segunda-feira, 20 de setembro de 2010

No mundo da Blackwater

O repórter e advogado Adam Ciralsky foi, durante três anos, funcionário da CIA - tornando-se, depois, seu oponente. Talvez devido ao passado, talvez devido ao presente, Ciralsky foi convidado pelo sinistro Erik Prince, dono da notória Blackwater, a visitar suas instalações nos EUA e no Afeganistão.
Ciralsky relata que Prince estava “fumaçando”, devido aos processos, às denúncias no Congresso, à revelação, pelo atual diretor da CIA, do programa de assassinatos de supostos membros da Al-Qaeda pela Blackwater, e à auditoria que o governo Obama está realizando nessa central de mercenários, assassinos e torturadores, auditoria descrita sutilmente por Prince como “um exame proctológico gigante”.
Porém, como é óbvio, o cliente da Blackwater, com seus milhares de mercenários perpetrando banhos de sangue no Iraque e no Afeganistão, é o próprio governo dos EUA – o Departamento de Defesa, o Departamento de Estado e, em especial, a CIA. Aliás, mostra Ciralsky, a Blackwater não passa de um “empreendimento” da CIA para burlar os limites legais e desviar de si a atenção do público.
A íntegra do artigo de Ciralsky foi publicada na edição de janeiro da revista “Vanity Fair”. De onde se conclui que a regra enunciada pelo Barão de Itararé - “de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai coisa alguma” - tem exceções. Aliás, nos últimos tempos, não têm sido poucas.


C.L.


ADAM CIRALSKY

Erik Prince, recentemente indiciado como participante de um programa de assassinatos da CIA, ganhou notoriedade como dirigente da Blackwater, uma jamanta empresarial no ramo da contratação de mercenários que é hoje objeto de investigação da Justiça, acusada de suborno e chacina, com cinco ex-empregados no banco dos réus. Em resposta aos seus críticos, o rico ex-membro das forças especiais (SEAL) da Marinha dos EUA, expõe ao autor as entranhas de sua empresa nos EUA e no Afeganistão, revelando seu papel na guerra norte-americana contra o terror.
“Eu coloquei a mim e a minha empresa à disposição da CIA em algumas missões muito arriscadas” – diz Erik Prince, enquanto supervisiona seu complexo pesadamente fortificado de 2.800 hectares, numa propriedade rural em Moyock, Carolina do Norte. “Mas quando torna-se politicamente conveniente, sou empurrado para baixo do ônibus”. Prince – o fundador da Blackwater, a mais conhecida empresa de serviços militares privados do mundo - está realmente fumaçando. Quer desabafar. E quer que outros ouçam-no desabafar.
Erik Prince tem hoje um problema de imagem – do tipo que é impossível de ser resolvido pelos serviços da Avenida Madison [N.HP: na Madison, em Nova Iorque, estão as grandes agências de publicidade dos EUA].
Com 40 anos, herdeiro de uma fortuna que veio do ramo de autopeças em Michigan e ex-SEAL [N.HP: forças especiais da Marinha dos EUA], ele conseguiu a distinção, recentemente, de ser um vilão tanto na vida quanto na arte.
Deputados, senadores, advogados, grupos de direitos humanos e noticiários descreveram Prince como aproveitador, beneficiário da guerra, que reuniu uma quadrilha de bandidos e milicianos capaz de derrubar governos. Seus empregados têm sido repetidamente acusados de uso excessivo, eventualmente mortal, de força, no Iraque. De fato, vários iraquianos morreram em confrontos com o ‘exército’ da Blackwater. Em novembro, ao mesmo tempo em que um Grande Júri na Carolina do Norte analisava uma longa lista de acusações contra a empresa, meia dúzia de processos tramitavam no Estado da Virginia; e, enquanto cinco ex-empregados da Blackwater preparavam-se para enfrentar julgamento, acusados da morte de 17 iraquianos, o “The New York Times” publicou, em matéria de primeira página, que a empresa de Prince, no dia seguinte à tragédia, tentara subornar funcionários do governo do Iraque para que mudassem seus depoimentos. São acusações que, para Prince, não passam de “mentiras (…) sem provas, sem substância, sem documentos [e] anônimas” (A marca Blackwater é tão infame que até os Talibãs fizeram circular teorias conspiratórias, segundo as quais a empresa de Prince estaria envolvida em ações com suicidas-bomba no Paquistão).
Ao mesmo tempo, em Hollywood, Prince tornou-se o favorito dos roteiristas. No filme “State of Play”, um clone da Blackwater (PointCorp.) usa sua rede de mercenários para vigilância ilegal e assassinatos. Na série “24 horas”, Jon Voight representa Jonas Hodges, versão ligeiramente modificada de Prince, cuja empresa (Starkwood) ajuda um senhor-da-guerra africano a arrumar gás venenoso para ser usado contra alvos norte-americanos.
Mas a verdade sobre Prince talvez atinja ordens de grandeza mais estranhas que qualquer ficção. Nos últimos seis anos, parece ter vivido uma vida estonteantemente dupla. Publicamente, trabalhou como presidente da Blackwater. Privadamente, e secretamente, opera como agente da CIA, ajudando a planejar, financiar e executar operações que vão desde infiltrar seus funcionários em áreas de “acesso negado” – locais nos quais a inteligência oficial dos EUA tem dificuldade de penetrar – até organizar equipes que têm como alvos os membros da al-Qaeda e seus aliados. Prince, segundo fontes com conhecimento de suas atividades, serve como braço da CIA. Enquanto sua empresa estava ocupada em amealhar mais de US$ 1,5 bilhão em contratos assinados com o governo entre 2001 e 2009 – atuando, entre outras coisas, como guarda pretoriana dos funcionários da CIA e do Departamento de Estado no exterior – Prince tornou-se uma espécie de Mr. Faz-Tudo na guerra ao terror. Seu acesso a forças paramilitares, armas e aviões, e uma incansável ambição – atributos contra os quais se mobilizam seus críticos – tornam Prince extremamente valioso, dizem, para a inteligência dos EUA.


