Combativo e crítico ao governo, tornou-se autor das principais representações contra autoridades, entre elas a que pede ao Conselho de Ética a cassação do mandato do senador Demóstenes Torres (sem partido-GO). Apesar do momento de glória em Brasília, o senador, de 39 anos, está em crise com seu partido. Filiado ao PSOL desde 2005, quando deixou o PT após 19 anos de militância - começou a militar ainda na adolescência - Randolfe se sente acuado por integrantes da legenda. E não nega que pode sair do partido. - Eu de fato quero um partido de massas, que governe para milhões. O partido tem de avançar para isso. Às vezes, o PSOL se limita a dialogar apenas com um gueto. Esse é o meu incômodo. Vou aguardar as eleições municipais e espero que o partido saia bem. Depois delas, vou definir o que farei - diz. Apesar de ter se projetado nacionalmente, são as questões locais que levaram o senador ao desconforto com a legenda. Segundo ele, a busca por investimentos nacionais e estrangeiros para desenvolver a infraestrutura de seu estado, o Amapá, foi criticada intensamente por correligionários: - Isso foi tido por alguns como uma conversão ao capitalismo. É uma argumentação tosca, inadequada, e não é de esquerda. É fascista. Hitler e Mussolini defendiam a mesma ideia de realidades isoladas, sem diálogo com o mundo. Outro fato que teria ensejado críticas internas foi sua sugestão de criar um museu sobre a luta dos aliados no combate ao eixo nazifascista. Assim como o Rio Grande do Norte, o Amapá abrigou durante a Segunda Guerra uma base aérea dos aliados para apoio ao combate em solo europeu. Randolfe defendia então que o museu fosse construído com recursos do governo do estado e do governo americano. - Quando defendi a construção de um museu sobre a luta dos aliados no combate ao nazifascismo, afirmaram que eu tinha me convertido ao imperialismo. Existe uma lógica autofágica dentro do partido. Não há compreensão de muitos setores a esse espaço do Parlamento. Há uma conversão da idiotice em má-fé. Eles não leram uma obra básica do Lenin: Esquerdismo, a doença infantil do comunismo. O senador diz que hoje não há qualquer partido em vista, mas reconhece que já foi cortejado: - Sempre tem uma troca de charme, mas neste momento é uma resposta que não tenho amadurecida. Fora do PSOL, eu teria dificuldade de saber o caminho. Mas, no espectro político brasileiro, cabe a um partido mais à esquerda que dialogue com a social-democracia, e não que rompa com a social-democracia.

quinta-feira, 22 de março de 2012

João Goulart: o discurso da Central do Brasil e a verdade histórica

Publicamos hoje a primeira parte do discurso de João Goulart, proferido no dia 13 de março de 1964 para cerca de 200 mil pessoas em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em apoio às reformas que o presidente pretendia implementar ainda naquele ano. Nacionalização das refinarias de petróleo, democratização do acesso à terra, ampliação da liberdade partidária com extensão do direito de voto a todos os brasileiros maiores de 18 anos, reforma educacional e maior controle nacional da economia, incluindo limites às remessas de lucro ao exterior, são alguns dos principais pontos das reformas estruturais, chamadas reformas de base, que foram estancadas pelo golpe de Estado que derrubou o presidente apenas 19 dias depois do histórico pronunciamento JOÃO GOULART Devo agradecer às organizações sindicais, promotoras desta grande manifestação, devo agradecer ao povo brasileiro por esta demonstração extraordinária a que assistimos emocionados, aqui nesta cidade do Rio de Janeiro. Quero agradecer, também, aos sindicatos que de todos os estados mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os patrícios, neste instante mobilizados em todos os recantos do país, e ouvindo o povo através do rádio ou da televisão. Dirijo-me a todos os brasileiros, e não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas. Dirijo-me também aos milhões de irmãos nossos que dão ao Brasil mais do que recebem e que pagam em sofrimento, pagam em miséria, pagam em privações, o direito de serem brasileiros e o de trabalhar de sol a sol pela grandeza deste país. Presidente de oitenta milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios. Vou falar em linguagem rude, mas que é sincera e sem subterfúgios. É também a linguagem de esperança, de quem quer inspirar confiança no futuro, mas de quem tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade que vivemos. Aqui estão os meus amigos trabalhadores, pensando na campanha de terror ideológico e de sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu Presidente, na presença das lideranças populares mais representativas deste país, que se encontram também conosco, nesta festa cívica. Chegou-se a proclamar, trabalhadores brasileiros, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse dona da democracia, ou proprietária das praças e ruas. Desgraçada a democracia que tiver de ser defendida por esses democratas. Democracia para eles não é o regime da liberdade de reunião para o povo. O que eles querem é uma democracia de um povo emudecido, de um povo abafado nos seus anseios, de um povo abafado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia do anti-sindicato, ou seja, aquela que melhor atenda aos seus interesses ou aos dos grupos que eles representam. A democracia que eles pretendem é a democracia dos privilégios, a democracia da intolerância e do ódio. A democracia que eles querem, trabalhadores, é para liquidar com a Petrobrás, é a democracia dos monopólios, nacionais e internacionais, a democracia que pudesse lutar contra o povo, a democracia que levou o grande Presidente Vargas ao extremo sacrifício. Ainda ontem eu afirmava no Arsenal de Marinha, envolvido pelo calor dos trabalhadores de lá, que a democracia jamais poderia ser ameaçada pelo povo, quando o povo livremente vem para as praças – as praças que são do povo. Para as ruas – que são do povo. Democracia, trabalhadores, é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do meu dever. Não só para interpretar os anseios populares, mas também para conquistá-los pelo caminho do entendimento e da paz. Não há ameaça mais séria para a democracia do que tentar estrangular a voz do povo, dos seus legítimos líderes populares, fazendo calar as suas reivindicações. Estaríamos, sim, brasileiros, ameaçando o regime, se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, desta Nação e desses reclamos que, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, levantam o seu grande clamor pelas reformas de base e de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será o complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros, que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria. Ameaça à democracia, enfim, não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo brasileiro, é explorar os seus sentimentos cristãos, na mistificação de uma indústria do anticomunismo, insurgindo o povo até contra os grandes e iluminados ensinamentos dos grandes e santos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado nacional. O inolvidável Papa João XXIII é que nos ensina, povo brasileiro, que a dignidade da pessoa humana exige normalmente, como fundamento natural para a vida, o direito e o uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade para todos. É dentro desta autêntica doutrina que o governo brasileiro vem procurando situar sua política social, particularmente no que diz respeito à nossa realidade agrária. O cristianismo nunca foi o escudo para privilégios condenados pelo Santo Padre, nem também, brasileiros, os rosários podem ser levantados contra a vontade do povo e as suas aspirações mais legítimas. Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade das suas esperanças. Os rosários não podem ser erguidos contra aqueles que reclamam a discriminação da propriedade da terra, hoje ainda em mãos de tão poucos, de tão pequena maioria. Àqueles que reclamam do Presidente da República uma palavra tranquila para a Nação, àqueles que em todo o Brasil nos ouvem nesta oportunidade, o que eu posso dizer é que só conquistaremos a paz social através da justiça social. Perdem seu tempo, também, os que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais, como perdem também seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra o povo, contra os seus direitos ou contra as suas reivindicações. Ação repressiva, trabalhadores, é a que o governo está praticando e vai ampliar cada vez mais e mais implacavelmente, aqui na Guanabara e em outros Estados, contra aqueles que especulam, contra as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo, que sonegam gêneros alimentícios ou que jogam com seus preços. Ainda ontem, dentro de associações de cúpula de classes conservadoras, ibadianos de ontem levantaram a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra os que o exploram na rua e em seus lares, através da exploração e da ganância. Mas não tiram o sono as manifestações de protestos dos gananciosos, mascaradas de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer impunidade para suas atividades antipopulares e antissociais. Por outro lado, não receio ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar – e tenho proclamado e continuarei proclamando nos recantos da Pátria – a necessidade da revisão da Constituição. Há necessidade, trabalhadores, da revisão da Constituição da nossa República, que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento desta Nação. A Constituição atual, trabalhadores, é uma Constituição antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada, uma estrutura injusta e desumana. O povo quer que se amplie a democracia, quer que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; quer que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facilitado participar da vida política do país, através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e que seja assegurada à representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações, ideológicas ou religiosas. Todos, todos os brasileiros, todos têm o direito à liberdade de opinião, de manifestar também sem temor seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na própria Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a todos os brasileiros. Está nisso, trabalhadores, está nisso, povo brasileiro, o sentido profundo desta grande e incalculável multidão que presta, neste instante, sua manifestação ao Presidente, que vem também lhe prestar conta de seus problemas, mas também de suas atitudes e de sua convicções nas lutas que vem enfrentando, luta contra forças poderosas, mas confiando sempre na unidade do povo e das classes trabalhadoras, unidade que há de encurtar o caminho da nossa emancipação. É apenas de se lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional. São, certamente, os piores surdos e os piores cegos, porque poderão, com tanta surdez, e com tanta cegueira, ser, amanhã, responsáveis, perante a História, pelo sangue brasileiro que possa ser derramado, ao pretenderem levantar obstáculos à caminhada do Brasil e à emancipação do povo brasileiro. De minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo continuarei fazendo para que o processo democrático siga o caminho pacífico, para que sejam derrubadas as barreiras que impedem a conquista de novas etapas e do progresso. E podeis estar certos, trabalhadores, de que, juntos, governo e povo, operários, camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões brasileiros que colocam os interesses da Pátria acima de seus interesses, haveremos de prosseguir, e prosseguir de cabeça erguida, a caminhada da emancipação social do país. O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade. A maioria dos brasileiros já não se conforma com a ordem social imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que nada têm se impacientam com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído também com o esforço dos trabalhadores e o sacrifício dos humildes. Vamos continuar lutando pela construção de novas usinas, pela abertura de novas estradas, pela implantação de mais fábricas, de novas escolas, de hospitais para o povo sofredor; mas sabemos, trabalhadores, que nada disso terá sentido profundo se ao homem não for assegurado o sagrado direito ao trabalho e a uma justa participação no desenvolvimento nacional. Não, trabalhadores; não, brasileiros: sabemos muito bem que de nada vale ordenar a miséria neste país. Nada adianta dar-lhe aquela aparência bem comportada com que alguns pretendem iludir e enganar o povo brasileiro. Meus patrícios, a hora é a hora da reforma, brasileiros, reforma de estrutura, reforma de métodos, reforma de estilo de trabalho e reforma de objetivo para o povo brasileiro. Já sabemos que não é mais possível produzir sem reformar, que não é mais possível admitir que esta estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional, para milhões e milhões de brasileiros, da portentosa civilização industrial, porque dela conhecem apenas a vida cara, as desilusões, o sofrimento e as ilusões passadas. O caminho das reformas é o caminho do progresso e da paz social. Reformar, trabalhadores, é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada, inteiramente superada, pela realidade dos momentos em que vivemos. Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da Supra. Assinei-o, meus patrícios, com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos. Ainda não é a reformulação do nosso panorama rural empobrecido. Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado. Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro. O que se pretende com o decreto que considera de interesse social, para efeito de desapropriação, as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais, e terras beneficiadas por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável. Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, que se apoderam das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou setenta bilhões de dinheiro do povo, não deve beneficiar aos latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas, sim, ao povo. Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos da dívida pública e a longo prazo. Reforma Agrária com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. Reforma agrária, como consagrado na Constituição, com pagamento prévio e a dinheiro é negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso, o decreto da Supra não é a reforma agrária. Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária autêntica. Sem emendar a Constituição, que tem acima dela o povo, poderemos ter leis agrárias honestas e bem intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas.

