quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O papel genocida da Otan

O texto que publico hoje constitui a terceira e quarta partes das Reflexões de Fidel sobre a agressão à Líbia pelos Estados Unidos e as forças da Otan. FIDEL CASTRO No dia 23 de fevereiro, sob o título "Dança macabra de cinismo" expus: "A política de pilhagem imposta pelos Estados Unidos e seus aliados da Otan no Oriente Médio entrou em crise." "Graças à traição de Mubarak em Camp David o Estado árabe palestino não conseguiu existir, apesar dos acordos da ONU de novembro de 1947, e Israel se tornou uma forte potência nuclear aliada aos Estados Unidos e à Otan. "O Complexo Militar Industrial dos Estados Unidos forneceu dezenas de milhares de milhões de dólares a cada ano a Israel e aos próprios estados árabes por ele submetidos e humilhados. "O gênio saiu da lamparina e a Otan não sabe como controlá-lo. "Vão tentar tirar o máximo proveito dos lamentáveis acontecimentos na Líbia. Ninguém seria capaz de saber neste momento o que ali está ocorrendo. Todas as cifras e versões, até as mais inverosímeis, têm sido divulgadas pelo império através da mídia, plantando o caos e a desinformação. "Resulta evidente que dentro da Líbia se desenvolve uma guerra civil. Por que e como ela se desatou? Quem pagará as consequências? A agência Reuters, fazendo eco do critério de um conhecido banco do Japão, o Nomura, expressou que o preço do petróleo poderia ultrapassar qualquer limite: "... Quais seriam as conseqüências no meio da crise alimentar? "As principais lideranças da Otan estão exaltadas. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, informou a ANSA, ‘…admitiu em um discurso no Kuwait que os países ocidentais se enganaram ao apoiar governos não democráticos no mundo árabe.’" "Seu colega francês Nicolás Sarkozy declarou: ‘A prolongada repressão brutal e sangrenta da população civil líbia é nojenta’". "O chanceler italiano Franco Frattini declarou ‘crível’ a cifra de mil mortos em Trípoli […] ‘a cifra trágica será um banho de sangue’." "Hillary Clinton declarou: "…o ‘banho de sangue’ é ‘completamente inaceitável’ e ‘tem que parar’…" Ban Ki-moon falou: "‘É absolutamente inaceitável o uso da violência que existe no país’." "…‘o Conselho de Segurança agirá de acordo com o que decida a comunidade internacional’." "‘Estamos considerando uma série de opções’." "O que Ban Ki-moon espera realmente é que Obama diga a última palavra. "O Presidente dos Estados Unidos falou nesta quarta-feira à tarde e expressou que a Secretária de Estado viajaria à Europa visando combinar com seus aliados da Otan as medidas a serem tomadas. Em sua face se constatava a oportunidade de lidar com o senador da extrema-direita dos republicanos, John McCain; o senador pró-israelita de Connecticut, Joseph Lieberman e os líderes do Tea Party, para garantir sua candidatura pelo partido democrata. "A mídia do império tem preparado o terreno para agir. Nada teria de estranho a intervenção militar na Líbia, com o qual, também, garantiria à Europa os quase dois milhões de barris diários de petróleo ligeiro, se antes não ocorrerem acontecimentos que ponham fim à chefia ou à vida de Kadafi. "De qualquer forma, o papel de Obama é bastante complicado. Qual será a reação do mundo árabe e muçulmano se o sangue nesse país for derramado em abundância com essa aventura? Uma intervenção da Otan na Líbia conseguirá parar a onda revolucionária desatada no Egito? "No Iraque foi derramado o sangue inocente de mais de um milhão de cidadãos árabes, quando o país foi invadido com falsos pretextos. "Ninguém no mundo estará de acordo com a morte de civis indefesos na Líbia ou qualquer outra parte. E me pergunto: aplicarão os Estados Unidos e a Otan esse princípio aos civis indefesos que os aviões sem piloto ianques e os soldados dessa organização matam todos os dias no Afeganistão e no Paquistão? "É uma dança macabra de cinismo." Enquanto meditava sobre estes fatos, nas Nações Unidas se abriu o debate previsto para ontem, terça-feira, 25 de outubro, em torno da "Necessidade de pôr fim ao bloqueio comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América contra Cuba", algo que vem sendo exposto pela imensa maioria dos países membros dessa instituição, ao longo de 20 anos. Desta vez os inúmeros raciocínios elementares e justos — que para os governos dos Estados Unidos eram senão meros exercícios retóricos — tornaram evidente, como nunca antes, a fraqueza política e moral do império mais poderoso que jamais existiu, a cujos interesses oligárquicos e insaciável sede de poder e riquezas têm sido submetidos todos os habitantes do planeta, incluído o próprio povo desse país. Os Estados Unidos tiranizam e saqueiam o mundo globalizado com seu poderio político, econômico, tecnológico e militar. Essa verdade torna-se cada vez mais óbvia após os debates honestos e valentes que tiveram lugar nos últimos 20 anos nas Nações Unidas, com o apoio dos estados que supostamente expressam a vontade da imensa maioria dos habitantes do planeta. Antes da intervenção de Bruno, numerosas organizações de vários países expressaram seus pontos de vista através de um de seus membros. O primeiro deles foi a Argentina, em nome do Grupo dos 77 mais a China; a seguir o Egito, em nome dos NOAL; Quênia, em nome da União Africana; Belize, em nome da CARICOM; Cazaquistão, em nome da Organização da Cooperação Islâmica; e o Uruguai, em nome do MERCOSUL. Independentemente destas expressões de caráter coletivo, a China, país de crescente peso político e econômico no mundo, a Índia e a Indonésia apoiaram firmemente a resolução através de seus embaixadores; entre os três representam 2,7 bilhões de habitantes. Também o fizeram os embaixadores da Federação Russa, Bielorrúsia, África do Sul, Argélia, Venezuela e o México. Dentre os países mais pobres do Caribe e da América Latina, vibraram as palavras solidárias da embaixadora de Belize, que falou em nome da comunidade do Caribe, do representante de São Vicente e as Granadinas que o fez em nome do seu país e o da Bolívia, cujos argumentos relacionados com a solidariedade de nosso povo, apesar de um bloqueio que dura já 50 anos, será um estímulo imperecedouro para nossos médicos, educadores e cientistas. A Nicarágua falou antes da votação, para explicar com valentia por que votaria contra aquela pérfida medida. Anteriormente também o tinha feito o representante dos Estados Unidos para explicar o inexplicável. Senti pena por ele. É o papel que lhe deram. Quando chegou a hora da votação, dois países se ausentaram: Líbia e Suécia; três se abstiveram: Ilhas Marshall, Micronésia e Palau; dois votaram contra: Estados Unidos e Israel. Somados todos os que votaram contra, se abstiveram, ou se ausentaram: Os Estados Unidos, com 313 milhões de habitantes; Israel, com 7,4 milhões; Suécia, com 9,1 milhões; Líbia, com 6,5 milhões; Ilhas Marshall, com 67,1 mil; Micronésia, 106,8 mil; Palau, com 20,9 mil, somam 336 milhões 948 mil, equivalente a 4.8% da população mundial, que neste mês já atinge os 7 bilhões. Depois da votação, para explicar seus votos, falou a Polônia em nome da União Européia que, apesar de sua estreita aliança com os Estados Unidos e sua obrigada participação no bloqueio, é contrária a essa medida criminosa. Depois, 17 países fizeram uso da palavra, para explicar com firmeza e decisão por que votaram a resolução contra o bloqueio. 26 de outubro de 2011 No dia dois de março, sob o título "A guerra inevitável da Otan" escrevi: "Diferentemente do que acontece no Egito e Tunísia, a Líbia ocupa o primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento Humano da África e tem a mais alta esperança de vida do Continente. A educação e a saúde recebem especial atenção do Estado. O nível cultural de sua população é muito alto, sem dúvidas. Seus problemas são de outro caráter. [...] O país requeria abundante força de trabalho estrangeira para levar a cabo ambiciosos planos de produção e desenvolvimento social." "Dispunha de enormes receitas e reservas em divisas convertíveis depositadas nos bancos dos países ricos, com as quais adquiriam bens de consumo e inclusive, armas sofisticadas que precisamente lhe forneciam os mesmos países que hoje querem invadi-la em nome dos direitos humanos. "A colossal campanha de mentiras, desatada pelos meios maciços de informação, originou uma grande confusão na opinião pública mundial. Passará tempo antes que possa ser reconstruído o que realmente tem acontecido na Líbia, e separar os fatos reais dos falsos que foram divulgados." "O império e seus principais aliados empregaram os meios mais sofisticados para divulgar informações deformadas sobre os acontecimentos, entre as quais era preciso inferir os vestígios da verdade." "O imperialismo e a Otan % seriamente preocupados pela onda revolucionária desatada no mundo árabe, onde é gerada grande parte do petróleo que sustenta a economia de consumo dos países desenvolvidos e ricos % não podiam deixar de aproveitar o conflito interno surgido na Líbia para promover a intervenção militar." "Apesar do dilúvio de mentiras e da confusão criada, os Estados Unidos não conseguiram arrastar a China e a Federação Russa à aprovação pelo Conselho de Segurança de uma intervenção militar na Líbia, embora conseguisse obter em câmbio, no Conselho de Direitos Humanos, a aprovação dos objetivos que procurava nesse momento." "O fato real é que a Líbia já está envolvida numa guerra civil, como tínhamos previsto, e nada puderam fazer as Nações Unidas para evitá-lo, salvo que seu próprio secretário-geral espalhasse uma boa dose de combustível no fogo. "O problema que talvez não imaginavam os atores é que os próprios líderes da rebelião irrompessem no complicado tema declarando que rejeitavam toda intervenção militar estrangeira." Um dos cabeças da rebelião, Abdelhafiz Ghoga, no dia 28 de fevereiro, num encontro com os jornalistas, declarou: "O que queremos são informações de inteligência, mas em caso nenhum que seja afetada nossa soberania aérea, terrestre ou marítima." "A intransigência dos responsáveis da oposição sobre a soberania nacional refletia a opinião manifestada de forma espontânea por muitos cidadãos líbios à imprensa internacional em Bengasi", informou um despacho da agência AFP na passada segunda-feira. "Nesse mesmo dia, uma professora de Ciências Políticas da Universidade de Bengasi, Abeir Imneina, — adversária de Kadafi — declarou: "Existe um sentimento nacional muito forte na Líbia." "‘Além disso, o exemplo do Iraque mete medo no conjunto do mundo árabe’, sublinhou, em referência à invasão norte-americana de 2003 que devia levar a democracia a esse país e depois, por contágio, ao conjunto da região, uma hipótese totalmente desmentida pelos fatos." "‘Sabemos o que se passou no Iraque; é que se encontra em plena instabilidade, e verdadeiramente não desejamos seguir o mesmo caminho. Não queremos que os norte-americanos venham para ter que terminar lamentando a Kadafi’, continuou esta perita." A poucas horas de ser publicada esta notícia, dois dos principais órgãos de imprensa dos Estados Unidos, ‘The New York Times’ e ‘The Washington Post’, apressaram-se em oferecer novas versões sobre o tema, do qual informa a agência DPA no dia seguinte, 1º de março: ‘A oposição líbia poderia solicitar que o Ocidente bombardeie desde o ar posições estratégicas das forças fiéis ao presidente Muamar Al Kadafi, informa hoje a imprensa norte-americana’." "O tema está sendo discutido dentro do Conselho Revolucionário líbio, precisam o ‘The New York Times’ e o ‘The Washington Post’ em suas versões on-line." "No caso de que as ações aéreas sejam feitas ao abrigo das Nações Unidas, elas não implicariam uma intervenção internacional, explicou o porta-voz do conselho, citado pelo ‘The New York Times’." "‘The Washington Post’ citou rebeldes reconhecendo que, sem o apoio de Ocidente, os combates com as forças leais a Kadafi poderiam durar muito e custar grande quantidade de vidas humanas." Imediatamente me perguntei nessa Reflexão: "Por que o empenho em apresentar os rebeldes como membros proeminentes da sociedade reclamando bombardeios dos Estados Unidos e da Otan para matar líbios?" Algum dia será conhecida a verdade, através de pessoas como a professora de Ciências Políticas da Universidade de Bengasi, que com tanta eloquência narra a terrível experiência que matou, destruiu os lares, deixou sem emprego ou fez emigrar milhões de pessoas no Iraque. Hoje, quarta-feira, 2 de março, a Agência EFE apresenta o conhecido porta-voz rebelde fazendo declarações que, a meu ver, afirmam e ao mesmo tempo contradizem as da segunda-feira: ‘Bengasi (Líbia), 2 de março. A direção rebelde líbia pediu hoje ao Conselho de Segurança da ONU que lance um ataque aéreo ‘contra os mercenários’ do regime de Muamar Kadafi." "A qual das muitas guerras imperialistas se pareceria esta? "A da Espanha em 1936, a de Mussolini contra a Etiópia em 1935, a de George W. Bush contra o Iraque no ano 2003 ou a qualquer uma das dezenas de guerras promovidas pelos Estados Unidos contra os povos da América, desde a invasão do México em 1846, até a das Malvinas em 1982? "Sem excluir, é claro, a invasão mercenária de Girón, a guerra suja e o bloqueio a nossa Pátria ao longo de 50 anos, que se cumprirão no próximo 16 de abril. "Em todas essas guerras, como a do Vietnã que custou milhões de vidas, imperaram as justificações e as medidas mais cínicas. "Para os que alberguem alguma dúvida sobre a inevitável intervenção militar que se produzirá na Líbia, a agência de notícias AP, a qual considero bem informada, encabeçou uma notícia publicada hoje, em que se afirma: ‘Os países da Organização do Tratado do Atlântico (Otan) elaboram um plano de contingência tomando como modelo as zonas de exclusão de voos estabelecidas sobre os Balcãs na década de 1990, no caso de que a comunidade internacional decida impor um embargo aéreo sobre a Líbia, disseram diplomatas’". Qualquer Pessoa honesta capaz de observar com objetividade os acontecimentos, pode avaliar a periculosidade do conjunto de fatos cínicos e brutais que caracterizam a política dos Estados Unidos, e explicam a vergonhosa solidão desse país no debate das Nações Unidas sobre a "Necessidade de pôr fim ao bloqueio econômico, comercial e financeiro contra Cuba". A pesar do trabalho, acompanho de perto os Jogos Pan-Americanos Guadalajara 2011. Nosso país orgulha-se desses jovens que são exemplos para o mundo por seu desinteresse e espírito de solidariedade. Congratulo-os afetuosamente, já ninguém poderá lhes arrebatar o lugar de honra que ganharam. Fidel Castro Ruz 28 de outubro de 2011