BANDIDOS


Sentado no fundo de um Boeing 777 a caminho do Afeganistão, Prince folheia um exemplar de Defense News, enquanto o filme “Taken” brilha na televisão da aeronave. No filme, Liam Neeson faz o papel de um agente aposentado da CIA que organiza uma ação agressiva de resgate depois que sua filha é sequestrada em Paris.
É inescapável que Prince vê a si mesmo como um predestinado. Pressionado a falar sobre os que o acusam de ser mercenário – palavra que detesta – desfia uma lista de militares não regularmente alistados, dentre os quais, Lafayette, aliado dos colonos durante a Guerra de Independência.
Como outros mercenários, conhece as dificuldades de comandar uma empresa que para muitos não passa de ‘agência de aliciamento de bandidos e empregos temporários’. Prince teve de reunir inúmeros veteranos condecorados, tanto quanto tipos mais sinistros, quadrilheiros, assaltantes e espiões, dentre outros.


FALLUJAH


A Blackwater tem origem humilde, quase simplória. A empresa tomou forma nas turfeiras de Moyock, Carolina do Norte – nada que se assemelhe a uma incubadora de empresas que interessem à Defesa como prestadoras de serviços secretos.
Hoje, o local é centro de uma rede de instalações onde são treinadas cerca de 30 mil pessoas por ano. O campo de treinamento tem pista privada de pouso. Os hangares abrigam um verdadeiro zoológico de aviões de guerra: helicópteros Bell 412 (usados para seguir ou conduzir diplomatas no Iraque), helicópteros Black Hawk, um avião Dash 8 (que transporta soldados e veículos no Afeganistão). No campo de treinamento, com mais de 52 cenários, há vilas virtuais desenhadas para mostrar todos os tipos imagináveis de ameaça real: pequenas praças cobertas de carros explodidos, situadas junto a cruzamentos de rodovias e portos.
Nos dias imediatamente seguintes ao ataque ao navio USS Cole, dos EUA, em outubro de 2000, no Iêmen, a Marinha procurou Prince, dentre outras empresas, em busca de retreinamento para seus marinheiros, para o caso de ataques corpo a corpo, ou de curta distância. (Até hoje, diz a empresa, cerca de 125 mil membros do corpo da Marinha já passaram por seus programas). Além de engordar o caixa, o contrato com a Marinha ajudou a Blackwater a construir um banco de dados de militares aposentados – muitos dos quais veteranos das forças especiais – que poderiam ser recrutados como instrutores.
Quando a Al-Qaeda atacou os EUA, em 11/9, a empresa de Prince passou a trabalhar para o Departamento de Defesa, oficialmente, não clandestinamente, embora sempre em relativa obscuridade, em ações no Afeganistão e, depois da invasão pelos EUA, também no Iraque.
Então aconteceu o 31/3/2004. Nesse dia, os guerrilheiros emboscaram quatro de seus empregados na cidade iraquiana de Fallujah. Os homens foram mortos a tiros, os corpos incendiados. Os cadáveres destroçados de dois deles foram pendurados em uma ponte sobre o rio Eufrates.
“Foi horrível de ver” – Prince relembra. “Estive na Marinha, em guerra, e jamais perdi homem que estivesse sob meu comando. Na Blackwater, jamais tivemos mortes, nem por acidente em treinamento com arma de fogo. E então, de repente, quatro dos meus rapazes haviam sido mortos e, pior, os cadáveres foram violados”. Três meses depois, regras editadas pelas autoridades da coalizão em Bagdá declararam imunes à lei iraquiana as empresas privadas que operavam no Iraque.
Em consequência das mortes em serviço, as famílias dos mortos processaram a Blackwater, alegando que a empresa não oferecera proteção adequada aos seus entes queridos. Como resposta, a Blackwater processou as famílias por quebra de contrato que proibia seus empregados e respectivos inventariantes de processar a empresa em caso de morte em ação; a empresa também alegou que, dado que operava como extensão do corpo militar, não poderia ser responsabilizada por mortes em zona de guerra. (Passados cinco anos, o processo ainda não foi concluído).