quinta-feira, 8 de março de 2012

U.S. Deutsch Bank e outras aventuras edificantes

Vários autores já disseram, e demonstraram, que a chamada “globalização” era, meramente, globalização financeira. Resta, talvez, dizer que esse berro do neoliberalismo significou o domínio dos bancos de outros países pelos grandes bancos norte-americanos. CARLOS LOPES Um velho amigo – hoje um conhecido psicanalista – tinha uma especial birra contra “livros de jornalista”, categoria em que incluía desde John Reed até as obras de ficção de Hemingway (mesmo - aliás, sobretudo - a melhor parte: os contos). Jornalistas, dizia ele, não vão além da superfície dos fatos – e, ainda por cima, apresentam-na como se fosse a sua essência. Existe alguma injustiça nessa apreciação, pois há muitas exceções, mas foi inevitável pensar no que dizia esse amigo ao ler “Bumerangue”, o livro do jornalista norte-americano Michael Lewis sobre a crise na Islândia, Grécia, Irlanda, Alemanha e nos municípios dos EUA. Impossível evitar a lembrança, ao ler: “a sociedade mais rica que o mundo já viu alcançou esse status concebendo meios cada vez melhores de dar às pessoas o que elas querem” (Lewis, “Bumerangue”, trad. Ivo Korytowski, Sextante, 2011, págs. 203/204). Pois essa frase, leitores, é referente aos EUA, onde, antes da atual crise, havia, oficialmente, 45 milhões de pessoas sem direito a qualquer assistência médica, exceto a reservada aos indigentes – reconhecidamente, uma assistência médica indigente. Um país em que, desde 1981, houve um arrocho salarial tão achatador que é difícil medi-lo, até porque as estatísticas sobre salários, desde Reagan, sofreram estranhas alterações de critérios – e, mesmo assim, os números não conseguiram deixar de registrar o arrocho (o que não é nenhuma novidade. Conferir, por exemplo, o livro, já antigo, de um professor de economia norte-americano: David M. Gordon, “Fat and Mean: The Corporate Squeeze of Working Americans and the Myth of Managerial ‘Downsizing’”, Free Press, 1996 – esse livro não foi atualizado, pois seu autor faleceu logo após a publicação. Mas não é uma questão em disputa que o arrocho salarial aumentou nos anos posteriores a 1996). RATING Se Lewis preenche seu livro com preconceitos, alguns reacionaríssimos – é nauseante o seu medo de qualquer manifestação popular -, os fatos que menciona, no entanto, são muito interessantes. Inclusive sobre os EUA, que não é, neste livro, o seu assunto principal. O leitor, provavelmente, lembra-se quando, em agosto do ano passado, a Standard and Poor's (S&P), uma dessas “agências” vigaristas de classificação (“ratings”), rebaixou sua nota dos títulos do governo norte-americano. Foi uma torrente de lamentações na mídia. Até o sr. Mantega, que desde 2006 incensava o “investment grade” dessas agências, em especial o da S&P, saiu em defesa dos papéis norte-americanos. Também, pudera: 65% das reservas do Brasil estavam (e estão) aplicadas em papéis do governo dos EUA, exatamente com a fundamentação de que esses papéis tinham classificação “Aaa” da S&P e outras agências norte-americanas de rating (cf. BCB, “Relatório de Gestão das Reservas Internacionais”, v. 3, Brasília, 2011, pág. 21). Parecia uma tragédia para o governo dos EUA. No entanto, foi uma tragédia para os países que têm uma equipe econômica composta por bobos e/ou serviçais. O sr. Mantega tinha razões para se queixar, mas não as que ele emitiu publicamente: “As consequências da afirmação de uma grande agência de classificação de crédito americana de que as chances de o governo americano saldar suas dívidas haviam diminuído foram reduzir o custo dos empréstimos do governo americano e elevar esse custo para todos os demais” (“Bumerangue”, pág. 173, grifo nosso). Há outra questão sobre os EUA – aliás, mais de uma – que deixaremos para o próximo artigo. Primeiro, algumas considerações sobre o que Lewis ignora em seu livro. SUBSIDIÁRIAS Vários autores já disseram, e demonstraram, que a chamada “globalização” era, meramente, globalização financeira. Resta, talvez, dizer que esse berro do neoliberalismo significou o domínio dos bancos de outros países pelos grandes bancos norte-americanos. Isso explica, por exemplo, o artigo 63 do “Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”, também conhecido como “Tratado de Lisboa”, que substituiu, sem consulta popular, a “constituição europeia” derrotada nas urnas em vários países: “Artigo 63º: 1) … são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. 2) … são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros” (cf. Jornal Oficial da União Europeia/PT, 30/03/2010, pág. C 83/71, “Versão Consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”, grifos nossos). O texto é explícito: os países da UE, inclusive os da “zona do euro”, abriram mão oficialmente de se defender da especulação financeira externa, isto é, norte-americana. Na verdade, já o tinham feito na prática, a começar pelos países da UE que não adotaram o euro (Inglaterra, Suécia, Polônia, Hungria, Romênia, Dinamarca, Bulgária, República Checa, Lituânia e Letônia). Mas isso foi uma consequência de um fato financeiro: os bancos europeus já haviam se tornado, na prática, subsidiárias dos grandes bancos norte-americanos (o Tratado de Lisboa somente foi assinado em dezembro de 2007 – um ano depois, a crise dos EUA levaria a Europa de roldão). Em suma, os imperialismos alemão, francês e de outros países europeus tornaram-se, por via financeira (facilitada ou permitida pela ocupação militar, que já dura quase 70 anos, da Alemanha, assim como do Japão, pelos EUA), uma espécie de “imperialismo dependente” – ou, se o leitor quiser, um “subimperialismo” ou “imperialismo subsidiário” – que existe dentro dos limites definidos pelo imperialismo norte-americano, e que se presta a ser capanga de seu senhor, através da OTAN. Bem entendido, não pretendemos inventar um novo conceito: apenas descrever um fato. O exemplo mais evidente é, exatamente, o dos bancos alemães. Como observa Lewis, só existem dois grandes bancos privados alemães: o Deutsch Bank e o Commerzbank - que absorveu o terceiro, o Dresdner. Os outros são estatais ou são cooperativas relativamente pequenas de crédito. Tanto o Deutsch quanto o Commerzbank afundaram no dilúvio de “derivativos” que compraram dos bancos norte-americanos. Agiram – e agem - como intermediários dos bancos dos EUA, assim como os bancos islandeses, irlandeses, etc., etc. - com a diferença de que a Alemanha não é um país periférico da UE, tal como a Irlanda ou Portugal, mas o principal país da UE e da “zona do euro”. Quando denominamos os bancos europeus de “subsidiárias” dos bancos norte-americanos não estamos, necessariamente, nos referindo à sua propriedade. No entanto, também essa questão, a da propriedade – isto é, a nacionalidade – em vários casos é bastante duvidosa. Vejamos o maior de todos, o Deutsch Bank, um banco tão grande que, em depósitos, só há um outro na Europa que se lhe compare, o Credit Suisse, com matriz em Zurique, fora da UE e da “zona do euro”. Aparentemente nada há de mais característico da burguesia financeira e monopolista alemã do que o Deutsch Bank. No entanto, oficialmente, 53% dos acionistas do Deutsch são estrangeiros, isto é, não-alemães. Hoje, também oficialmente, 13% deles (eram 16% em 2009) são norte-americanos. O que não inclui a propriedade norte-americana através de filiais de bancos norte-americanos na Alemanha e demais países da Europa, ou em outras partes do mundo, nem aquela sob controle de bancos europeus que, na verdade, são controlados pelos bancos norte-americanos. Notemos que 75% das ações do Deutsch pertence a outros bancos. E esses são números retirados do último relatório anual do banco –, portanto, merecem estar sob suspeita. INVESTIGAÇÃO O Deutsch, no período anterior à crise, não agiu apenas como intermediário dos bancos norte-americanos na Europa - como foi o caso de alguns bancos franceses (especialmente o BNP Paribas e o Société Générale; a propósito, a França só tem – se é que tem – mais um grande banco privado, o Crédit Lyonnais; não há setor mais monopolizado, onde o mercado tenha sido mais banido ou tão manietado, quanto o chamado “mercado financeiro”). O fato é que o Deutsch agiu, em Wall Street, e não apenas na Europa, como um banco norte-americano em todo o período imediatamente anterior à crise – de 2004 até a quebra do Lehman Brothers, o Deutsch Bank lançou, em Wall Street, US$ 32 bilhões em derivativos sobre as hoje notórias “hipotecas sub-primes” dos EUA. E essa magnitude foi o que se conseguiu comprovar na investigação do Senado dos EUA sobre a crise, chefiada pelos senadores Carl Levin (democrata/Michigan) e Tom Coburn (republicano/Oklahoma). O relatório dessa investigação de dois anos (“Wall Street and the Financial Crisis: Anatomy of a Financial Collapse”) foi abafado pela mídia. E não foi, certamente, devido à sua extensão de 5.900 páginas - a versão sem os documentos citados tem 639 páginas -, pois o senador Levin tomou a providência de sintetizá-lo em seu site. Algumas partes dos depoimentos no Subcomitê Permanente de Investigações do Senado, que Levin preside, foram reproduzidas no documentário “Inside Job”. PAPÉIS Um dos trechos mais divertidos do livro de Lewis é o relato de um empresário irlandês sobre um banqueiro que se “aborreceu” com ele quando tentou quitar uma dívida. Não é para menos: o que é um banco sem devedores? Se todas as dívidas fossem quitadas, seria uma catástrofe para os bancos, por várias razões. Hoje em dia, a principal é que os papéis especulativos, os “derivativos”, são lançados em cima de dívidas – mais exatamente, são “derivados” de papéis que são títulos de dívida. Esses papéis de papéis são uma invenção do maior banco dos EUA – o JP Morgan, hoje JP Morgan Chase, depois que os Rockefellers assumiram formalmente o seu controle – em 1994. Uma das coisas mais hilariantes, depois disso, foi a tentativa de alguns “historiadores econômicos” de remontar a origem desses papéis ao Japão feudal do século XVII, e, até, aos primórdios do surgimento do homem sobre a Terra. Mais interessante é a narrativa de uma jornalista inglesa, aliás, editora do “Financial Times”: Gillian Tett, “Fool’s Gold - How the Bold Dream of a Small Tribe at J.P. Morgan Was Corrupted by Wall Street Greed and Unleashed a Catastrophe”, Free Press, 2009 (o livro pretende ser uma defesa do J.P. Morgan – mas, com uma defesa dessas, cheia de episódios hediondos, melhor seria entregar os inventores dos “derivativos” logo ao carrasco). O “derivativo” mais famoso é um papel denominado “credit default swap” (CDS). O que se chama “swap” é uma operação em que um papel substitui outro, com indexador diferente. Simplificadamente: um especulador tem um papel indexado pelo câmbio e, por exemplo, troca, com outro especulador, esse título por um indexado, digamos, pela taxa de juros do Banco Central. Os dois especuladores estão, portanto, apostando em quem (ou qual título) terá o maior rendimento num determinado prazo – quem perder pagará ao outro a diferença. Nada disso se distingue de um cassino, exceto pela complicação do “mercado financeiro”, imprescindível para enganar os trouxas, e pelo fato de que nos cassinos é preciso ter dinheiro verdadeiro para apostar – ou o sujeito não vai adquirir as fichas com que são efetivadas as apostas. No cassino financeiro, não. Vejamos o “credit default swap” (CDS). “Credit default” significa inadimplência – uma dívida em que houve “default” é uma dívida que não foi paga. O CDS, portanto, deveria ser uma espécie de seguro em caso de inadimplência do outro título – que, por sua vez, é baseado em outros papéis, por exemplo, hipotecas sobre casas. Mas, uma empresa de seguros somente pode (ou poderia, pois até isso, hoje em dia, está bastante avacalhado) segurar alguma coisa se tiver cobertura – isto é, se possuir dinheiro, ou um ativo real conversível em dinheiro, que permita, em caso de necessidade, pagar o seguro. Como frisa Lewis, a diferença do CDS em relação a um seguro “normal” é que ele não tem cobertura – é apenas um papel, supostamente