sábado, 14 de agosto de 2010

Getúlio e a emancipação da economia nacional - 1953

Continuando nossas homenagens ao presidente Getúlio Vargas, publicamos hoje sua apresentação para a Mensagem ao Congresso do ano de 1953. Esta foi a penúltima mensagem anual que Getúlio enviou ao Legislativo. Como sempre, nota-se nela o seu estilo. Ao contrário de certos elementos que se acham muito intelectuais – há até alguns que se autopromovem à uma vazia e tola aristocracia acadêmica – Getúlio jamais assinou uma peça de que não fosse o redator final. Jamais remeteu aos deputados e senadores aqueles textos horrendos, burocráticos e sem significado, ou significando apenas um atestado próprio de pedantismo, que durante algum tempo fez com que, no Brasil, esse tipo de documento fosse ignorado, esquecido quase antes de chegar aos seus destinatários.
Em 1953, a Mensagem esboçava todo um balanço de governo, detalhando as providências tomadas, os resultados, e definindo os próximos passos da política do governo. O tema, como sempre, é o desenvolvimento como base imprescindível da independência nacional e da justiça social – mas Getúlio o aborda de um ângulo diferente das mensagens anteriores: o presidente que assumira um país seriamente abalado pelo entreguismo do governo Dutra, mostra que estávamos avançando e que tínhamos todas as condições possíveis para entrar numa nova fase da vida nacional.
Os acontecimentos do ano seguinte mostraram que isso era inteiramente verdadeiro: a reação, quando vislumbra o fim do status quo, torna-se desesperada. Mas o fato desse desespero ter levado a um desfecho trágico para o país e especialmente para o presidente, em nada desmente o quadro desenhado por ele. Pelo contrário, só o enfatiza.
Gostaríamos de agradecer, mais uma vez, ao nosso grande amigo vereador Werner Rempel, de Santa Maria, RS, pela possibilidade de conhecer este escrito de seu conterrâneo. Como Getúlio demonstrou, e o Dr. Werner bem o sabe, a identidade gaúcha só se realiza completamente quando atravessa as águas do rio Pelotas – isto é, quando se torna identidade nacional.

GETÚLIO VARGAS

Senhores Membros do Congresso Nacional
Em obediência a preceito constitucional, é-me grato, mais uma vez, dar-vos conta da situação geral do País e especialmente dos negócios públicos.
Na oportunidade em que se instala a sessão legislativa de 1953, desejo exprimir meu júbilo pela perfeita harmonia de propósitos assegurada entre o Poder que representais e o que tenho a honra de exercer. Esse entendimento em cuja manutenção tanto me empenho, é condição básica para cumprirmos, com êxito, o mandato que nos foi confiado pelo Povo brasileiro.
Estou certo de que o trabalho que conjuntamente realizamos nos dois últimos anos corresponde à expectativa da opinião nacional, embora, no funcionamento dos dois poderes, haja muitas deficiências cuja superação nos preocupa igualmente.
O panorama atual do Brasil nada tem de desfavorável, a não ser na versão alarmista dos eternos agentes da inquietação. No plano internacional, a verdade é que o Brasil é respeitado e vê engrandecido cada vez mais o seu prestígio. Internamente, reina ordem e liberdade e são crescentes os índices gerais de progresso econômico e social.
Mas nem por isso é lícito adotar uma atitude de descuidado otimismo. Grandes massas suportam um nível de vista muito baixo, agravando-se suas carências e sofrimentos resultantes da crônica inflacionária interna, ainda não vencida; da economia internacional de guerra e da estiagem que tem afetado a quase todo o país e se tornou dramática no Nordeste.
Embora haja interesses políticos ansiosos de retirar vantagens das agruras populares, é certo que mesmo os efeitos da calamidade que assola o Nordeste, no terceiro ano de sua dolorosa incidência, conquanto graves, têm sido menores que os da terrível seca de 1932, graças às obras feitas na região a partir da Revolução de 1930 e ao incremento dos meios de assistência.
A melhoria das condições de consumo e da vida é patente, e quando não se generaliza a todo o país, ao menos alcança parcela cada vez mais importante da população. O Brasil está progredindo. Alguns dos seus índices de desenvolvimento são dos mais expressivos do mundo. Mas é também evidente que esse progresso ainda não atende às necessidades e aspirações das massas populares, e as perspectivas da política internacional, na quadra que vivemos, reclamam de nós maior força econômica e organização política, sob pena de sermos arrastados pelas marés incertas dos acontecimentos mundiais.