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Quem é o povo no Brasil?

O texto que publico nesta e nas próximas é um dos mais citados na historiografia do país – e, no entanto, um dos menos conhecidos. "Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro" é a aula inaugural de 1959 do curso regular do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), proferida a 12 de março daquele ano pelo historiador e general Nelson Werneck Sodré. Pela importância do texto e pela raridade de sua publicação, optamos por não condensá-lo. Portanto, os leitores terão acesso à íntegra da aula de Nelson Werneck Sodré. O ISEB – órgão do Ministério da Educação – congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e o próprio Nelson Werneck Sodré. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento. A Nação, portanto, era o centro desse pensamento – daí a adoção dos termos "nacionalismo" e "nacional-desenvolvimentismo". Respondendo àqueles que subestimavam o problema nacional, isto é, o rompimento das amarras de dependência que atrasavam o país, Ignácio Rangel, talvez o maior economista daquela época, definiu deste modo a questão: "A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos" (grifo nosso). Muito interessante é que certas polêmicas da época reaparecem no debate de hoje – o motivo é simples: há problemas do país, basicamente sua relação com os centros imperialistas, que ainda não foram completamente resolvidos. Portanto, a luta de ideias – e não só de ideias - continua no mesmo terreno. Uma dessas polêmicas – aliás, a central – estava plenamente acesa em março de 1959, quando a aula inaugural que publicamos foi proferida. Em 1958, um grupo dentro do ISEB, tendo Hélio Jaguaribe por principal representante, formulara o que eles mesmos chamaram "nacionalismo de fins" (hoje se diria "nacionalismo de resultados"). Relendo o que Jaguaribe escreveu no livro "O nacionalismo na atualidade brasileira" é muito fácil perceber hoje que o "nacionalismo de fins" era um abandono do nacionalismo. Em suma, enunciava-se que o desenvolvimento não necessitava de uma nacionalização da produção. Para ser mais exato, postulava-se que a nacionalização era um entrave à "eficácia técnica". Em nome desta, os adeptos do "nacionalismo de fins" aceitavam – aliás, propunham – a privatização inclusive de setores estratégicos, como a petroquímica. Na situação da época, pior do que hoje, era claro o que significava essa privatização: o domínio de setores essenciais da economia nacional por monopólios externos, isto é, por multinacionais. Não nos é, também, difícil, nos dias atuais, ver a que conduzia esse "desenvolvimentismo sem nacionalismo", como o chamou Nelson Werneck Sodré, até porque Hélio Jaguaribe se tornou, depois da ditadura, um patrono entre os tucanos. O desastre do governo Fernando Henrique é o próprio obituário do "nacionalismo de fins" - levado às suas últimas consequências, o "nacionalismo de fins" tornou-se o fim do nacionalismo e a tentativa de destruir a própria nação. Porém, já em 1958-1959, a maioria do ISEB rechaçou o nacionalismo sem nacionalismo – e, na verdade, sem desenvolvimentismo - de Jaguaribe e outros. A escolha de Nelson Werneck Sodré para realizar a aula inaugural de 1959 reflete a vitória, dentro do ISEB, do setor nacionalista sobre o outro setor, que, depois de sair da instituição, no correr dos anos se tornaria cada vez mais abertamente entreguista. Já nos referimos, na apresentação de um escrito de Álvaro Vieira Pinto, ao ódio que a reação dedicou ao ISEB, à sua depredação em 1964 e às perseguições que sofreram seus membros logo que a ditadura se instalou. No entanto, era impossível apagar da História a contribuição daqueles pensadores, de origem e formação tão diversas, mas unidos na tentativa de fazer do Brasil uma grande nação. Portanto, passemos à aula de Nelson Werneck Sodré – agradecendo outra vez a este grande amigo que é o vereador Werner Rempel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, o envio do texto que hoje passamos a publicar. NELSON WERNECK SODRÉ Deixamos de lado, propositadamente, a fase em que o Brasil era colônia. É suficiente, para definir quem é o povo no Brasil, considerar algumas fases de sua existência autônoma: a da Independência, a da República, a da Revolução Brasileira. Convém repetir o que convencionamos aceitar como geral no conceito de povo, antes de situar os três momentos particulares referidos: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive. Definindo, em relação a cada uma das três fases, quais as tarefas do desenvolvimento progressista (nos dois primeiros) ou progressista e revolucionário (no último), e quais as classes, camadas ou grupos que se empenharam (ou se empenham) na solução objetiva daquelas tarefas, teremos definido quem era (e quem é) o povo em cada uma. INDEPENDÊNCIA Comecemos pela mais antiga, a da Independência. A partir da segunda metade do século XVIII, particularmente no seu final, o problema político fundamental, no Brasil, é o da Independência: realizar a Independência constitui a tarefa do desenvolvimento progressista, naquela fase. Cada fase coloca os problemas quando esboça ou alcança as condições para resolvê-los. O problema da Independência, assim, não apareceu acidentalmente: condições externas e condições internas fizeram com que surgisse, esboçaram e depois definiram objetivamente as condições para resolvê-lo. A essência dos laços que subordinavam o Brasil a Portugal, na referida fase, encontrava-se no regime de monopólio comercial, que assegurava à metrópole participação espoliativa na renda das trocas entre a colônia e o exterior, no sentido da exportação e no sentido da importação, além da espoliação realizada com a tributação interna desigualmente distribuída, onerando os menos afortunados, como é da boa prática colonial em todos os tempos. A quem interessava a Independência? Externamente, interessava a quem se propunha conquistar o mercado brasileiro: a burguesia europeia, em ascensão rápida com a Revolução Industrial, e particularmente a burguesia inglesa, classe dominante em seu país. A expansão burguesa era incompatível com os mercados fechados, com as áreas enclausuradas, com o monopólio comercial mantido pelas metrópoles em suas colônias. Quando as condições mundiais estivessem amadurecidas, e os fatos, — no caso, as guerras napoleônicas, — assinalassem o desencadeamento do processo, a Inglaterra, dominadora dos mares, isto é, da circulação mundial de mercadorias, participaria ativamente dos movimentos de autonomia na área ibérica do continente americano. A quem interessava a Independência, internamente? Antes de verificar este ponto, convém ter uma ideia da estrutura social brasileira na época. Uma estimativa de 1823 admite a existência de quatro milhões de habitantes no Brasil. Desses quatro milhões, um milhão e duzentos mil são escravos. Do ponto de vista social, a população se reparte em: a) senhores de terras e de escravos, — que constituem a classe dominante, — e são em vastas áreas, senhores de terras e de servos, quando nelas existem relações feudais; b) pessoas livres, não vivendo da exploração do trabalho alheio, agrupadas numa camada intermediária, entre os senhores, de um lado, e os escravos e os servos, de outro, camada que recebera grande impulso com a atividade mineradora, compreendendo pequenos proprietários rurais, comerciantes, intelectuais, funcionários, clérigos, militares; c) trabalhadores submetidos ao regime da servidão; d) escravos. Como os servos e escravos, tanto quanto os pequenos grupos de trabalhadores livres que se dispersam particularmente em áreas urbanas, não têm consciência política, embrutecidos que se acham pelo regime colonial, só participam da luta pela autonomia a classe dominante de senhores e a camada intermediária. Esta, incontestavelmente, participa desde muito cedo da referida luta e está presente em todos os movimentos precursores dela, movimentos que, como a Inconfidência Mineira, reúnem militares, padres e letrados. Pelas condições que caracterizam a vida colonial, entretanto, a luta pela autonomia só poderia ter possibilidades de vitória quando englobasse a classe dominante. E esta padece de vacilações constantes; só esposará o ideal da Independência em sua fase final, empolgando-o, para moldar o Estado segundo os seus interesses. Está profundamente interessada no que a Independência tem de fundamental: a derrocada do monopólio de comércio. Suas vacilações, entretanto, não se prendem apenas à tradição colonial — quando era procuradora da metrópole aqui; prendem-se ainda ao temor de que a pressão externa contra o tráfico negreiro e o trabalho escravo encontre na autonomia oportunidade para alcançar seus objetivos, e prendem-se também ao temor de que o abalo social que a autonomia pode proporcionar traga-lhe ameaças ao domínio, particularmente no que se refere à ascensão do grupo mercantil. A camada intermediária também está interessada na autonomia, pela qual elementos seus já combateram e se sacrificaram, e não apenas os do grupo mercantil, mas muitos outros, os intelectuais, padres e militares à frente. Servos e escravos não têm consciência política do processo, embora acompanhem-no com o seu apoio, na medida do possível. Se a tarefa do desenvolvimento progressista do Brasil, nessa fase histórica, é a realização da Independência, como vimos, e se o povo, em tal fase, é representado pelo conjunto de classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva daquela tarefa, o povo brasileiro abrange, então, todas as classes, camadas e grupos da sociedade brasileira. Claro está que cada uma com o seu coeficiente próprio de esforço e de interesse: a classe dominante com as suas vacilações e pronunciamento tardio; a camada intermediária com a sua vibração; as demais na medida da consciência política de seus elementos. Ocorre que essa composição política é transitória: conquistada a Independência, com a manutenção da estrutura colonial (e por isso mesmo não se trata de uma revolução), povo tornar-se-á outra coisa. Dele já não fará parte a classe dominante senhorial que tratará, na montagem do Estado, de afastar totalmente as demais classes, camadas e grupos do poder e da participação política, como veremos adiante. Situemos, agora, a fase em que o país muda de regime, com a derrocada da monarquia. Qual era a tarefa progressista a realizar no Brasil, em tal momento? Era, certamente, a de liquidar o Império, que representava o atraso. O Brasil apresentava-se agora muito diferente: sua população atinge a catorze milhões de habitantes; nela, os escravos, ao fim da penúltima década do século, são cerca de setecentos mil. A área escravista reduziu-se muito e mantém-se em estagnação econômica; mas a área da servidão ampliou-se muito, quanto ao espaço, embora compreenda principalmente zonas fora do mercado interno. Dos catorze milhões de habitantes, admite-se que apenas trezentos mil sejam proprietários, compreendidos parentes e aderentes: constituem a classe dominante. Nela, a velha homogeneidade desapareceu, entretanto, verificando-se uma cisão: há uma parte que permanece ancorada nas relações de trabalho da escravidão ou da servidão, e outra parte que aceita, prefere ou adota relações de trabalho assalariado. Desapareceu a homogeneidade porque, em determinadas áreas, as velhas relações foram, a pouco e pouco, substituídas por novas relações. O Brasil passou, na segunda metade do século XIX, por grandes alterações, realmente: as cidades se desenvolveram depressa, em algumas zonas a população urbana cresceu em poucos anos, o comércio se diversificou e se ampliou, apareceram pequenas indústrias de bens de consumo, o aparelho de Estado cresceu, surgindo o numeroso funcionalismo que desperta tantas controvérsias, mas a divisão do trabalho multiplicou também as suas formas, aparecendo atividades até então desconhecidas. As profissões ditas liberais passaram a atrair muita gente; desenvolveu-se o meio estudantil; atividades intelectuais começaram a ocupar espaço na sociedade urbana. Ora, tudo isso revelava o aumento da velha camada intermediária colocada entre senhores e escravos, ou entre senhores e servos, ou entre patrões e empregados. Aparece, agora, com fisionomia definida, tão definida quanto lhe permitem as próprias características, como classe média, ou pequena burguesia. É curioso notar que constitui uma peculiaridade brasileira, e não só brasileira, o fato de ser a pequena burguesia historicamente mais antiga do que a grande burguesia e do que o proletariado. Nos fins do século XIX, sua importância é destacada, quando a burguesia começa a definir-se, recrutada particularmente entre os latifundiários, e o proletariado dá os primeiros passos, recrutado principalmente no campesinato. As relações de trabalho no campo sofrem grandes alterações também. Enquanto algumas áreas permanecem aferradas à escravidão, que só abandonam com o ato abolicionista, e outras permanecem aferradas à servidão, as que se desenvolvem economicamente excluem o trabalho escravo, que as entrava, e começam a operar com o trabalho assalariado, em parte com os elementos introduzidos pela imigração sistematizada. É um processo paralelo e conjugado em que os polos antagônicos crescem interligados, diferenciando nos latifundiários uma camada que passa a constituir a burguesia, e diferenciando nos trabalhadores uma camada que passa a constituir o proletariado e o semi-proletariado. Esse processo se desenvolve também nas áreas urbanas, onde proletariado e semi-proletariado aumentam lentamente seus contingentes. Com a extinção do trabalho escravo, permanecerão as relações feudais e semifeudais no campo, conjugadas ao latifúndio. Nas áreas urbanas, a burguesia amplia muito depressa o seu campo, com as atividades comerciais, industriais e bancárias.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