lastreado em hipotéticos ganhos futuros (isto é, ganhos que não existem) com a especulação, mas, na verdade, um papel que existe para se especular sem que haja qualquer ativo real, dinheiro ou propriedades, de valor comparável - exatamente como o preço das casas nos EUA não tinha (e não tem) qualquer relação com o preço dos “derivativos” lançados em cima de suas hipotecas. Certamente, isso é apenas uma “pirâmide” (ou, como chamam os norte-americanos, um “esquema Ponzi”, nome derivado de um famoso vigarista, Charles Ponzi). Mas é uma pirâmide de um tamanho que nenhum faraó sonhou – a última estimativa do BIS, o chamado “banco central dos bancos centrais”, correspondente a junho de 2011, é que havia US$ 708 trilhões em “derivativos” - ou seja, 11 vezes a produção de valor adicionado a mercadorias e serviços no mundo, isto é, o PIB mundial, estimado para 2011 em US$ 65 trilhões (cf. BIS, “OTC derivatives market activity in the first half of 2011”, 16/11/2011; The Economist, “In search of growth”, 25/05/2011). Apesar de óbvio, é adequado lembrar que a falta de cobertura dos papéis não impede que o dinheiro ganho com eles possa se converter em propriedades, em ativos reais - desde palácios na Côte D’Azur até ex-estatais ou empresas privadas ex-brasileiras. Nesse sentido, a comparação entre o “valor” dos derivativos e o PIB mundial é imprecisa: este último se refere à produção de valor, e apenas durante um ano, enquanto que existe muito mais valor, já produzido, no mundo - isto é, já cristalizado em propriedades. Depois dessa breve excursão pela vigarice globalizada (algo em que o indigitado Charles Ponzi jamais pensou – foi necessário o JP Morgan para concebê-la), voltemos ao Deutsch Bank no período anterior à crise. MISTÉRIO O “gestor” de derivativos do Deutsch era um americano, Greg Lippman, tão bem sucedido que teve sua biografia financeira incluída num livro que parece humorismo, pela coleção de trambiqueiros que reúne: “The Greatest Trades of All Time: Top Traders Making Big Profits from the Crash of 1929 to Today”, de Vincent Veneziani. Qual era o mistério do espetacular (e bilionário) sucesso de Lippman – e, portanto, do Deutsch Bank – em Wall Street? Simplesmente, fabricar títulos podres, vendê-los a alguns patos, e apostar contra eles, através de outros títulos. A investigação do Senado dos EUA publicou várias mensagens e documentos internos, mostrando que Lippman e o Deutsche tinham, desde 2007, chegado à conclusão de que a bolha dos derivativos sobre hipotecas ia estourar, de que era, literalmente, um “esquema Ponzi”, de que os títulos que vendiam não passavam de “bosta” (literalmente: “crap”), etc. - e que o Deutsch estava apostando contra seus próprios títulos. Evidentemente, não era apenas o Deutsch Bank que fazia isso. Todos os chamados “bancos de investimentos” - isto é, de especulação - de Wall Street (Bear Stearns, Lehman Brothers, Merril Lynch, Morgan Stanley, Goldman Sachs e Salomon Brothers) faziam isso, assim como o JP Morgan Chase, Citigroup, Bank of America, etc. O jogo era ganhar com a crise. O que eles não parecem ter previsto foi o tamanho da crise que estavam provocando, que foi muito além dos derivativos sobre as hipotecas, porque havia causas muito mais profundas que a trapaça – ainda que colossal – em cima dessas hipotecas. A rigor, o estouro dos papéis lançados em cima do mercado imobiliário dos EUA foi um sintoma agudo de uma doença gravíssima, causada pelo engessamento da economia imperialista por meia dúzia de cartéis e monopólios financeiros.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O erro da privatização dos aeroportos

O artigo de Altamiro Borges sobre a privatização dos aeroportos de Guarulhos, Brasília e Viracopos foi escrito ainda antes de concluído o leilão de segunda-feira. Por isso, a quantia que o governo receberá a cada ano das concessionárias está desatualizada – mas não existe diferença de qualidade em relação ao resultado que saiu. Logo após o leilão, algumas pessoas, com a intenção de defender o governo, exumaram a tese de que não se trataria de uma “privatização”, mas de uma “concessão”. Essas pessoas precisam avisar a ANAC, o ministro Mantega, que usaram o termo privatização, e a Presidência da República, que incluiu esses aeroportos no Programa Nacional de Desestatização – o mesmo sob o qual foi privatizada a Vale, as telecomunicações, etc., etc & etc. Em verdade, só há uma forma honesta de defender o governo: criticando seus erros para permitir que avance. Exceto isso, estaríamos apenas ajudando tucanos e assemelhados a se cevarem em torno desses erros – o que, aliás, eles fizeram de forma impudica nessa questão dos aeroportos. ALTAMIRO BORGES* Em um ano de governo, a presidenta Dilma Rousseff mostrou-se pouco ousada, mas não bancou retrocessos de maior gravidade. Nesta segunda-feira (6), porém, ela macula o seu mandato com o leilão para a “concessão” de três dos mais rentáveis aeroportos do país – Guarulhos, Campinas e Brasília. O seu discurso antiprivatista de campanha, que acuou os tucanos, será jogado pelo ralo. Os argumentos usados para justificar a privatização não convenceram os trabalhadores do setor, os movimentos sociais e vários estudiosos desta matéria estratégica. Fala-se da ausência de recursos públicos para modernizar os aeroportos e da urgência de investimentos para atender a crescente demanda do setor. A Copa do Mundo e as Olimpíadas são apontadas como motivos da pressa no leilão. A desculpa da falta de recursos Como já apontou o economista Paulo Kliass, a desculpa da falta de verbas para os investimentos necessários não tem consistência: "Recursos sobram no Orçamento! O problema é a prioridade definida pelas autoridades para a sua utilização. Encerradas as contas de 2011, por exemplo, apurou-se que o Estado brasileiro forçou a geração de um superávit primário no valor de R$ 130 bilhões ao longo do ano. Uma loucura! Mais de 3% do PIB destinados exclusivamente para o pagamento de juros da dívida pública. Agora basta uma simples comparação. A operação de