Entretanto, o Brasil apresenta possibilidade de um progresso mais rápido e mais amplo. Cumpre-lhe, para isso, libertar-se dos embaraços internos decorrentes da insuficiência do aparelhamento de base da economia nacional; das distorções que têm sua raiz na inflação; dos desequilíbrios inter-regionais; do desajuste de muitas instituições aos imperativos da nossa época e às reais necessidades do Brasil, e da falta de uma consciência nacional, razoavelmente unificada quanto à solução dos nossos problemas, a qual resguarde o país do clima de confusão, de exploração política, de competição distrital e de aproveitamento particularista a que muitos procuram levá-lo.
A fim de vencer os embates da conjuntura internacional e as insuficiências da situação interna, impõe-se não poupar nem dispersar esforços; ao contrário, precisamos de nos concentrar no reaparelhamento econômico e no aperfeiçoamento da nossa organização política e social.
Meu governo se tem dedicado, com firmeza, aos programas de fundamental interesse para a emancipação da economia nacional. E prossegue neste rumo, apesar dos fatores de retardamento, fora do âmbito de sua ação. Tenho insistido e insistirei no combate à inflação. Se ela não foi ainda debelada, pois que tal objetivo requer, nas circunstâncias atuais, mais tempo, é certo que a política até aqui seguida contribuiu para atenuá-la.
Assegurou-se continuidade ao trabalho administrativo em todos os seus setores, mesmo quando os programas não eram os mais bem inspirados, salvo quando se impunha imperiosamente mudança de rumo, ou tal era determinado pelo Congresso. Mas não posso dizer que a eficiência dos diversos órgãos e o rendimento econômico das aplicações do orçamento público tenham atingido índices ótimos, uma vez que foram prejudicados por medidas legais, encontradas em vigor, que minaram a disciplina e o estímulo na Administração; pela falta de planejamento adequado na adoção de programas e projetos; pela conseqüente pulverização de recursos, no espaço e no tempo, de tudo resultando insuficiente concentração de meios para a realização rápida e mais econômica dos empreendimentos e falta de ordenação hierárquica, prioridade e coordenação das medidas, tendo em vista os superiores interesses da comunidade nacional.
É impossível corrigir essa anômala situação em pouco tempo, pelo próprio imperativo da continuidade administrativa, sobretudo se persistem as condições políticas que a determinam, e que esperamos sejam superadas o quanto antes, pelo aperfeiçoamento dos métodos de ação partidária, que requer o esforço de tantos estadistas de visão que militam em nossas agremiações políticas.
Como acentuei no discurso do segundo aniversário da atual gestão, os programas que o governo tem lançado, ou cujos estudos estão em andamento, pela sua coerência e unidade fundamental, apresentam, em conjunto, o característico de um plano de Governo. Não era, entretanto, possível retardar o início de programas parciais – tão desprovido estava e ainda está o país de recursos básicos e tão carente de técnicos – até que se elaborasse um plano global.
A integração formal e funcional dos programas parciais de energia, transportes, agricultura, indústrias de base, de obras-sociais e da política monetária, na unidade de um plano, com as retificações recíprocas que se impuserem, é tarefa que já determinei e está sendo realizada em coordenação com órgãos próprios. Para elaboração definitiva do plano e sua permanente atualização, torna-se cada vez mais notória a necessidade da criação de um Conselho de Planejamento e Coordenação contando com serviços técnicos suficientemente equipados.
Para a solução dos problemas econômicos e sociais, é indispensável que toda a sociedade tenha a consciência das necessidades do país e dos sofrimentos do Povo, quando não da própria época em que vivemos. O Brasil precisa do trabalho árduo de todos os cidadãos, mas seria injusto apelar para maiores sacrifícios dos menos favorecidos, enquanto não se desestimula, corajosamente, o espírito do lucro fácil, da fortuna especulativa, da ociosidade e do golpe, e o florescimento, nas classes abastadas e nos grandes centros urbanos, de um padrão de vida de manifesta falsidade, que contrasta brutalmente com a pobreza do povo, particularmente do interior, e é até chocante quando se compara ao de países capitalistas mais avançados.
Esta contradição, atualmente indisfarçável à observação mais elementar, é incompatível com o desenvolvimento equilibrado da economia nacional, pela ação do governo conjugada à legítima iniciativa particular, e se constitui um fermento de desagregação e ameaça à paz social.
No que diz respeito à organização partidária, persistem ainda, no cenário nacional, os sintomas de desajustamento entre as corporações políticas e os anseios populares. De modo geral, os quadros políticos não se manifestam suficientemente sensíveis às necessidades da estrutura econômica do país e às novas tendências populares – já bastante nítidas ao observador atento, por ocasião das eleições de 1950 –, nem se mostram capazes de interpreta-las seguramente e de dar-lhes expressão, no complexo de fatores que atuam na economia e no Estado moderno. Os métodos e processos de nossos partidos, a despeito da clarividência de muitos dos seus líderes e dos progressos recentes da organização partidária, não se transformaram ainda, na medida em que se faz mister, para acompanhar os fatos recentes da vida material e espiritual na Nação.