João Goulart e o desenvolvimento independente da nação brasileira

Resta, em nossa lembrança da Campanha da Legalidade, responder à seguinte questão: quem era o homem que os golpistas, rasgando a Constituição de 1946, queriam impedir de tomar posse na Presidência da República, e que o povo se levantou para defender – a ele, à democracia e à Constituição? Em sua biografia de Jango – que o nosso infalível amigo Werner Rempel, vereador de Santa Maria, RS, nos regalou -, o historiador Jorge Ferreira faz uma breve recensão das deformações a que foi submetida a imagem de Jango. Realmente, há livros e textos acadêmicos que parecem escritos pelos golpistas de 1964. No entanto, Jango foi fiel, durante toda a sua vida, ao legado de Getúlio – e não apenas isso: como presidente do PTB, ele desenvolveu esse legado no sentido de identificar-se, ainda mais, com as aspirações nacionais à independência e ao desenvolvimento, tendo como centro as grandes massas do povo de nosso país. João Goulart, aliás, escrevia bem, como se pode ver por sua correspondência com Getúlio. Ou por sua resposta ao "The New York Times", que a 8 de março de 1953 publicou, em editorial, um ataque ao então ministro do Trabalho – o mais jovem ministro da História da República –, ataque prontamente papagueado pela reação golpista dentro do país. Jango respondeu: "O Ministério do Trabalho não foi criado para servir de instrumento deste ou daquele grupo, mas sim para atender a todos – patrões e empregados – sem qualquer distinção. Argumentam os pseudo-guardiães da democracia brasileira, contudo, que sou apenas o ‘ministro dos trabalhadores’, pois estaria inteiramente divorciado da indústria e do comércio. Na verdade, venho dedicando especial atenção ao proletariado, que não dispõe, como aquelas duas classes, de meios prontos e eficazes para a defesa dos seus direitos. O trabalhador, isoladamente ou através dos sindicatos, recorre somente ao seu Ministério. Mas isso, essa confiança do proletariado na Secretaria de Estado que dirijo, deveria constituir um motivo de tranquilidade e nunca de alarme. Pretender-se-ia, talvez, que o operariado brasileiro, já tão desencantado, não acreditasse nos poderes constituídos? Nesse caso, sim, estaríamos fazendo o jogo dos inimigos do regime, que desejam levar as massas ao desespero, a fim de implantar no país o clima de inquietação social propício à subversão da ordem. "No meu caso, além de ataques infames à minha honorabilidade, inventam as mais sórdidas mentiras e intrigas, como é exemplo essa pitoresca ‘república sindicalista’ que anda nas manchetes de alguns jornais. Acusam-me de peronista porque prestigio as organizações dos trabalhadores, que são os sindicatos. Ora, os sindicatos são, exatamente, os órgãos de representação e defesa dos interesses profissionais e econômicos das diferentes categorias, tanto de empregados como de empregadores. É dever do Ministério do Trabalho, portanto, estimular e prestigiar a organização sindical. Jamais poderia estar nos meus intuitos a transformação dessas entidades em instrumentos de ação política, não só porque isto seria desvirtuar-lhes as finalidades, como também a isso se opõem os preceitos da lei. "Nesta oportunidade, e a propósito de um editorial no The New York Times, devo dizer que o Ministério do Trabalho não pretende utilizar-se da sua influência para fazer inclinar o movimento operário neste ou naquele rumo, mas deseja tão-somente que se oriente no sentido dos legítimos interesses das classes trabalhadoras e rigorosamente dentro da Constituição, das leis e dos sagrados interesses nacionais. "Também não passa de torpe intriga o boato de que sou contra o capitalismo. À frente do Ministério do Trabalho estou pronto para aplaudir e estimular os capitalistas que, fazendo de sua força econômica um meio legítimo de produzir riquezas, dão sempre às suas iniciativas um sentido social, humano e patriótico. Sou contra, isso sim, o capitalismo parasitário, exorbitando no ganho e imediatista no lucro, contra o capitalismo cevado à base da especulação, que afinal só contribui para o desajustamento social. Não é admirável que, enquanto uns estão ameaçados e morrem de fome, outros ganham num ano aquilo que normalmente deveriam ganhar em 50 anos ou até séculos." Jango era um homem dessa estirpe. Talvez seu grande defeito fosse não perceber até que ponto eram deteriorados os seus inimigos – vale dizer, os inimigos do povo brasileiro. Mas esse é o típico defeito de pessoas que julgam os outros por seu próprio bom caráter. Infelizmente, não é possível, na vida, usar essa medida para avaliar a realidade. O mal, afinal de contas, existe. Nesta página, publicamos hoje o discurso do presidente João Goulart, em fevereiro de 1964, anunciando, em cadeia de rádio e TV, que seu governo conseguira equacionar o problema da dívida externa numa negociação soberana, em que os bancos externos, até por falta de alternativa, aceitaram a proposta brasileira. A perspectiva que ele traça a partir daí é claramente enunciada com a questão da expansão do mercado interno. Para além de fatores políticos conjunturais, o país havia resolvido um dos estrangulamentos que o impediam de desenvolver-se. Não por acaso, o imperialismo e seus sequazes internos apressaram-se a golpear o regime constitucional no fim do mês seguinte. C.L. JOÃO GOULART Posso, nesta oportunidade, afirmar à Nação que as manifestações expressas de concordância e apoio já recebidas dos países que são os nossos maiores credores, me autorizam a anunciar que, nos próximos dias, estarão definitivamente ajustadas as bases de reescalonamento da dívida comercial brasileira, nos termos propostos pelo meu Governo. "Quando assumi a presidência da República, defrontava-se o país com pesados encargos financeiros no exterior. "A extremada preocupação de governos anteriores em obter recursos externos levou à acumulação de compromissos sem esquemas de pagamentos viáveis, transladando a responsabilidade de sua liquidação para os governos que se sucedessem. Com isso criou-se situação em que a não-implementação das obrigações e o apelo a sucessivas prorrogações de nossos compromissos vieram abalar nosso crédito no exterior. À medida que se revelava nossa incapacidade em solver a dívida externa em curto prazo, era o país compelido a condições reconhecidamente inaplicáveis em face da própria política econômico-financeira interna. "Encontrei, com vencimento previsto para o biênio 1964/65, compromissos no montante de um bilhão e trezentos milhões de dólares, equivalentes à nossa receita de exportação no período de um ano. Tornou-se patente que o restabelecimento da normalidade dos pagamentos externos do Brasil e a crescente estabilidade da economia brasileira ficariam grandemente facilitados, desde que o nosso compromisso financeiro não excedesse a 150 milhões de dólares por ano, ou a 300 milhões em dois anos. "Empenhei-me em restabelecer, em termos altivos, o diálogo com os países credores, convencendo-os da necessidade de um reescalonamento em bases reais e a longo prazo para que o Brasil possa, sem sacrifício e sem quebra de sua autoridade e soberania, cumprir rigorosamente seus compromissos e atender aos imperativos do desenvolvimento e da emancipação nacional. Estamos decididos a evitar que se repita uma concentração de compromissos financeiros acima de níveis reconhecidamente razoáveis. "Encontramos agora melhor compreensão para a situação brasileira. Com a receptividade de nossas gestões, restauraremos o crédito do Brasil no exterior. Ao contrário do que aconteceu no passado, ajustaremos agora os compromissos externos à nossa efetiva capacidade de pagamento. O Governo que me suceder não encontrará o mesmo impasse que enfrentei e que só agora é superado. "Levamos a efeito uma negociação da maior relevância para o país com total respeito à sua soberania. Devemos ressaltar que a recomposição de nossos esquemas de pagamentos externos se faz sem qualquer intromissão em nossa vida interna, sem qualquer ingerência na programação da nossa política econômico-financeira. "Equacionado o problema de nossas relações financeiras internacionais, impunham-se, paralelamente, diversas medidas tendentes a sanear as finanças internas e a resguardar o processo de desenvolvimento do país. "A primeira dessas medidas foi hoje adotada pelo Conselho da Superintendência da Moeda e do Crédito e diz respeito a uma reforma do sistema cambial, com vistas ao equilíbrio do Balanço de Pagamentos, mediante forte estímulo às exportações. "A reforma elimina o inconveniente de deterioração progressiva da remuneração cambial dos produtos exportados em relação aos custos internos crescentes. Ao mesmo tempo, atende à preocupação de evitar impacto inflacionário na economia e agravamento do custo de vida ao manter uma taxa especial para determinação da gama de produtos importados. Essa taxa será garantida ainda à Petrobras para aquisição de equipamentos indispensáveis ao seu programa de investimentos, e, bem assim, serão tomadas medidas complementares para assegurar os recursos essenciais ao programa de execução do monopólio estatal do petróleo e aos programas prioritários do Governo. "Evita-se, ao mesmo tempo, a possibilidade dos artifícios que vinham sendo utilizados, burlando o fisco e as normas vigentes e estabelecendo, de fato, condições desfavoráveis para as empresas estatais que se dedicam às exportações. Com a reforma, a Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo, poderá atender satisfatoriamente a seus compromissos firmados, que representam vendas da ordem de três bilhões de dólares, dentro dos próximos 15 anos. "Ao eliminar-se o artificialismo elimina-se, também, o grande obstáculo que vinha bloqueando nosso comércio com os países da faixa bilateral, especialmente os promissores mercados do Leste europeu, porquanto a rigidez da taxa cambial obrigava a sobrepassos tanto na exportação quanto na importação no comércio com esses países. Assegura-se ainda, com a reforma, o monopólio para o Banco do Brasil das divisas produzidas pelo café e açúcar, produtos que vêm obtendo boa cotação no mercado internacional, o que representará uma disponibilidade de mais de um bilhão de dólares, para que o Governo possa atender a seus programas prioritários. "Estas medidas, da maior importância na vida econômica e financeira do país, através das quais passam ao comando direto do Banco do Brasil as cambiais oriundas dos produtos básicos da nossa exportação, representam uma etapa no sentido do controle cambial progressivo, condição necessária à completa liberação das forças produtoras nacionais e ao pleno desenvolvimento econômico e social do Brasil. "A contínua deterioração das condições do comércio internacional, suportada pelos países em desenvolvimento, exportadores de produtos primários, veio despertar a consciência universal de que não somente correm riscos seus programas de industrialização em busca de melhores níveis de vida, mas também de que se alarga progressivamente a distância que separa as regiões subdesenvolvidas do mundo. "O grupo de países altamente industrializados, com uma renda média "per capita" da ordem de 1.500 dólares e podendo dedicar de 15 a 25% dessa renda a poupança e investimentos para a formação do capital fixo, está capacitado a ostentar níveis de crescimento entre 5 a 9% ao ano, o que lhe permitiria alcançar, ao fim de uma geração, uma renda "per capita" da ordem de 3.630 dólares. Enquanto isso, o grupo de países em desenvolvimento, partindo de uma renda média "per capita" da ordem de 120 dólares e confrontando com uma taxa de crescimento demográfico superior à dos países industrializados, só tem podido dedicar à formação de capital fixo a percentagem de 5 a 12% dessa renda e não deverá alcançar, ao fim de uma geração, um nível de renda média "per capita" superior a 251 dólares. "Nessas condições, se já é insuportável a diferença de vida atualmente existente entre países altamente industrializados e os subdesenvolvidos, ainda maior será a distância entre os dois mundos com o correr dos anos se não for retificada em seus fundamentos a ordem econômica internacional. "Dentro de vinte e cinco anos a população mundial duplicará, atingindo seis bilhões de pessoas, cinco dos quais viverão nas atuais regiões subdesenvolvidas. Ao se manterem as tendências presentes, aquela disparidade gritante não poderá deixar de provocar situação incompatível até com os princípios de dignidade humana e solidariedade cristã. "A participação dos países subdesenvolvidos no comércio internacional diminui progressivamente em relação à dos industrializados. Enquanto as exportações destes últimos passavam de 37 bilhões de dólares em 1950 para 85 bilhões de dólares em 1960, as exportações dos primeiros cresceram apenas de 19 bilhões para 27 bilhões de dólares no período em causa. "No conjunto das exportações mundiais, a participação de uma região em desenvolvimento como a América Latina baixava a 6,5% do total de 1962, contrastando com uma parcela de 11,4% em 1948 e ainda inferior à participação de 1938, da ordem de 7,3%. "O Brasil confia que, na próxima Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, a realizar-se em Genebra a partir de 23 de março, surgirá uma solução de grandeza, na medida dos graves problemas que mantêm o mundo em clima de intranquilidade e apreensão. Considera o Governo brasileiro indispensável que nela se consagrem definitivamente certos princípios cuja aceitação se faz inadiável. Assim, o princípio de que não se deve mais exigir estrita reciprocidade de concessão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, liberando-se estes dos encargos da retribuição de vantagens negociadas; o de que não é justo aplicar normas iguais para países em diferente nível de desenvolvimento econômico; o de que não é lícito que os países desenvolvidos se sirvam de cláusulas de salvaguarda ou fórmulas novas para dificultar a livre competição de artigos de países subdesenvolvidos em seus mercados; o de que a solução do problema dos países subdesenvolvidos deve ter prioridade sobre a eliminação dos obstáculos entre países desenvolvidos, pois, do contrário, se estariam aumentando as dificuldades daqueles; o da livre entrada dos produtos tropicais nos mercados dos países industrializados. "O Brasil dará o melhor dos seus esforços num labor de compreensão e entendimento, para que se alcancem plenamente os objetivos colimados. "Ao pugnar por um esforço coletivo pela reestruturação do comércio mundial, o Brasil tem consciência de que ocupa uma posição singular entre os países que encetaram a marcha para o desenvolvimento. "Conseguimos reunir dentro de nossas fronteiras os fatores necessários para a expansão econômica. Sendo assim, nosso máximo empenho deverá concentrar-se na plena mobilização dos nossos próprios recursos. "Enfrentamos hoje problemas resultantes da capacidade ociosa de setores de nossa produção que só poderão ser resolvidos com a expansão do mercado interno. Este constitui um dos objetivos fundamentais das reformas de base, pois somente através delas poderemos transformar a grande maioria da população brasileira, que permanece marginalizada, em elementos ativos do processo econômico. "Preparando o terreno para essas reformas, cabe ao Estado, após adequada ordenação de seus compromissos financeiros no exterior e do saneamento de suas finanças, promover o pleno emprego dos fatores internos disponíveis. "Nesse sentido, e em consonância com as diretrizes da reforma cambial, o Governo divulga, dentro de três dias, programa elaborado para enfrentar a aceleração do processo inflacionário. Simultaneamente, e ante o imperativo de se resguardar a capacidade aquisitiva das classes médias e trabalhadoras, o Governo, ao elevar os índices do salário mínimo, fará executar medidas concretas destinadas à defesa direta da economia popular. "Desde já o Governo adverte que não permitirá, sob nenhum pretexto, manobras especulativas que venham a agravar ainda mais as dificuldades de vida do nosso povo. Usaremos de todos os meios legais para combater quaisquer tentativas de exploração ilícita, partam de onde partirem, que visem a anular antecipadamente os benefícios das novas e inadiáveis tabelas de salário que serão decretadas. "Evidencia-se, assim, estar o Governo realizando enormes esforços, dentro da órbita de suas atribuições constitucionais, quer no âmbito externo quer no interno, no sentido de criar condições indispensáveis para acelerar o progresso do país e assegurar a participação crescente do povo brasileiro no desenvolvimento nacional. "Insisto em ressaltar que o êxito de todos esses esforços administrativos somente será atingido com a realização das reformas de base através das quais serão extintas, dentro do território nacional, as profundas e intoleráveis desigualdades sociais. "Brasileiros, o ano de 1964 não será apenas marcado por um ingente esforço do Governo em prol da recuperação econômico-financeira do país: 1964 será também o ano da decisão definitiva das reformas de base, para que, por meio delas, possamos assegurar a conquista pacífica dos grandes objetivos nacionais de emancipação econômica e justiça social."