privatização desses três aeroportos vai render R$ 240 milhões por ano aos cofres da União. Ou seja, se houvesse destinado apenas minguados 0,2% do superávit a cada ano para esse importante compromisso, não precisaria transferir a concessão dos aeroportos ao capital privado" A cobiça das empresas “privadas” O que justifica, então, privatizar este importante patrimônio público. Construído com dinheiro do povo, estes três aeroportos são responsáveis por 30% do total do transporte de passageiros, 57% do total das cargas e 19% das aeronaves que circulam em todo o país. Eles sempre foram alvo da cobiça de poderosas empresas “privadas”, nacionais e estrangeiras. Com o crescimento da demanda no setor, decorrente do aquecimento do mercado interno e da melhoria do poder aquisitivo dos brasileiros, este apetite cresceu ainda mais. As corporações empresariais enxergam nestes aeroportos verdadeiras minas de ouro. Para forçar a privatização, elas contam com ajuda da mídia privatista, que faz terrorismo com os chamados “apagões aéreos”. Cedência à pressão dos monopólios Alguns "calunistas" da mídia parecem condenar as pessoas de baixa renda pelo "caos" nos aeroportos, amplificando a visão preconceituosa das elites. Durante o governo Lula a aviação comercial teve um crescimento vertiginoso no país - com a expansão de 118% nos últimos oito anos. Em 2011, pela primeira vez na história deste país, as viagens de avião ultrapassaram as realizadas em ônibus interestaduais. Daí a violenta gritaria da mídia pela privatização do setor. Diante desta violenta pressão e dos reais gargalos do setor, que decorrem da falta de investimentos nas três últimas décadas e do seu longo processo de sucateamento, Dilma Rousseff resolveu ceder. A presidenta parece ter pressa. Ela teme o caos, com as filas e a gritaria midiática, principalmente por ocasião dos dois eventos esportivos. Mas quais as conseqüências da privatização? Soberania nacional corre riscos Entre outros efeitos negativos, a entrega à iniciativa privada dos aeroportos põe em risco a própria soberania. É preocupante que áreas estratégicas, consideradas de segurança nacional, sejam invadidas por empresas que visam somente o lucro, que não têm qualquer compromisso com a nação. Este temor é que explica a histórica resistência da cúpula da Infraero, formada por militares. Não é para menos que a maioria dos aeroportos do mundo está sob controle do Estado, inclusive nos EUA – nação tão paparicada pelas mentes colonizadas e entreguistas. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, o governo ianque inclusive reforçou este controle. Até as empresas terceirizadas passaram a ser mais fiscalizadas. Desmantelamento da malha aérea Além da razão política, a privatização terá conseqüências danosas para a sociedade. É bom lembrar que este sistema é interligado. A Infraero gerencia 66 dos 67 aeroportos no território brasileiro. Eles representam 97% do movimento do transporte aéreo regular, o que corresponde a 2,6 milhões de pousos e decolagens, transportando mais de 155 milhões de passageiros por ano. Neste sistema interligado, os aeroportos mais rentáveis ajudam a manter os mais deficitários, de menor fluxo de passageiros, mas decisivos para o transporte regional. Ao privatizar Guarulhos, Campinas e Brasília, estes perderão importante fonte de recursos, o que levará ao desmantelamento de toda a malha aérea – a exemplo do que já ocorreu com a privatização do setor ferroviário. O usuário será prejudicado Como explica Francisco Lemos, dirigente do Sindicato Nacional dos Aeroportuários (Sina), “o modelo da Infraero é muito parecido com a relação de alguns estados da federação, onde os mais rentáveis subsidiam os mais deficitários. A arrecadação é centralizada e redistribuída para manter o sistema. A privatização deixará no esquecimento aqueles aeroportos deficitários mais longínquos”. Ele dá um exemplo hipotético sobre o risco da desintegração da malha aérea. “Você se desloca de São Paulo para um aeroporto deficitário, vamos supor, em Juazeiro. Não se sabe em que condições o avião pousará lá, como estará sua pista, seu atendimento. As companhias não vão mais querer fazer determinadas rotas. E quem sentirá realmente o prejuízo será o usuário”. Menos manutenção e segurança Indignado, ele lembra que a Infraero é altamente lucrativa e foi considerada no início de 2011 a segunda melhor empresa gestora de aeroportos do mundo. Nada justifica, portanto, ela ser minoritária nos aeroportos privatizados. “Ela é muito eficiente em seu produto final. É cobiçada por vários países, que tentam firmar acordo com o Brasil para que ela administre os seus aeroportos”. Além do desmantelamento da malha aérea, nada garante que os três aeroportos privatizados serão modernizados, melhorando o atendimento aos usuários. Pela lógica do sistema, os capitalistas visam o lucro. Será que investirão a contento na segurança ou na manutenção dos aeroportos? Eles não cortarão custos, inclusive demitindo trabalhadores, para elevar sua rentabilidade? Demissões e precarização do trabalho O dirigente da Sina não vacila nas respostas. Para ele, a tendência é que muitos funcionários da Infraero, “com todo o seu know-how e experiência, serão descartados. Quando se vê o perfil do pessoal da Infraero, nota-se que é um profissional mais antigo, com mais de 30 anos. Nas empresas privadas que atuam no setor predomina a garotada de 20 anos, com salários menores”. Outro grave problema é que as regras para a “concessão” são um presente para os poderosos monopólios privados. No leilão de hoje, Guarulhos tem um lance mínimo de R$ 3,4 bilhões, com concessão de 20 anos. Viracopos tem um valor inicial estipulado em R$ 1,5 bilhão e prazo de uso de 30 anos. Brasília teve o lance mínimo arbitrado em R$ 582 milhões, com prazo de uso de 30 anos. O contrato cria a chamada Sociedade de Propósito Específico (SPE) com o objetivo de gerir o negócio, onde o capital privado fica com 51% dos votos e a Infraero com 49%. Devido à urgência das obras, a tendência é que a SPE receba empréstimos do BNDES. O edital também não fixa as contrapartidas, como a responsabilização do consórcio ganhador pelos aeroportos de menor fluxo. * Jornalista, presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, militante do PCdoB e autor do livro "A ditadura da mídia"