A consequência deste alheamento dos partidos, com respeito aos eleitores, é dupla: Tolda-se o espírito cívico, esmorece o interesse popular pelos negócios públicos, firma-se um conceito pejorativo ou cético da função política; e, no seio do eleitorado mais inquieto, ganha terreno o trabalho dos que empreitaram a causa extremista.
Na verdade, existe no país um perigo extremista; e ele é tanto maior, quanto mais distante dos anseios populares estiver a atuação das corporações políticas em funcionamento. Não combateremos eficazmente o extremismo pela mera ação policial ou por meio de discriminações cívicas, mas vencendo os agitadores na capacidade de atrair e motivar politicamente as massas, firmando autoridade sobre elas, formulando e resolvendo os seus problemas.
Creio estar cumprindo um dever de lealdade para com a Nação, quando me pronuncio com franqueza e espírito construtivo sobre suas dificuldades. Dela, exclusivamente, me considero servidor. No exercício dos poderes constitucionais que me foram conferidos pelo povo, tenho procurado sempre orientar as forças propulsoras do organismo nacional na direção dos supremos interesses coletivos. Essa diretriz, que tem presidido a todos os atos da minha vida, assume, nos dias que correm, um significado muito particular. Há momentos em que o cumprimento do dever é uma tarefa cômoda ou em que as virtudes nada custam aos que as praticam, tão favoráveis são as circunstâncias. Todavia, os momentos que o país está vivendo exigem de todos, do governo assim como dos indivíduos, austeridade e espírito de renúncia em favor dos interesses coletivos.
A perplexidade política reinante entre nós exprime quão dificilmente as nossas elites se estão ajustando às graves responsabilidades que lhes impõe o período de transição que atravessamos.
Não estarei muito longe da verdade ao afirmar que as eleições de 1950 constituíram para as nossas elites um desafio. Custa a crer que o significado daquele prélio democrático não tenha sido ainda devidamente apreendido pelos nossos quadros dirigentes. É estranho que, ao advertir o país deste fato, seja o governo alvo de diatribes e de imputações as mais equivocadas.
Investido na magistratura suprema do país por uma decisiva deliberação das massas, procurei, desde o início do meu governo, estruturar um corpo de medidas orgânicas, tendentes a firmar, em bases sólidas, o arcabouço da economia nacional. É iniludível que o povo alcança o sentido criador dessas medidas, pois, apesar das suas dificuldades, mantém-se ordeiro e laborioso. Nenhum indício significativo da existência de propósitos de perturbação da ordem é perceptível no seio das massas, apesar dos tenazes esforços dos aproveitadores de todos os matizes.
Os pequenos surtos de agitação que têm sido registrados ultimamente provém, paradoxalmente, de círculos que, pelas suas responsabilidades na hierarquia social, deveriam ser os primeiros interessados na manutenção de um clima de paz.
A conjuntura interna do país está a exigir substanciais mudanças, de caráter econômico e político.
O Brasil possui, hoje, uma economia em vias de propiciar à população níveis de consumo equiparáveis aos vigentes nos países desenvolvidos. Carece, entretanto, para atingir este objetivo em tempo útil, de vencer certas insuficiências, de remover certos obstáculos, de transformar-se de modo mais acelerado e dirigido, através da ação deliberada do governo, fundada no assentamento da opinião nacional.
A composição deste assentimento, em bases democráticas, é precisamente o problema político dos nossos dias e sua resolução implica o compromisso das forças representativas do país com os objetivos de superação do subdesenvolvimento nacional.
O governo não sugere que cesse a oposição, cujo papel criador reconhece e estima. Reclama, porém, uma necessária renovação dos processos de atuação partidária, em face da significação especial dos fatos contemporâneos. Reclama seja contida a onda demagógica deflagrada pelos agentes da inquietação e da desordem ou pelos manipuladores de clientelas. Espera que os partidos combatam a prática de colocar o exercício da representação política a serviço da distribuição de favores aos clãs eleitorais. Em resumo, preconiza a substituição da política de patronagem por uma política de princípios, orientada segundo as necessidades objetivas das classes sociais.
Acresce que nenhuma capitulação de princípios ou abdicação de personalidade partidária se faz mister para que agrupamentos políticos de diferentes origens e tendências possam firmar uma diretriz comum para a solução de problemas básicos do país, oferecendo, sem suspicácia, os meios indispensáveis à ação do governo.
Vereis a seguir um retrato da situação nacional. Não é má, antes muito tem de tranquilizadora. Mas está a requerer a colaboração das forças vivas da Nação. A ação do governo, creio não desmerecer do grande esforço dos brasileiros. O governo não se considera indene de erros, mas julga ter direito ao reconhecimento público pelos esforços que tem feito e deseja a colaboração geral para levar avante o seu programa, voltado para o futuro do Brasil e a melhoria das condições de vida do nosso povo.