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A pilhagem e falência dos bancos da “zona do euro”

O importante, no artigo de Mike Whitney que hoje publicamos, é o retrato da situação dos bancos europeus. Essa situação, como mostra o autor, é tão ruim que a recém-eleita diretora geral do FMI, uma advogada francesa de bancos norte-americanos, propõe acabar com a soberania dos países da União Europeia e instalar uma ditadura “supranacional”, isto é, uma ditadura dos bancos que impeça os países de lidar, mesmo que minimamente, com suas próprias finanças. Nesse sentido, o artigo de Whitney, publicado em Counterpunch no último dia 5, e intitulado originalmente “The Coming of EuroTARP”, é bastante esclarecedor.

No entanto, dificilmente o problema atual na Europa poderia ser descrito como uma “crise das dívidas soberanas” (a dívida soberana é composta pelos títulos públicos + títulos avalizados pelos governos), exceto em seu aspecto mais superficial. Não foi por fazer “más apostas” em títulos da Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália que os bancos europeus estão em situação falimentar, mas por ter, durante anos a fio, secundado os bancos norte-americanos no cassino dos “derivativos”. O atual problema com papéis de alguns países é uma sequela – ainda que nada pequena - deste primeiro e verdadeiro problema. Isso, inclusive, explica a ansiedade de Madame Lagarde, e sua desinibição americanófila ao propor uma ditadura por cima dos países da UE, tantos anos depois do fim da ocupação nazista. Não são apenas os bancos europeus que serão, ou estão sendo, afetados.

Os bancos europeus, segundo a Bloomberg News, desde o início da crise, já tiveram três bailouts, isto é, injeções de dinheiro público, sobretudo sob a forma de compra de títulos pelo Banco Central Europeu. No entanto, nada resolveu o problema – existem, circulando, mais de US$ 600 trilhões em “derivativos”. Esses papéis que representam outros papéis, são jogados em pacotes, diariamente, via “mercado futuro” e outros mecanismos, pelos bancos norte-americanos. Um dos “patos” favoritos desses últimos, sempre foram os bancos europeus e japoneses, que procuravam fazer em sua área o que os americanos faziam na sua. No entanto, trata-se de sócios menores do capital financeiro.

Certamente, os sucessivos bailouts acabaram por criar um problema imenso para os países – não se doa tanto dinheiro público, sobretudo quando não se fabrica a principal moeda, o dólar, sem tremendas consequências. Inclusive uma parte grande dos “títulos soberanos” são títulos de bancos que foram avalizados por governos.

A confusão na Alemanha, em torno de uma nova injeção de dinheiro público nos bancos, e a crise do euro são consequências. E, certamente, os países que dominam a UE – basicamente a Alemanha e a França – querem que os países menores, ou menos poderosos financeiramente, paguem a irresponsabilidade dos seus bancos.

No entanto, isso tem um limite. E parece que está próxima, por exaustão, a suspensão dos pagamentos da Grécia, apesar de todas as concessões – mais exatamente, de toda a submissão – de seu governo.

C.L.


MIKE WHITNEY

O Bundestag terá uma oportunidade de impedir o plano de Angela Merkel de fornecer centenas de bilhões aos afundados bancos da União Europeia que fizeram más apostas em títulos soberanos. Se o parlamento alemão não derrotar Merkel no dia 23 de Setembro, então – sob os “poderes expandidos” do European Financial Security Facility (EFSF - fundo da UE supostamente para ajuda aos países em crise) – os bancos insolventes terão seu bailout e os custos serão transferidos para os contribuintes da zona do euro.

Apesar da sua fanfarrice populista (“nós não seremos intimidados pelos mercados”), Merkel é uma devota eurófila, comprometida com uma união fiscal dominada por banqueiros e possuidores de títulos, uma Bankditadura. No momento, está fazendo tudo o que pode para apressar o processo, antes que vigilantes hostis dos títulos façam desabar o sistema bancário da UE. Isto foi publicado pela revista Der Spiegel:

“Numa situação de pânico no mercado, o EFSF tem de atuar rapidamente”, disse Holger Schmieding, economista chefe do Berenberg Bank, ao Financial Times Deutschland. “Pode acontecer da noite para o dia ou num fim de semana”. Guntram Wolff, do think tank Bruegal, com sede em Bruxelas, concorda. A aprovação parlamentar “não deve levar demasiado tempo”. (“Parliamentary Influence over Euro Bailouts Naive”, Der Spiegel, 01/09/2011).