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Mahatma Gandhi na África do Sul: as memórias da revolta dos zulus

Em 30 de janeiro de 1948, Mohandas Karamchand Gandhi, chamado “Mahatma” (“grande alma”) pelo poeta bengali Rabindranath Tagore, e “Bapu” (“pai”, na língua gujaratí, seu idioma natal) pelo povo indiano, foi assassinado em Nova Délhi, aos 78 anos. Gandhi havia se oposto à divisão da Índia, então sob ocupação inglesa, em dois países - Índia e Paquistão. Até que se tornou inevitável essa divisão, Gandhi divergira da cúpula do Partido do Congresso, encabeçada por Jawaharlal Nehru, que aceitara a divisão, no acordo com os ingleses. Era uma situação insólita, pois, nos conflitos anteriores com Nehru, este sempre fora considerado o líder da ala esquerda do partido, enquanto que a Gandhi, correntemente, se atribuíra o papel antípoda. No entanto, na hora decisiva, os papéis estavam invertidos – ou, na realidade, nunca foram aqueles. Para Gandhi, não havia porque separar muçulmanos de hindus e outras (inúmeras) religiões do chamado subcontinente indiano. E, realmente, os primeiros momentos dessa divisão foram trágicos, com a eclosão de sangrentos conflitos a partir da fronteira entre os dois países, traçada à régua por um funcionário inglês que pela primeira vez pisava na Índia. Gandhi já era, nessa altura – e há muito -, se assim é lícito nos expressar, uma lenda viva. Sua defesa dos direitos dos muçulmanos fez com que um grupo de fascistas hindus levasse a cabo o seu assassinato. Ele tinha sido a principal figura da luta pela independência da Índia. O interessante é que nada em sua juventude, e mesmo em sua maturidade, prenunciava o líder que se tornou. Como ele nos conta em sua autobiografia, publicada em 1929 (“Uma autobiografia ou a história de minhas experiências com a verdade”), mesmo depois de formado em Direito e de ter participado da luta dos imigrantes indianos contra a discriminação racial na África do Sul, ele era um fiel súdito da coroa inglesa, acreditando mesmo que o domínio britânico era a melhor coisa que podia acontecer a um povo. Mas, alguma coisa na vida de Gandhi fez com que mudasse de opinião. Seu amor à verdade fez com que não conseguisse – nem ele queria – eludir as horríveis injustiças que via (e que sofria) a cada dia. Como homenagem a este grande homem, assassinado há 64 anos, publicamos hoje, de forma condensada, o seu relato de um desses momentos decisivos: a sua vivência da revolta zulu de 1906, na África do Sul. O texto foi extraído e traduzido da versão inglesa de sua autobiografia. C.L. Mohandas K.Gandhi Não creio ter conhecido alguém que fosse mais leal do que eu à Constituição britânica. Agora posso ver que o meu amor à verdade era a raiz dessa lealdade. Nunca foi-me possível simular lealdade nem qualquer outra virtude que não sentisse realmente. O hino nacional [britânico] era cantado em todas as reuniões de que participei, em Natal, e eu considerava que era meu dever cantá-lo com todos. Não é que eu ignorasse os defeitos do domínio britânico, mas pensava que, globalmente, ele era aceitável. Naquela época, eu acreditava que o domínio britânico era benéfico para os povos que governava. O preconceito racial que eu vi na África do Sul era, pensei, contrário às tradições britânicas, e eu acreditava que era apenas temporário e local. Por isso, me uni aos ingleses na lealdade ao trono. Com perseverança e cuidado, aprendi a letra e a melodia do "Hino Nacional" e juntava-me aos demais para cantá-lo. Sempre que havia uma oportunidade para expressar essa lealdade sem espalhafato ou alarde, eu prontamente tomava parte nela. Nunca na minha vida explorei essa lealdade, nem procurei ganhar vantagens egoístas por meio dela. Para mim, tinha a natureza de uma obrigação, que eu cumpria sem esperar recompensa. Os preparativos para a celebração do jubileu de diamante da rainha Vitória, ou seja, os 75 anos do seu reinado, estavam em curso quando cheguei à Índia [voltando da África do Sul]. Fui convidado para integrar a comissão designada para esse fim em Rajkot. Aceitei o convite, mas tive a suspeita de que as comemorações seriam, sobretudo, um exibicionismo. Incomodou-me descobrir muita vigarice. Comecei a me perguntar se eu deveria continuar na comissão ou não, mas decidi ficar, limitando-me ao que me designassem. Uma das propostas era plantar árvores. Vi que muitos fizeram isso apenas para se mostrar e agradar os funcionários ingleses. Tentei defender que o plantio de árvores fosse apenas uma sugestão, e não uma obrigação para todos. Devia ser alguma coisa séria, ou era melhor não se fazer. Tenho a impressão de que eles riram das minhas ideias. Lembro que plantei a árvore que me cabia com todo entusiasmo, e que a cuidei e reguei com todo carinho. Eu também ensinei o Hino Nacional para as crianças da minha família. Lembro-me de tê-lo ensinado também aos alunos do colégio local, mas não recordo se foi por ocasião do jubileu ou da coroação do rei Edward VII como imperador da Índia. Posteriormente, a letra do hino começou a chocar-me. À medida que minha concepção de ahimsa [não-violência] amadurecia dentro de mim, tornei-me mais cuidadoso com meus pensamentos e palavras. Especialmente os versos do hino: "Dispersai seus inimigos/ e fá-los cair;/ Confunda seus políticos,/ frustrai seus truques fraudulentos”, feriram o meu sentimento de ahimsa. Compartilhei meus sentimentos com o Dr. Booth, que concordou em que um cultor do ahimsa não podia cantar esses versos. Como poderíamos dar como certo que os chamados 'inimigos' fossem 'velhacos'? E porque eles eram inimigos, eram obrigados a estar errados? De Deus só podemos pedir justiça. O Dr. Booth subscreveu inteiramente os meus sentimentos, e compôs um novo hino para a sua congregação. REBELIÃO Justo quando