Em 2007, investigação pelo Congresso dos EUA sobre o mesmo incidente concluiu que os empregados haviam sido enviados para área dominada pelos guerrilheiros “sem preparação, sem recursos e sem apoio suficientes.” Para a Blackwater, o relatório do Congresso não passou de “versão de um só lado, sobre um trágico incidente”.
À medida que a guerra avançava, avançavam também as acusações contra a empresa. Num dos processos, um dos empregados matou a tiros um iraquiano pai de seis filhos, que estava parado à margem da estrada em Hillah (Prince disse mais tarde ao Congresso que o empregado foi demitido por ter tentado encobrir o incidente). Em outro, um técnico especialista em armas de fogo da Blackwater foi acusado de ter-se embriagado numa festa na Zona Verde e assassinado um dos guarda-costas do vice-presidente do Iraque. O técnico foi demitido mas não foi processado e, adiante, obteve acordo com a família da vítima, embora ilegal, que encerrou o processo.
Esses episódios, entretanto, empalidecem diante dos eventos de 16/9/2007, quando uma falange de guarda-costas da Blackwater saltou de quatro carros num cruzamento de Bagdá, na Praça Nisour, e abriu fogo contra a multidão. Quando a fumaça dissipou-se, havia 17 iraquianos civis mortos. Depois de 15 meses de investigações, o Departamento de Justiça acusou seis por massacre premeditado e outros crimes, concluindo que o uso da força fora, além de injustificado, também não provocado.
Um dos acusados reconheceu-se culpado e aguarda-se que deponha contra os outros; até agora, todos os demais se declararam inocentes. O “New York Times” noticiou recentemente que, imediatamente depois do tiroteio, os altos executivos da empresa autorizaram pagamentos secretos de 1 milhão de dólares a autoridades iraquianas, para comprar seu silêncio – acusação que, para Prince, é “falsa”, insistindo em que “[nunca houve] nem planos nem qualquer discussão sobre subornar autoridades”.
A Praça Nisour gerou repercussões catastróficas para a Blackwater. As funções que desempenhava no Iraque foram reduzidas, os ganhos caíram 40%. Hoje, diz Prince, desembolsa US$ 2 milhões por mês em despesas com taxas e advogados para responder aos processos civis e está sendo submetido a uma auditoria que, para ele, “é um exame proctológico gigante” por quase uma dúzia de agências federais. “Antes, investíamos em Pesquisa & Desenvolvimento, para construir melhores capacidades para servir ao governo dos EUA” – diz Prince. “Hoje, pagamos advogados”.
Na Carolina do Norte, um tribunal federal investiga diversas acusações, inclusive de transporte ilegal de armas de assalto e silenciadores para o Iraque, escondidos em sacos de ração para cachorro (a Blackwater negou essas acusações, mas confirmou que ocultava armas em contêineres de ração para cachorro, para evitar que fossem roubadas “por agentes de alfândega corruptos em países estrangeiros”).
Na Virginia, dois ex-empregados assinaram declarações judiciais nas quais dizem que Prince e a empresa Blackwater devem ter assassinado ou mandado assassinar pessoas suspeitas de colaborar com as autoridades dos EUA que investigavam a empresa – acusação que a Blackwater considerou “escandalosa e sem qualquer base”. Um dos empregados disse também, em juízo, que funcionários da empresa mantinham um arranjo de troca de esposas, para finalidades sexuais, acusações que, para a Blackwater, seriam “anônimas, sem provas e caluniosas”.
Prince decidiu fazer sumir a marca Blackwater, substituindo-a por “Xe”, abreviatura de “xenônio”, gás inerte, não combustível que, seguindo a inclinação política de Prince, localiza-se na extrema direita da tabela periódica de elementos. Prince e outros altos executivos da empresa, entre eles, continuaram a usar o nome Blackwater. E, como os fatos não demorariam a comprovar, a reputação da empresa continua tão inflamável como sempre.