Não soa familiar? O secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, utilizou a mesma estratégia após o colapso do Lehman Brothers, em 2008, com o objetivo de chantagear o Congresso para extrair US$ 800 bilhões para o bailout dos bancos (TARP). Mais uma vez, o medo de um colapso financeiro está sendo invocado para extorquir dinheiro de modo sorrateiro dos que trabalham. Eis um trecho de outro artigo da Der Spiegel:

“Os bancos estão realmente numa situação ruim. A maior parte deles ainda tem um bocado de títulos soberanos espanhóis, italianos, portugueses e irlandeses nas suas folhas de balanço e não está totalmente claro se acabarão sendo plenamente reembolsados. Isso, por sua vez, alimenta a desconfiança entre as próprias instituições financeiras e muitas cessaram de emprestar dinheiro umas às outras. Elas estão sendo mantidas vivas apenas porque o Banco Central Europeu (BCE) está disponibilizando um montante ilimitado de dinheiro para elas, aceitando como garantia títulos que muitos investidores já não consideram seguros.

“Uma melhor capitalização para os bancos poderia minorar essa desconfiança, porque uma situação mais líquida significa que os bancos poderiam absorver melhor as perdas dos seus negócios com a dívida soberana. Aquelas instituições que não são suficientemente fortes para levantarem por si mesmas dinheiro no mercado, teriam de ser ajudadas com dinheiro público. Dificilmente haverá uma instituição mais adequada para essa tarefa do que o EFSF”. (“The Euro Rescue Fund Needs More Powers”, Der Spiegel, 31/08/2011).

Esse trecho do artigo está errado em muitos aspectos - é difícil saber por onde começar. O EFSF foi estabelecido para impedir o default de nações, não de bancos. A ideia de que os especuladores com títulos podem ser comparados a governos eleitos é ridícula. Os bancos estão em dificuldades porque tomaram decisões más e agora devem enfrentar penosos cortes nas suas aplicações. Acionistas serão eliminados e as dívidas terão de ser reestruturadas. Não é o fim do mundo.

O que Merkel & companhia querem fazer é virar o sistema de pernas para o ar e transformar o EFSF numa SPE (Sociedade de Propósito Específico) permanente, fora da folha de balanço, autorizada a distribuir dinheiro público para bancos falidos. E tudo para impedir seus amigos banqueiros de perder dinheiro. Assim, por trás de toda a conversa fiada sobre a “unidade fiscal” e “consolidação das finanças do estado”, espreita a feia verdade de que a zona do euro é um sistema de duas camadas, com uma arquitetura financeira idêntica à da Enron. Não há nada de democrático num sistema que premia elites perdulárias, enquanto joga os prejuízos para os trabalhadores pagarem. Isso é, exatamente, a velha cleptocracia.

A chanceler alemã está, em sua luta, junto com seus colegas no BCE e no FMI. De fato, a recém nomeada chefe do FMI, Christine Lagarde, lidera o movimento pelo Euro-TARP, o que pode explicar porque o seu processo de nomeação foi acelerado, depois de Dominique Strauss-Kahn ter renunciado enquanto aguardava investigação sobre acusações de estupro em Nova York.

Seja como for, madame Lagarde já mostrou que está mais do que desejosa de fazer qualquer trabalho duro que seja necessário para alcançar seus objetivos e para acomodar seus ricos eleitores. Eis como o The Guardian resumiu o curriculum de Lagarde: “Christine Lagarde apoia a proteção dos grandes bancos ... ela é a mais pró bailout bancário de todos”. (“IMF under growing pressure to appoint non-European head”, The Guardian, 19/05/2011)

É verdade. Assim, Lagarde lançou o seu peso em favor dos bailouts bancários, também conhecidos como recapitalização dos bancos. Ela também advoga fervorosamente “institucionalizar um governo econômico europeu”, o que significa que pretende estabelecer um regime controlado por banqueiros e possuidores de títulos, a Banktopia. Ao mesmo tempo, ela insiste em que esse novo corpo governante tenha poder para intervir no processo orçamentário dos Estados soberanos da zona do euro, com o objetivo de “manter nossos esforços para expandir o âmbito da vigilância econômica, de modo a incluir déficits governamentais e públicos, bem como a dívida do setor privado, se necessário pela imposição de ‘penalidades políticas’”.

Certo. ssim, esse novo governo trans-UE será capaz de exigir obediência a Estados errantes, que aprovam orçamentos que servem aos interesses do seu povo, ao invés dos interesses do grande capital. Enquanto isso, o Superestado UE de Lagarde continuará a impor as mesmas políticas que tem aplicado desde o princípio da crise financeira: privatização em grande escala de ativos e serviços do Estado e programas de aperto no cinto que mantenham a economia num estado de depressão permanente. Será esse o destino da zona do euro?

Tenhamos em mente que os bancos já estão obtendo bailout através do programa de compras de títulos do BCE, que mantém os preços dos títulos artificialmente altos e evita um default soberano. O fato de Lagarde fazer pressão agressivamente por injeções diretas de capital sugere que a condição dos bancos é muito pior do que qualquer um imaginou até aqui, razão pela qual – de acordo com o Wall Street Journal – “ela sugeriu que o fundo de salvamento soberano já existente na UE (EFSF) podia ser utilizado para essa finalidade”. Isto é um exemplo clássico de bait and switch [N.HP: fraude em que um comerciante anuncia um produto com preço baixo e, quando os consumidores vão comprá-lo, o produto não está disponível, e sim outro mais caro].

Os parlamentares alemães têm a chance de acabar com esse absurdo, de uma vez por todas. Ao impedir Merkel, o Bundestag pode assegurar que o povo trabalhador da zona do euro não será roubado em centenas de bilhões de dólares ou submetido ao domínio autocrático de especuladores parasitas. Deixem os bancos pagar as suas próprias contas.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

José Bonifácio, a Independência e sua luta contra a escravatura

No segundo tomo da sua História do Brasil, publicada em 1843, o general Abreu e Lima – ex-oficial de Bolívar que tivera sua patente militar reconhecida pelo Império e filho do padre Roma, líder da Revolução Pernambucana, fuzilado pelas tropas portuguesas em 1817 – descreve assim os motivos políticos imediatos da Independência:

“Por uma lei datada de 24 de abril de 1821, as Cortes de Lisboa declararam independentes do Rio de Janeiro todos os Governos Provinciais, e sujeitos tão somente aos Tribunais de Portugal. Por esta lei desorganizadora formou-se uma multidão de pequenos governos em todo o Brasil, que se negavam corresponder com o Príncipe Regente (…). Achou-se por esta forma D. Pedro reduzido a simples Governador do Rio de Janeiro, e de uma ou duas províncias do Sul, e cercado das maiores dificuldades pela diminuição das rendas públicas. Estas circunstâncias adversas, juntas ao espírito sedicioso da tropa portuguesa, fizeram com que D. Pedro escrevesse a seu Augusto Pai, no dia 21 de Setembro, nos termos mais expressivos, pintando-lhe o verdadeiro estado do país, e sua falsa posição” (Abreu e Lima, “Compêndio da História do Brasil”, Laemmert, Rio, 1843, Tomo II, cap. 7 – edição fac-similar da Biblioteca Digital do Senado; atualizamos a ortografia, mas não a pontuação, e mantivemos as maiúsculas).

Abreu e Lima reproduz a carta de D. Pedro a D. João VI, onde o príncipe, depois de descrever a catastrófica situação financeira do Brasil, pede demissão: “Peço a V. M. por tudo quanto há de mais sagrado, me queira dispensar deste Emprego, que seguramente mo matará pelos contínuos, e horrorosos painéis que tenho, uns já à vista, e outros muito piores para o futuro, os quais eu tenho sempre diante dos olhos”.

No entanto, “as Cortes de Lisboa continuavam em seu plano de sujeitar o Brasil à antiga dominação colonial”:

“Um Decreto de 29 de Setembro extinguiu os Tribunais da Chancelaria e do Tesouro, a Junta do Comércio, e várias outras repartições centrais, que se haviam estabelecido no Rio de Janeiro em tempo de D. João VI; e outro Decreto da mesma data ordenou o regresso do Príncipe com a injunção de previamente viajar incógnito pela Inglaterra, França e Espanha, para completar a sua educação política. A estes Decretos seguiu-se outro do 1º de Outubro, nomeando para cada Província um Governador das Armas, delegado do poder executivo de Lisboa; e a 18 do mesmo mês se decidiu, que embarcassem mais tropas para Pernambuco e Rio de Janeiro. É impossível conceber-se uma série de providências melhor adaptadas para frustrar todos os fins a que se destinavam. Então viram os brasileiros, que já não era possível esperar cousa alguma favorável de parte das Cortes de Lisboa, e que a sua sorte dependia deles mesmos; decidiram-se portanto pela independência”.

Observa Abreu e Lima que a ideia era de difícil execução porque “todas as cidades marítimas do Brasil estavam ocupadas pelas tropas portuguesas, as comunicações eram incertas e penosas”. No entanto, “a desaprovação da partida do Príncipe tornava-se mais e mais geral: os portugueses julgando que a sua ausência traria prontamente a independência, e os brasileiros porque supunham que só a sua cooperação podia evitar uma contenda sanguinolenta e duvidosa”.

O general e historiador pernambucano, mais próximo aos acontecimentos do que nós, relata como a ruptura veio de fora do Rio de Janeiro:

“Na Cidade de S. Paulo, onde os patriotas eram em maior número do que na capital, as cousas levavam caminho mais pronto e seguro. José Bonifácio de Andrada e Silva, vice-presidente da Junta Provincial, informado da próxima retirada do Príncipe convocou às onze horas da noite (24 de dezembro) os seus colegas, e conseguiu que assinassem uma representação, em que francamente se fazia ver a Sua Alteza Real, que a sua partida seria o sinal da separação do Brasil”.

O documento também é reproduzido no livro. José Bonifácio conseguira unir o partido português e o partido brasileiro numa mesma solicitação: a representação, assinada na noite do Natal, apelava a D. Pedro para que ficasse no Brasil em nome da continuidade da união com Portugal, contrariando seu próprio pedido – apenas um mês antes do decreto das Cortes - ao rei.

Os fatos subsequentes, com o “fico” de D. Pedro a 9 de janeiro de 1822 e a sublevação do general Avilez, no Rio, são mais conhecidos. Porém, o mais decisivo aconteceu dias depois:

“Tendo chegado de S. Paulo o Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva como Orador da Deputação, que vinha pedir a S. A. R. demorasse a sua partida por motivos de recíproca conveniência para Portugal e para o Brasil, houve por bem o mesmo Príncipe nomeá-lo, com data de 16 de janeiro de 1822, Ministro dos Negócios do Reino e dos Estrangeiros. O primeiro cuidado do novo Ministro foi restabelecer a centralização das Províncias, que as Cortes haviam aniquilado, e que se tornava de primeira necessidade contra as agressões externas. Com estas vistas promulgou-se o Decreto de 16 de fevereiro, ordenando a convocação de um Conselho dos Procuradores das Províncias, cujos membros deveriam ser escolhidos na razão de um Conselheiro por cada uma, que tivesse dado quatro Deputados às Cortes. D. Pedro se declarou Presidente deste Conselho”.

Entretanto, “quatro províncias somente se reuniram nesta aliança: Rio de Janeiro, S. Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul” e duas outras estavam já em guerra com os portugueses: Pernambuco e Bahia.

Que José Bonifácio tenha levado a cabo a Revolução da Independência a partir destas condições políticas, diz quase tudo sobre a sua grandeza. Como ele mesmo dirá mais tarde, na “Ode aos Baianos”, escrita num momento difícil, exilado após seu conflito com D. Pedro I: “Amei a liberdade, e a independência/ Da doce cara pátria, a quem o Luso/ Oprimia sem dó, com riso e mofa —/ Eis o meu crime todo.”