eu acreditara que poderia respirar em paz, um fato inesperado aconteceu. Os jornais trouxeram a notícia de que estalara a “rebelião” zulu em Natal. Eu não alimentava nenhum rancor contra os zulus; eles jamais tinham incomodado os indianos. Tinha muitas dúvidas sobre essa “rebelião”. Mas acreditava, nessa época, que o Império Britânico existia para o benefício do mundo. Um lógico sentido de lealdade me impedia de desejar o menor dano ao império. A justiça ou o motivo da “rebelião”, portanto, não podiam influenciar a minha atitude. Natal contava com uma força de defesa constituída por voluntários e começou o recrutamento de mais gente. Soube que tal corpo já fora mobilizado para sufocar a "rebelião". Eu me considerava um cidadão de Natal, intimamente ligado ao lugar. Portanto, escrevi ao governador, expressando-lhe que estava preparado, se fosse necessário, para formar um Destacamento de Ambulâncias composto por indianos. Respondeu-me imediatamente, aceitando o oferecimento. Não esperava resposta tão rápida. Afortunadamente, havia tomado todas as medidas necessárias antes de escrever a carta. Dirigi-me a Durban e fiz um chamado aos homens. Não era necessário um grande contingente. Formamos um grupo de 24, dos quais, além de mim, quatro eram gujaratís. Os outros eram operários liberados que haviam residido na Índia meridional, exceto um, que era um pathan livre. Com o objetivo de dar-me uma colocação específica e facilitar a tarefa, como também para obedecer aos regulamentos vigentes, o médico-chefe me nomeou, provisoriamente, sargento-mor, e, a três homens por mim selecionados, sargento a dois deles e cabo ao outro. Também recebemos do governo nossos uniformes. O destacamento esteve em serviço ativo durante umas seis semanas. Ao chegar no cenário da “rebelião”, comprovei que nada justificava este título. Não havia resistência em parte alguma. A razão pela qual os distúrbios foram magnificados com esse nome, residia em que um chefe zulu comunicara que não pagaria uma nova taxa imposta a seu povo, e havia ferido com uma flecha a um sargento que tentou efetivar a nova medida. Em todo momento, meu coração estava com os zulus, e senti muita alegria ao chegar no acampamento e saber que nosso trabalho consistiria, especialmente, em atender aos zulus feridos. O médico-chefe nos deu as boas vindas. Disse que os brancos não queriam atender aos zulus, que suas feridas estavam se infectando, e que estava à beira de enlouquecer. Considerava a nossa chegada uma bênção do Céu para essa gente inocente, e nos equipou com ataduras, desinfetantes, etc., levando-nos até o improvisado hospital. Os zulus ficaram encantados de nos ver. Os soldados brancos trataram de interpor-se entre nós e eles, para nos dissuadir de atendê-los. E como não quisemos escutá-los, ficaram furiosos, e cometeram terríveis abusos contra os zulus. Gradualmente, comecei a conversar com esses soldados, e deixaram de interferir em nosso trabalho. Entre os chefes, estavam o coronel Sparks e o coronel Wylie, que haviam lutado duramente contra mim em 1896. [N.HP: A menção de Gandhi refere-se às manifestações de 1896 contra a chegada de indianos - inclusive o próprio Gandhi – à África do Sul, das quais Sparks e Wylie estiveram entre os promotores.] Mostraram-se surpreendidos por minha atitude, e me chamaram especialmente para agradecer-me pelo que estava fazendo. Apresentaram-me, além disso, ao general Mackenzie. Não acredite o leitor que se tratasse de soldados profissionais. O coronel Wylie era um conhecido advogado de Durban. O coronel Sparks era dono de um açougue na mesma cidade, e o general Mackenzie era um importante granjeiro. Todos esses cavalheiros eram voluntários, e como tais haviam recebido instrução militar. Os feridos dos quais ficamos encarregados não haviam sido feridos no campo de batalha. Uma parte deles foi detida como suspeitos. O general mandou açoitá-los, e o açoite havia rasgado as suas costas de forma bastante grave. Essas chagas, que não tiveram atendimento médico, estavam em avançado estado de infecção. Os outros zulus eram habitantes da área, e ainda que contassem com distintivos que os diferenciavam do “inimigo”, os soldados haviam disparado contra eles por erro. Além dessa tarefa, devíamos atender também aos soldados brancos. Isso não era muito difícil para mim, já que que havia recebido instrução suficiente, durante um ano, no pequeno hospital do doutor Booth. Estávamos adscritos a uma coluna móvel, que tinha ordens de dirigir-se a todo lugar onde o perigo se anunciasse. Em sua maioria, tratava-se de pessoal montado. Logo que o acampamento era levantado, viamo-nos obrigados a segui-los a pé, com nosso material sobre os ombros. Duas ou três vezes fizemos 40 milhas em um dia. Mas, em todos os lugares onde estivemos, pude agradecer a Deus por dar-nos a oportunidade de ser mais do que úteis, carregando, além das coisas, aos moradores zulus da vizinhança sobre nossas macas, até o acampamento, para atendê-los em sua desgraça, porque haviam sido feridos por erro. A "rebelião" dos zulus significou muitas experiências novas e muitos motivos importantes para meditar. A guerra dos boers não me colocou os horrores da guerra na forma vívida como o fez a “rebelião”. Não foi uma guerra, mas a caça ao homem, e não somente na minha opinião, mas na de muitos ingleses com os quais falei disso em algumas ocasiões. Escutar todas as manhãs o informe sobre o dano feito pelos rifles dos soldados entre os indefesos zulus era algo terrível. A taça de amargura se enchia, ao pensar que se não fosse pelo corpo que eu havia formado, os zulus não teriam contado com nenhuma atenção para suas horríveis feridas. Este fato comoveu minha consciência. Mas havia muitas outras coisas sobre as quais pensar. Existia um território pouco povoado no país. Entre os vales e colinas, de forma muito espaçada, localizavam-se as choças dos assim chamados “não-civilizados” zulus. Enquanto eu percorria, com ou sem os feridos, essa enorme solidão, muito frequentemente submergia-me em profundas meditações.