CIA


Em junho passado, Leon Panetta, diretor da CIA, depôs em sessão secreta dos comitês de inteligência da Câmara e do Senado, para informar sobre um programa de ação secreta que a Agência manteve, sem conhecimento do Congresso. Panetta explicou que só na véspera soubera daquela operação e que a mandara cancelar imediatamente.
Durante a sessão secreta, segundo dois participantes, Panetta citou Erik Prince e a Blackwater como participantes chave do programa. Imediatamente depois, diz Prince, começou a receber telefonemas com perguntas impertinentes, de pessoas que ele descreve como muito distantes do círculo daqueles nos quais se deve confiar.
Em julho, o “Wall Street Journal” descreveu o programa como “esforço para executar uma autorização presidencial, de 2001, para capturar ou matar agentes da Al-Qaeda”. A CIA, declaradamente, planejava dar conta dessa tarefa despachando pequenas equipes para o exterior.
Dia 20/8, o tempo fechou. O New York Times publicou matéria cuja manchete dizia “CIA pediu socorro à Blackwater para matar jihadistas”. O Washington Post ajudou: “CIA contrata empresa para programa de assassinatos”.
Prince confessa que se sentiu traído. “Não entendo como um programa tão sensível pode ter vazado”, diz. “E para me jogar no fogo?”. No dia seguinte, o “Times” foi além, e revelou o papel da Blackwater no emprego de aviões-robôs para matar os cabeças da Al-Qaeda e de outros líderes do Talibã: “Em bases clandestinas no Paquistão e no Afeganistão (…), empresas contratadas montam e carregam mísseis Hellfire e bombas gigantes guiadas a laser ou aviões-robôs Predator pilotados por controle remoto, trabalho que, antes, sempre foi executado por agentes da CIA”.
Prince culpa os democratas no Congresso pelo vazamento e insiste em que há dois pesos e duas medidas. “A esquerda reclamou tanto da identidade da [agente da CIA] Valerie Plame ter sido exposta [pelo staff de Bush] por razões políticas. O que aconteceu comigo foi pior. Por razões políticas, vazaram informes sobre uma operação altamente sensível e secreta, e, além disso, expuseram meu nome como associado àquela operação!”. Exatamente como no caso Plame, contudo, os vazamentos levaram os advogados da CIA a também exigir que o Departamento de Justiça inicie investigação criminal para identificar os responsáveis pelo vazamento, que distribuíram para a imprensa informação classificada como altamente secreta que envolvia a Blackwater.
O Congresso e a mídia não viram o elefante na sala. Prince não era apenas contratado, dizem os mais próximos da questão; era também agente pleno [da CIA].
Três fontes com conhecimento direto, dizem que a National Resources Division da CIA recrutou Prince em 2004 para integrar uma rede secreta de cidadãos norte-americanos com habilidades especiais ou acesso não normal a alvos que interessavam à Agência.
A CIA não se pronuncia sobre essas questões, mas o próprio Prince é muito mais loquaz. “Eu estava trabalhando para criar uma força restrita e focada”, diz ele, “exatamente como Donovan fez há anos” – referindo-se a William “Wild Bill” [Bill, o Selvagem] Donovan, agente que, na II Guerra Mundial, comandou o Escritório de Serviços Estratégicos, precursor da moderna CIA.
Duas fontes, que conhecem bem aquele arranjo, dizem que os agentes que recrutaram Prince tinham autorização, dada pelo alto comando da CIA, para recrutá-lo e em seguida abriram um “arquivo 201”, segundo o qual Prince apareceria, nos registros da Agência, como recruta vetado. Não se sabe com clareza quem mandava em quem, porque Prince diz que, diferente dos demais recrutados, trabalhava praticamente por conta própria, usando, segundo diz, dinheiro seu, para testar a viabilidade de algumas operações.
“Fui criado bem próximo da indústria de autopeças,” Prince explica. “Os clientes diziam ao meu pai: ‘Precisamos disso, assim, assim’. Meu pai tinha de investir seu próprio dinheiro para criar protótipos que atendessem cada demanda. A minha abordagem sempre foi a mesma: se você cria a peça, os clientes aparecem”.
Segundo duas fontes que conhecem seu trabalho, Prince desenvolvia nessa época meios não convencionais para entrar em países considerados “impenetráveis” – nos quais a CIA não conseguia trabalhar, fosse porque não tinha bases a partir das quais operar, ou porque os serviços locais de inteligência tinham meios para frustrar todas as iniciativas da Agência. “Não ganhei dinheiro algum com esse trabalho”, Prince contra-argumenta. Está pronto para especificar a exata natureza e origem do que ganha. “Estou sendo pintado pelo Congresso como mercenário que enriquece nessa guerra. Mas sou eu quem paga, do meu bolso, para manter várias atividades de inteligência necessárias para apoiar a segurança nacional dos EUA. Do meu bolso.” (E é um bolso fundo: segundo o Wall Street Journal, a Blackwater obteve lucros de mais de US$ 600 milhões, em 2008).