Nesta página, publicamos hoje um trecho do ensaio que lhe dedicou Octávio Tarqüínio de Souza em “O Pensamento Vivo de José Bonifácio” (1945).

Nos anos 30, 40, 50 e 60 do século passado, Octávio Tarqüínio, talvez devido à sua bastante popular tradução de 1928 dos “Rubaiyat”, de Omar Khayyam, era um escritor e historiador bastante conhecido – assim como sua esposa, Lúcia Miguel Pereira, autora de excelentes biografias de Machado de Assis e Gonçalves Dias. Hoje, nem tanto - o que reflete, sobretudo, a tremenda estreiteza e monopolização do movimento editorial em nosso país. Não se trata de uma discriminação política (Octávio, pessoalmente, não era um campeão das causas progressistas), mas uma discriminação ao que é nacional. No entanto, sua “História dos Fundadores do Império do Brasil”, em 10 volumes, permanece como fonte imprescindível para quem se interesse por esse período da vida de nosso país.

C.L.


OCTÁVIO TARQÜÍNIO DE SOUZA


Homem de ciência, mineralogista, químico, botânico; homem público, estadista, administrador; parlamentar; homem de letras, poeta, pensador, crítico — José Bonifácio não escreveu uma obra coerente, dessas de que é possível, sem maior esforço, extrair e destacar o essencial. O que deixou – sem falar, é claro, nos seus trabalhos especializados de cientista, nas suas pesquisas e descobertas mineralógicas – são antes esboços, anotações, projetos. E a explicação está em que, além de certa feição pessoal de temperamento inquieto, as circunstâncias que lhe cercaram a vida não favoreceram a realização da obra que pretendeu escrever. Mas nesses elementos esparsos, disjecti membra, logo se adivinha o pensamento mais alto e mais lúcido dentre os brasileiros do seu tempo. [NOTA DO HP: o poeta latino Horácio chamou “disjecti membra poetae” (“membros dispersos do poeta”) à dificuldade de transformar trechos numa obra coerente].

Tendo nascido em 1763 e morrido em 1838, José Bonifácio dividiu quase igualmente os anos de sua vida entre os séculos XVIII e XIX, em plena mocidade no primeiro para receber-lhe mais vivamente as influências, já com o espírito amadurecido no segundo para tomar uma posição antes de crítica e de julgamento.

As leituras dos dias de moço – Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Descartes, Locke, Leibnitz e muitos outros, citados desordenadamente em escritos seus dessa época – feitas com o deslumbramento das grandes descobertas, deixaram-lhe vestígios perduráveis; o amor da natureza, a crença na racionalidade de suas leis, a noção dos direitos naturais derivados de necessidades próprias da condição humana; o que não o impediu de adotar uma atitude cética no tocante à bondade natural do homem, e de repetir o dualismo rousseauniano – natureza e cultura.

As investigações de ordem experimental e científica a que se entregou durante largo período apuraram-lhe o senso objetivo. O pensamento de Fedro – Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria [se não for útil o que fizermos, a glória será vã], que usou como epígrafe de algumas memórias apresentadas à Academia das Ciências de Lisboa, foi o verdadeiro lema de sua vida, denunciando-lhe a conformação do espírito, levado menos pela curiosidade especulativa do que pela importância prática de problemas e fatos. Conformação de espírito que a educação apurou, pois, nele, o mineralogista eminente, capaz de caracterizar várias espécies minerais, novas, confundia-se com o trabalhador, com o operário: no estágio que fez em Freiberg “assentou praça de mineiro”.

De volta de uma longa excursão científica de dez anos por quase toda a Europa, cumulado de funções públicas em Portugal, tentou muito mais a José Bonifácio o desempenho de cargos, como o de Intendente Geral das Minas e Metais, em que poderia por a funcionar jazidas e empreender a exploração de novas, do que o de professor de Metalurgia da Universidade de Coimbra, confinado em estudos teóricos.

Sentia-se homem de ação, queria dedicar-se à atividade prática. Nessa tendência tão marcada em sua natureza, o estudioso da vida e das obras de José Bonifácio encontrará muitas vezes o segredo de certas atitudes políticas. Apreciando-o sob essa face, um dos nossos mais honestos historiadores de ideias, que debaixo de outros aspectos lhe fez muita justiça, concedendo-lhe até o tratamento de grande homem, desfigurou-o enormemente neste injusto conceito: “na política impressionou-se também mais pelo lado meramente exterior dos acontecimentos”.

A demonstração do contrário, isto é, de que José Bonifácio considerou menos o aspecto externo dos fatos do que a sua significação íntima e profunda, ressalta do exame mais demorado da participação que teve nos sucessos políticos entre 1821 e 1833 e da leitura de trabalhos – a representação à Assembléia Constituinte sobre a escravatura, os apontamentos para a civilização dos índios, o manifesto de 6 de agosto de 1822 às nações amigas.

Bastante diferente de muitos dos seus contemporâneos, não se ateve a exterioridades, não se subordinou a figurinos políticos, não se deixou enlear por palavras. Daí o seu esforço para incutir em D. Pedro a noção do papel que devia representar, as suas ideias em favor de um governo que tivesse autoridade e não se reduzisse a simples sombra de poder, o seu monarquismo ortopédico para consolidar a unidade do Brasil, os conflitos e choques com os patriotas do Rio – Gonçalves Ledo, José Clemente, Januário – estes, sim, muito mais impressionados com o lado exterior dos sucessos, com os pregões do liberalismo europeu, com a moda, a forma, a estética das coisas políticas.

Tão pouco adstrito, em política, ao lado exterior dos acontecimentos, foi José Bonifácio que, tendo plantado, como asseverou, a monarquia no Brasil, não se moveu senão por considerações práticas, de oportunidade, imediatistas, e, diante do monarca, em meio de uma corte improvisada, continuou apenas um cidadão, uma figura tão humana na simplicidade de sua vida – recusando, quase como quem repele uma alcunha deprimente, o título de marquês, e rejeitando a grã-cruz da ordem do Cruzeiro como quem teme o ridículo de possuí-la, quanto mais de ostentá-la.

A prova de que José Bonifácio não se contentava em política com o lado meramente exterior dos sucessos está na posição singular em que se colocou comparadamente com a de seus contemporâneos. Chegando ao Brasil depois de trinta e seis anos de ausência, veio encontrar a antiga colônia elevada à categoria de reino, sede da monarquia portuguesa e possuindo já todo o aparelhamento dos serviços públicos indispensáveis – secretarias, tribunais, repartições, estabelecimentos de ensino. Era a fachada de um novo Estado que se construíra, uma vida nova que se desenvolvera ao impulso das medidas de ordem econômica tomadas por D. João – a abertura dos portos brasileiros ao comércio universal, a revogação do alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibira indústria no Brasil, etc. Não tardou, com as repercussões da revolução do Porto de 1820, a erupção entre nós de um movimento emancipador e separatista, que culminou na proclamação de 7 de setembro de 1822. As ideias liberais em voga animaram esse movimento. A liberdade, todas as liberdades foram decantadas. D. Pedro declarava aos mineiros: “vós amais a liberdade, eu adoro-a”. Os mais ardentes patriotas clamavam por uma Constituição que haveria de conter, sem faltar um só, todos os direitos do homem, numa edição, se possível, correta e aumentada. Para os revolucionários mais sinceros isso era o suficiente. Tivesse o Brasil uma Constituição liberal, e tudo estaria resolvido. José Bonifácio, incontestavelmente homem de seu tempo, detestava o despotismo, queria também uma Constituição para o seu país. Mas não achava que só isso fosse necessário, nem acreditava que assim se resolvessem os problemas brasileiros. Estava de acordo com que se estabelecesse um governo democrático, garantias constitucionais, sistema representativo. Não lhe bastava, entretanto, a organização política copiada do melhor modelo inglês, francês ou norte-americano: via a necessidade de uma reforma de estrutura, de um novo regime de propriedade de trabalho, de profundas alterações de natureza social e econômica. E enquanto todos ou quase todos os dirigentes do momento, em verdade impressionados de preferência pelo lado meramente exterior dos acontecimentos, julgavam possível, viável, natural a criação de um Império constitucional, sem adotar nenhuma medida quanto à escravidão, José Bonifácio para logo se convenceu que essa era a grande questão a enfrentar.

Ideias que esposara ainda quando estudante em Coimbra e que à contemplação do espetáculo da sociedade brasileira, por ocasião da volta à pátria, mais se tinham fortalecido. Ideias que eram suas e de seus irmãos, e que lhes compensam erros e desvarios porventura cometidos. Antes da representação à Assembleia Constituinte, José Bonifácio, mal chegado ao Brasil, na viagem mineralógica de pouco mais de cinco semanas que fez pelo território de São Paulo, em companhia de Martim Francisco, nos começos de 1820, tivera ensejo de tomar contato com as misérias da sociedade escravocrata. Em Itu preparava-se uma expedição para ir comprar índios Caiapós nas margens do Paraná, e os dois mineralogistas itinerantes não contiveram a sua repulsa: “a sorte daqueles índios, assim como a dos Guarapuavas, no distrito de Curitiba, merece toda a nossa atenção, para que não ajuntemos ao tráfico vergonhoso e desumano dos desgraçados filhos da África, o ainda mais horrível dos infelizes índios de quem usurpamos as terras...”. Aliás, Martim Francisco, na memória de outra viagem científica feita em 1803, escrita provavelmente logo depois, admirava-se dos castigos e maus tratos infligidos pelos senhores à “desgraçada raça africana”, e concluía: “não basta a injustiça de um tráfico tão vergonhoso para a humanidade, ainda aumentamos nossos crimes pagando tão mal os seus serviços: mas a natureza, que nada deixa sem recompensa, em prêmio de nossos furores... faz grassar em nosso país moléstias endêmicas na África e deteriora nossos costumes pela comunicação com eles, pois no seio da escravidão só podem germinar enxames de vícios e baixezas”.

Seria um estudo interessante o que examinasse mais particularmente a posição dos Andradas da Independência em face da escravidão – o que fizeram ou tentaram fazer – e as consequências que sofreram em sua vida e carreira política por terem assumido essa posição. Joaquim Nabuco, que sugeriu o tema (O Abolicionismo, p. 56-nota), em relação apenas a José Bonifácio, adianta que talvez quem empreender o estudo venha a descobrir que as ideias conhecidas do estadista que “planejou e realizou a Independência” explicam em boa parte o ostracismo a que se viu condenado.

Seja como for, a verdade é que, não se cingindo ao lado exterior dos acontecimentos, mas fazendo obra de reformador social, José Bonifácio pretendeu acabar com o tráfico africano e com a escravidão, ao iniciar o Brasil a sua existência de nação independente. “Como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos” - perguntava ele aos deputados reunidos na Assembleia Constituinte. E dava ao seu apelo a ênfase de um moralista: “comecemos pois, desde já, esta obra pela expiação de nossos crimes e pecados velhos”. Dos negros que chegavam aos nossos portos abafados nos porões dos navios e “mais apinhados que fardos de fazenda”, o mais ilustre dos Andradas se sentia cristãmente irmão, vendo neles seus semelhantes: “se os negros são homens como nós e não formam espécie de brutos animais, se sentem e pensam como nós...”. Mas não o inspiravam apenas sentimentos generosos no combate que sustentava contra a escravidão: razões de estadista, de sociólogo, de economista o amparavam, e todas se conjugam nessa representação em que, num estilo muitas vezes defeituoso, desigual, de gosto incerto, palpita uma nobre e quente vibração humana, um alto, um justo e equilibrado pensamento. Todos os males econômicos, sociais, políticos e morais do regime do trabalho servil, José Bonifácio expôs e condenou. Não souberam, melhor, não o quiseram ouvir os dirigentes da classe que dominava e continuaria a dominar o Brasil no século XIX – os senhores de engenho e fazendeiros empenhados na exploração dos seus latifúndios. O que lhes propunha a representação parecia-lhes prejudicial, louco, revolucionário. Mais encarniçado ainda do que eles em combater e inutilizar a ação do ministro da Independência, seriam os traficantes de escravos, todo um bando poderoso de ricos comerciantes portugueses, “negreiros” implacáveis na sua ganância.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A paranoia do superávit primário

O texto que publico hoje foi extraído de “A Armadilha da Dívida”, de Reinaldo Gonçalves e Valter Pomar, livro publicado em 2002 pela Fundação Perseu Abramo – e que pode ser encontrado na excelente Biblioteca Digital da instituição.

O tema desse trecho do livro é a economia no governo tucano de Fernando Henrique. No entanto, há nele coisas muito atuais, em especial a descrição que lhe dá título, “A paranoia do superávit primário”.

É verdade que, ao contrário das paranoias descritas nos livros de psiquiatria e nos tratados de psicopatologia, os acometidos desta não parecem demonstrar a terrível angústia dos verdadeiros paranoicos. Pelo contrário, demonstram
REINALDO GONÇALVES E VALTER POMAR

O governo FHC é responsável pelo mais grave ciclo de endividamento (interno e externo) da história da economia brasileira, ao mesmo tempo em que reduziu as taxas de crescimento e investimento.

Na verdade, a política econômica do governo federal premiou – por exemplo, por meio dos juros altos – aqueles capitalistas que aplicaram seus recursos na área financeira.

O extraordinário aumento da dívida interna a partir de 1995 implicou a absorção de recursos na área financeira que, de outra forma, poderiam ter tido aplicação na esfera produtiva.

É claro que, em qualquer época, os capitalistas sempre aplicam parte de seus recursos nos mercados financeiros. Uma característica da época atual, de hegemonia das políticas econômicas chamadas de neoliberais, é exatamente o predomínio da financeirização. O governo FHC “apenas” levou essas tendências ao paroxismo.

Durante o governo FHC, a economia brasileira teve taxas de juros absurdamente elevadas, das maiores do mundo.

Com taxas de juro real que excederam 12% ao ano, não é de estranhar que o Brasil tenha tido taxas de investimento medíocres (inferiores a 20%) a partir de 1995.

Empresas não-financeiras deixam de fazer investimentos produtivos para comprar títulos públicos. E assalariados cuja renda permite alguma sobra no final do mês deixam de fazer gastos de consumo para fazer aplicações financeiras lastreadas em títulos públicos.

Para financiar o pagamento destes títulos, o governo implantou um tremendo arrocho fiscal. O aumento da carga tributária bruta, que cresceu de 28,4% em 1995 para 31,7% em 1999, reduziu a renda pessoal disponível na economia.

A combinação, desde 1995, desse tipo de política monetária e fiscal resultou naquela taxa média anual de crescimento real de 2,4% no período 1995-2001, medíocre segundo qualquer padrão de referência, seja o desempenho histórico da economia brasileira, seja o desempenho da economia mundial.

No que diz respeito ao desempenho da economia mundial, vale destacar que ela cresceu a uma taxa média anual de 3,6% no período 1995-2001, enquanto a “locomotiva” norte-americana cresceu 3,7% anualmente (FMI, 2000).

Na prática, portanto, o governo FHC adotou políticas que reduziram o crescimento econômico no Brasil, embora certamente tenham ajudado no crescimento econômico verificado nos países capitalistas centrais. Agora que mesmo aqueles países estão num momento de desaceleração econômica, o Brasil se vê no pior dos mundos.

Para realizar esta “façanha”, o governo, a mídia e os grandes empresários lançaram mão de vários mecanismos econômicos, políticos e ideológicos.

Um dos mecanismos ideológicos foi a criação de uma “paranoia”: a dos superávits primários. O entendimento deste e de outros conceitos é importante para se compreender os principais problemas de finanças públicas no Brasil.

Imaginemos um governo cujas dívidas sejam unicamente as relativas ao ano corrente. Este governo tem que arrecadar um volume de impostos necessário para pagar suas despesas correntes. Se as receitas forem inferiores às despesas, o governo terá um déficit. Se as receitas forem superiores às despesas, o governo terá um superávit.

Agora imaginemos que este governo tenha, além das despesas correntes, dívidas herdadas de anos anteriores. Ele terá que gerar um superávit equivalente às dívidas. Senão, incorrerá num déficit operacional e, caso não queira dar um calote nos seus credores, terá que lançar mão de suas reservas, vender patrimônio, pedir novos empréstimos e “rolar” as dívidas (ou seja, trocar dívida velha por dívida nova).

Há duas maneiras de criar um superávit (que chamamos de superávit primário): aumentando as receitas e reduzindo as despesas correntes (despesas não-financeiras).

Nisso consiste a “paranoia do superávit primário”: fazer de tudo para aumentar as receitas fiscais e para reduzir os gastos públicos, com o objetivo de sobrar dinheiro para pagar a dívida pública.

No governo FHC, a necessidade de financiamento do setor público está toda focada no pagamento das dívidas financeiras, mais exatamente dos juros dessas dívidas. Em 1998, por exemplo, houve um equilíbrio (primário) nas contas públicas: as despesas não-financeiras foram equivalentes às receitas. Ocorre que o pagamento de juros representou 7,5% do PIB e, como resultado, o déficit operacional foi de, exatamente, 7,5% do PIB. Em dólares correntes, o pagamento de juros foi equivalente a 60 bilhões ou cerca da metade do total do investimento produtivo realizado no país naquele ano. Resultado: centenas de milhares de postos de trabalho deixaram de ser criados.

A paranoia do superávit primário tem resultados que lembram a parábola da galinha dos ovos de ouro. Para gerar superávits, o governo corta despesas e amplia receitas; mas o governo corta despesas exatamente de quem ele cobra mais. As vítimas dos cortes, do arrocho e do crescimento medíocre são os assalariados e os setores médios, os mesmos que têm sua renda supertributada pelo governo, para gerar o superávit primário. Chegará o dia em que, como na Argentina de 2001, o governo não terá mais como ampliar receitas nem como reduzir despesas. Nesse dia, a galinha dos ovos de ouro estará morta.

Em resumo: a dívida criada pelo governo FHC é a principal herança que ele deixa para as próximas gerações de brasileiros. Por essa razão, diz-se que FHC comprometeu o futuro no Brasil. O descontrole das contas públicas é parte essencial da política de FHC, responsável por uma das maiores transferências de riqueza e de renda ocorridas na história do Brasil.


PARA INGLÊS VER

No Brasil de FHC, servir as dívidas financeiras tornou-se uma prioridade acima de todas as outras.

A dívida implica o pagamento de juros elevados, a deterioração das contas públicas, o aumento da carga tributária, a redução dos investimentos, o baixo nível de atividade econômica.

Isto reduz o potencial de crescimento econômico e também a capacidade do Estado de combater a pobreza e a desigualdade social, provoca a degradação dos serviços públicos, agravando problemas sociais como o desemprego e a violência.

Em decorrência, parcelas crescentes da população se decepcionam com a democracia, com os partidos, com os políticos, com os processos eleitorais. Um dos resultados disso é o comprometimento das instituições públicas e a tensão política que atravessa o Brasil e todos os países em que o neoliberalismo deitou raízes.

Os analistas conservadores em geral restringem o problema do endividamento interno a duas questões: custo e prazo. Em outras palavras: devemos administrar a dívida (ampliando os prazos de pagamento e reduzindo os juros), sem questionar as causas e consequências do endividamento.

Do ponto de vista dos que querem não apenas administrar o presente mas enfrentar o passado/presente para criar outro futuro, é preciso compreender as causas e consequências das dívidas e do endividamento.

O fenômeno do endividamento público só é compreensível visto do ângulo crítico da economia política, sob a ótica “externa” (relação entre diferentes Estados-nação) e sob a ótica “interna” (da luta de classes).

É impossível, por exemplo, entender o endividamento sem tomar em conta as relações entre as classes sociais (trabalhadores, capitalistas, pequenos proprietários), os movimentos e características do capital (“produtivo”, “especulativo”), a dimensão “doméstica” e a dimensão externa da dívida (as pressões do FMI para taxas de juros elevadas, a emissão de títulos públicos com correção cambial etc).

Após a Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos governos não era adepta da “paranoia do superávit primário”, nem fazia da busca do superávit fiscal o leitmotiv de sua ação.

Naquele momento, ao contrário, os governos encaravam a expansão dos gastos públicos e os déficits fiscais como instrumentos necessários para estabilizar as economias capitalistas e, também, para promover o desenvolvimento econômico.

Após a crise dos anos 70 e a introdução das políticas neoliberais, importantes governos continuaram a utilizar os gastos públicos como instrumento de política econômica, mesmo quando diziam o contrário.

Um exemplo paradoxal é o da economia norte-americana. Tanto a política desenvolvida pelo governo Reagan (1981-1989) como a fórmula encontrada pelo governo George W. Bush, iniciado em 2001, para tirar os Estados Unidos da trajetória recessiva iniciada no final de 2000 tiveram por base a expansão dos gastos públicos.

Outro exemplo a destacar é o da Alemanha, país reconhecidamente rigoroso quanto ao equilíbrio das contas públicas. A trajetória recessiva da economia mundial em 2001 provocou um relaxamento do controle orçamentário, de tal forma que o déficit público originalmente previsto, de 1% do PIB em 2001, foi ampliado para pelo menos 2,5% (The Economist, edição brasileira encartada no jornal Valor, 9 de outubro, p. 12).

Esses exemplos mostram que um déficit público orientado para combater a exclusão ou para permitir a realização da capacidade produtiva (e, portanto, sua expansão) é visto como algo positivo até mesmo por governos que, na casa dos outros, estimulam a paranoia do superávit primário.

Mostram, também, que mesmo governos controlados pelo capital financeiro percebem que um superávit fiscal orientado para o pagamento de juros pode significar um freio ao desenvolvimento.

Portanto, a “paranoia” do superávit primário imposta pelo FMI e realizada pelo governo FHC não é equívoco, ingenuidade, ignorância ou esquizofrenia do presidente da República, mas sim uma política determinada e deliberada de concentração e transferência de riquezas.


AMPLIANDO A DEPENDÊNCIA

Nos anos 90, o país também recebeu investimentos estrangeiros de monta. Mas, na ocasião, aqueles investimentos não vieram participar de um ciclo de crescimento; em compensação resultaram num aprofundamento sem igual da dependência externa do Brasil.

Dois indicadores deixam isso claro: o saldo em conta corrente e o passivo externo. O saldo em conta corrente contabiliza as relações do Brasil com os demais países do mundo: se o saldo é negativo, isso significa que o país está enviando mais recursos para o exterior do que recebendo.

O passivo externo, por sua vez, é a soma de nossa dívida externa com o investimento estrangeiro no Brasil (no mercado financeiro, acionário ou sob a forma de investimento direto): o valor resultante indica a presença do capital estrangeiro na economia brasileira. Se abatermos desse número nossas reservas em moeda estrangeira mais os haveres externos dos bancos brasileiros, obteremos um indicador chamado “passivo externo líquido”. Em outras palavras: o saldo em conta corrente é uma medida de “fluxo”, enquanto o passivo externo é uma medida de “estoque”.

Em 1991, o saldo de transações correntes entre o Brasil e o mundo era negativo em 1,4 bilhão de dólares. Já em 2000, nosso saldo negativo foi de 24,6 bilhões de dólares. Em apenas uma década, multiplicamos por 17 nosso déficit em transações correntes. Em percentuais, a relação entre o déficit no balanço de pagamentos (saldo de transações correntes) e o PIB aumentou de menos de 1% para um déficit de 4,4% em 2000.

Em 1994, nosso passivo externo líquido era de 185 bilhões de dólares. Em 2000, ele cresceu para 355 bilhões de dólares. Isso indica um aumento da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Ou seja, hoje somos mais suscetíveis, ou menos resistentes, a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos.

Uma análise qualitativa da presença do capital estrangeiro na economia brasileira confirma que o modelo econômico iniciado no governo Collor e ampliado e aprofundado no governo FHC implicou sérios desequilíbrios nas esferas comercial, financeira, produtiva e tecnológica.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Assad: “Não se pode dizer a um povo que aceite a colonização”

Para alcançar seus objetivos em nossa região, eles citam sempre os direitos humanos, mas quem são os responsáveis pelo resultado das guerras, pelas crianças órfãs, pela gente pobre, e a Líbia, o Iraque?”, afirma o presidente da Síria, Bashar al Assad, em entrevista transmitida pela Telesur

"Não se pode dizer a um povo que ele tem que aceitar a colonização, não se pode dizer a um povo que resiste, que abandone seus princípios, isso só se diz a um povo ajoelhado, submisso”, afirmou o presidente da Síria, Bashar al Assad, em entrevista realizada pela televisão estatal síria no domingo, e transmitida pela Telesur. A Síria tem enfrentado grupos terroristas patrocinados pelos Estados Unidos e Europa na tentativa de desestabilizar o governo de Assad, que defende com firmeza suas posições em defesa dos direitos do povo palestino, da retomada das Colinas de Golã, hoje ocupadas por Israel, e sua relação soberana com a Resistência no Líbano.

“Eles falam em direitos humanos. Se queremos falar somente sobre essa posição falsa que eles utilizam sempre para alcançar seus objetivos em nossa região, os direitos humanos, vamos olhar para os últimos anos, para a história recente, e o que vemos é o Afeganistão, o Iraque, a Líbia... Quem é o responsável pela tragédia que está acontecendo na Líbia, quem é o responsável pelas vítimas que caem nessa região? Quem é o responsável pelo resultado das guerras, pelos feridos, pelas crianças órfãs, pela gente pobre?”

Referindo-se às reformas que estão sendo empreendidas no país, recebidas negativamente pelo Ocidente, o presidente diz: “para eles, a reforma não é o objetivo”. “Não querem que façamos reformas, eles querem que o país seja retrógrado, que volte ao passado. Aqueles que nos criticam, os países colonizadores, nunca estão satisfeitos com nosso comportamento, o que querem é que abandonemos a nossa soberania, a nossa resistência, os nossos direitos, não querem que lutemos contra nossos inimigos, esse tem sido o comportamento constante por parte deles”.

“Daí que nossa relação com esses países é uma luta pela soberania, e a causa é a situação geográfica e estratégica da Síria. É um tema que não começou agora. Sempre insistiram em intervir em nossos assuntos internos e nós sempre insistimos que a Síria é intocável, não se mexe na sua independência, na sua soberania”.
Para o presidente, o país no momento está entrando numa fase em que o mais importante agora não é somente a questão da segurança, “mas a consciência do povo sírio, que está salvando o país”.

“Agora a situação está evoluindo, e podemos dizer que tivemos uma pequena melhora. Tivemos alguns sucessos, que não podemos mencionar por questões de segurança”.

“A situação da Síria é de solução política, mas quando há uma situação de segurança temos que enfrentá-la para salvaguardar as instituições, temos que conservar a paz interna com a ajuda dos mecanismos de segurança. Para ser claro, na Síria a solução é política, mas esta solução não pode acontecer sem conservarmos a paz interna”.

O presidente falou sobre o chamamento ao diálogo que está ocorrendo no país para a discussão das reformas e da Constituição. "Vamos passar a uma etapa de transição. Queremos ir aos Estados, queremos discutir as questões dos trabalhadores, dos partidos, questões que têm que amadurecer. Este diálogo interno é necessário. É normal que haja uma revisão geral de toda a Constituição com todos os seus artigos, sobre todos os pontos políticos”.

Perguntado sobre se o país terá eleições próximas, Bashar al Assad explicou que nos próximos dias serão definidos os nomes para o comitê encarregado de revisar a Lei dos Partidos Políticos e a Lei da Direção Interna, que legislam sobre as eleições.

“Tudo depende da nova lei e também da transparência que tem que aportar essa lei. Essa lei depende do eleitor. Será que vamos seguir com a forma antiga, ou vamos falar de coisas novas, de aspirações novas do eleitor? De agora em diante, qualquer um que queira formar um partido político tem o direito de fazê-lo, de acordo com a nova lei. Quando esta lei for promulgada, nos próximos dias, dentro de três meses podemos ter eleições internas, depois a revisão da Constituinte, num prazo de três a seis meses. O objetivo é dar oportunidade para que os novos partidos possam participar das eleições parlamentares, que devem acontecer em fevereiro do ano que vem. Com isso podemos terminar com a etapa das reformas nacionais”.

“Para mim, o mais importante é como podemos impulsionar os jovens para defenderem as instituições do Estado. O que temos visto nas conversas com os jovens nos últimos dias é que existe um grande sentimento e um grande medo de que sejam marginalizados. A juventude tem o poder, tem a energia, então queremos dar a esses jovens o seu papel na sociedade, levá-los em conta, esse é um ponto muito importante”.

Quanto a pressão econômica exercida pelos Estados Unidos, o presidente diz: “Quando se fala em bloqueios recentes, eu digo que sempre tivemos bloqueio por parte dele e seus aliados. Não há dúvida que este pode ter influência sobre nossa economia, mas nos últimos meses nossa situação econômica tem evoluído e está melhor do que antes, incluindo o turismo, que é muito importante para a Síria”.

“Quando eles começaram com o bloqueio em 2005, a situação era uma, mas agora o cenário mundial está aberto, há muitas outras possibilidades, eles não são os únicos. Temos desenvolvimento interno, podemos cobrir nossas necessidades, a posição da Síria também é necessária para a economia da região. Se nossa economia falha, isso também vai se refletir nos países da região, então não temos que temer, temos que ter ânimo porque isso não vai nos quebrar. Temos que manter nosso intercâmbio comercial de maneira normal e natural”.

“A Síria sempre saiu fortalecida depois de cada crise. Temos uma civilização de cinco mil anos, desde antes das escrituras, somos os mais antigos. Este povo, em todas as suas etapas, tem adquirido fortaleza, não podemos cair, nada pode nos derrubar. Então, o mais natural agora é que nos sintamos mais tranquilos, porque eu me apoio neste povo que sempre saiu mais forte de todas as crises e de todos os conflitos".

terça-feira, 16 de agosto de 2011

ENTREVISTA NO BLOG DO IAP




Entrevista com Antônio Ferreira, mestre em cultura popular, afro religioso, representante da Cultura Afro dentro do Conselho Nacional de Política Cultural – CNPC e vice-presidente da Região Norte do Congresso Nacional Afro-Brasileiro – CNAB/Belém, Pará.

IAP - A Caravana Rumos à Cidadania trouxe representantes do Ministério da Cultura para ouvir gestores culturais e artistas locais, o que se espera desse encontro? Como vai se desenrolar?

AF - Foi muito importante a vinda da Caravana na Região Norte, haja vista que o hoje o Ministério da Cultura tem uma nova nomenclatura. A fusão e a junção de duas secretarias juntaram na frente Marta Porto, que é uma grande militante da área e foi consultora também.
O que se espera é um avanço do próprio Ministério nas políticas públicas, para ponto de cultura, nos editais e não só para a cultura popular, mas na indígena e quilombola também. E hoje o novo formato quer formar políticas públicas para a Cultura Afro dentro da SDC (Setor de Difusão Cultural).

IAP - 2011 é consagrado pela ONU como o “Ano Internacional dos Afro-descendentes”. Quais as atividades pensadas para a data e como contribuir para diminuir as desigualdades étnicas no Brasil?

AF - As atividades pensadas para o ano já estão sendo efetuadas. Hoje o movimento social negro está organizado e pedindo imediata implantação da Lei 10.639.03, que trabalha com a Cultura Afro nas escolas. Hoje essa atividade é um campo de batalha nosso que essa Lei seja implementada, onde o Estado Brasileiro tem uma grande dívida conosco e a Lei não é um pagamento de dívida, é apenas uma reparação para com o movimento.
E o que se espera disso? Para terminar com essa situação, o Estado Brasileiro tem que assumir o papel em dizer que ele nos massacrou, nos oprimiu durante mais de 500 anos e este ano a ONU foi feliz em lançar este “Ano Mundial pelo Afro-Descendência”. O mundo tem que respeitar a raça preta, o nosso gênero, nossa etnia, nossa religião, nossos costumes e respeitar a cidadania como um todo.

IAP - O IAP trabalha pela interiorização de suas ações. Como o CNPC trabalha as políticas públicas visando o acesso cultural a todos os recantos do Brasil?

AF - Bacana o IAP trabalhar com a interiorização. Hoje, o CNPC está com um formato de trabalho que faz um intercâmbio com todos os seguimentos em nível nacional. E esse tipo de intercâmbio visa provocar e fomentar a discussão de políticas públicas para a cultura em geral.
Como o IAP tem uma gerência específica para gênero, etnia, trabalha com quilombola e com a própria cultura negra, hoje a gente dentro do CNPC está com um trabalho em que os Institutos, as Fundações e Secretarias que tem esse trabalho, valorizam os nossos costumes e as nossas tradições.

IAP - Santarém ganhará um Núcleo de Produção Digital (NPD) e uma representação do IAP. O que podemos oferecer ao povo de Santarém, visando o aprimoramento artístico dos que trabalham com arte?

AF - Parabéns a Santarém e ao IAP. Independente de co-partidária a cultura não tem esta característica, ela é limpa e única. Santarém precisa disso e o que mais for oferecido, que a própria cidade abrace com amor esses dois fomentos que o IAP vai implantar lá. E que ela contribua com mais esse crescimento, chamando mais parceiros, não só o IAP, chamando o Ministério da Cultura e outros Ministérios que trabalhem com a cultura para que venham investir naquela cidade, pois ela tem muito que crescer em conjunto com o Estado do Pará, por que o Pará é só um.

IAP - O que está sendo pensado pela Regional Norte e quais os projetos em andamento?

AF - Hoje, o que se trabalha é uma visão geral que nós aprovamos na Segunda Convenção Nacional de Cultura: o “Custo Amazônico”. Hoje, o “Custo Amazônico” tem que ser implementado urgentemente, por que a Amazônia sofre. A Região Norte sofre perdas de políticas públicas pela longitude que ela tem das outras regiões, o Sudeste ganha por estar perto do Centro-Oeste, o Sul ganha, o Nordeste às vezes ganha também e nós aqui ao Norte ficamos ao léu, sem políticas públicas especificas.

IAP - O que é o “Custo Amazônico”?

AF - O “Custo Amazônico” tem vários conceitos. Um deles é o intercâmbio entre a Região Norte e as outras regiões do Estado Brasileiro. Neste custo, por exemplo, o artista que estiver no Rio Grande do Sul, com um espetáculo de dez mil reais, possa ter condições de chegar com esse valor aqui na Região Norte e não venha perder dinheiro. Porque, haja vista, no Estado do Pará só para chegar em Breves de barco leva-se doze horas e uma passagem de rede custando R$ 80,00 ou imaginem ter que gastar no mínimo R$2.000,00 com passagens de avião por não haver vôo direto para o Acre.
Então o “Custo Amazônico” passa por toda essa estruturação mais econômica. É uma política econômica, por que sem a economia não se tem política.

IAP - Como representante da Cultura Afro no CNPC, como você avalia hoje o momento do afro-descendente?

AF - Hoje é um bom momento, de todos que já atravessamos. Momento no qual a própria Cultura Afro está se identificando, está indo para fora. Nunca no CNPC a Cultura Afro teve uma cadeira, hoje nós temos uma e algo inédito: um “babalorixá” nesta cadeira, e do Norte, morador do Estado do Pará e bebedor de açaí.