É difícil – aliás, impossível – imaginar Descartes, Kant ou Hegel (para não citar Marx) como pensadores despreocupados em indagar: “isso é verdade?”. Mas, Foucault, realmente, não tem essa preocupação. Certamente, ele não foi o primeiro a tomar o discurso pela vida – ou, mais precisamente, não foi o primeiro a tentar reduzir a vida a um discurso arbitrário, supostamente onipotente – pois tudo é possível no discurso quando há uma ruptura entre ele e a vida. Porém, mesmo com esse discurso, ele tem de contornar os problemas reais – ou seja, reconhecer, de um modo ou de outro, que eles existem – sob pena de desmoralização do discurso. Nesses momentos, se nos permite o leitor o uso de uma expressão popular, seu discurso é mais ensaboado que o bagre da lenda
CARLOS LOPES
Evidententemente, o conceito só pode ser uma abstração e generalização da realidade concreta, particular.
A ideologia não é capaz de criar o que antes não existia – o fato de, antes, o objeto da realidade (nesse caso, os “doentes mentais”) serem chamados por outro nome (p. ex., “loucos”, ao invés de “doentes mentais”), antes de ser formulado o conceito (nesse caso, o conceito de “doença mental”) em nada altera a realidade – isto é, a existência de doentes mentais, mesmo antes que se formulasse plenamente o conceito de doença mental.
Rigorosamente: o conceito de doença mental foi formulado porque existiam doentes mentais. E não o inverso.
É óbvio que Foucault atribuiu poderes miraculosos ao discurso – que, nele, adquire uma autonomia quase completamente arbitrária em relação à realidade, uma “autonomia” que somente não é delirante porque ele se preocupa obsessivamente em que esse discurso funcione para o seu público.
Como dissemos, o alvo de Foucault é, sem rebuços, o Iluminismo – o período em torno da Revolução Francesa. A consequência é que seu ataque à Razão iluminista, necessariamente, descamba para uma apologia do feudalismo. Essa apologia é travestida por um labirinto de citações altamente seletivas e interpretações com variado grau de arbitrariedade - mas que não são apresentadas como interpretações, e, sim, como saques de atenção – coisas em que outros, antes dele, supostamente, não prestaram a devida atenção.
COISAS
Somos obrigados, aqui, a examinar esse problema – pois Foucault tornou-se o autor mais citado, não apenas pelos “antimanicomiais”, mas em todas as teses de pós-graduação do país na área de “humanas”, substituindo Marx, Gramsci e dezenas de pensadores muito mais importantes e infinitamente mais progressistas.
As obras de Foucault, aliás, se transformaram no instrumento favorito para torturar alunos – ou incentivar a sua preguiça, o que não é excludente - em algumas de nossas universidades. Além, é claro, da corte de impostores “pós-modernos” que sempre vem atrás da imposição de Foucault. Assim, há uma camada de acadêmicos que se acha dispensada de pensar com a própria cabeça (ou até com a de seus ídolos, que também renunciaram a tal prerrogativa humana – impressionar os incautos com um discurso meramente ideológico, sem preocupações com a realidade, isto é, sem preocupações com a ciência, é, para essa gente, mais importante).
Em 1977, no IPUB (o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, que conservou a sigla da época em que esta última instituição era a Universidade do Brasil), ao estranhar a descontinuidade das “configurações ideológicas” que Foucault apresentava como história (perdão, “arqueologia”) das ciências humanas em “As Palavras e as Coisas”, ouvi que “o importante é que Foucault presta atenção”. O autor da frase é hoje um dos mais conhecidos lacanianos do país – e, na minha opinião, uma excelente pessoa. Mas ele estava errado.
A questão da “descontinuidade” é - pelo menos eu achava - óbvia: como o “novo” somente pode surgir da transformação do “velho”, qualquer coisa, ou situação histórica nova, conserva elementos da anterior, ainda que, agora, subordinados ou secundários.
Porém, as “configurações ideológicas” de Foucault (nas suas palavras: “as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico”) - que são basicamente duas: uma que surge no século XVII e outra que surge no início do século XIX - me pareciam, entre uma e outra, ter o vácuo como recheio, por sua descontinuidade em relação à “configuração” anterior.
De certa forma, me lembravam - somente que exacerbadas - as concepções de cultura e/ou civilização expostas por Oswald Spengler, um pensador alemão de direita que, antigamente, era bastante lido no Brasil.
Mas todos no IPUB, nessa época, consideravam Foucault um pensador “de esquerda” - pelo menos não me lembro de nenhuma exceção, embora, justiça se faça, o grande professor Eustáquio Portela, titular de psiquiatria da UFRJ após a aposentadoria do professor Leme Lopes, fazia uma nítida separação entre Foucault e o marxismo, o que me deixava, injustamente, irritado com o mestre, talvez porque ele tivesse razão. Mas Portela era, ao que me lembre, o único que via tão nitidamente essa separação.
Nessa época, eu somente conhecia “As Palavras e as Coisas”. Ainda não lera “História da Loucura”, o que me deixava em desvantagem na discussão, pois todos nós éramos psiquiatras ou candidatos a psiquiatras.
Hoje, é possível dizer que Foucault não prestava atenção a quase nada (como disse o historiador Peter Gay, biógrafo de Freud, “ele não faz qualquer pesquisa, vai pelo instinto” - se substituirmos a palavra “instinto” por “chute”, teremos uma avaliação muito precisa).
Ao invés de “prestar atenção”, o que ele fazia era chamar a atenção dos leitores para onde ele quer que eles tenham a atenção. Alguém poderia dizer que todos os autores fazem isso. Não, quando o lugar para o qual se chama a atenção é um diversionismo para eludir o conjunto da realidade – ou, melhor dizendo, seus traços essenciais. O método de Foucault não é propriamente histórico – daí seus ataques ao “historicismo”. É mais semelhante ao dos prestidigitadores – somente que mais desonesto, pois, ao contrário dos mágicos, ele quer passar os truques como se verdade fossem.
Em uma resposta a críticas de autores anglo-saxões, Foucault disse algo revelador: “Entre as razões pelas quais é verdadeiramente difícil ter um diálogo com americanos e ingleses, é que, para eles, a questão crítica para o filósofo é: ‘isso é verdade?’ ” - e, em seguida, argumenta que a tradição “germano-francesa” (?) é diferente.
É difícil – aliás, impossível – imaginar Descartes, Kant ou Hegel (para não citar Marx) como pensadores despreocupados em indagar: “isso é verdade?”.
Mas, Foucault, realmente, não tem essa preocupação.
Certamente, ele não foi o primeiro a tomar o discurso pela vida – ou, mais precisamente, não foi o primeiro a tentar reduzir a vida a um discurso arbitrário, supostamente onipotente – pois tudo é possível no discurso quando há uma ruptura entre ele e a vida.
Porém, mesmo com esse discurso, ele tem de contornar os problemas reais – ou seja, reconhecer, de um modo ou de outro, que eles existem – sob pena de desmoralização do discurso. Nesses momentos, se nos permite o leitor o uso de uma expressão popular, seu discurso é mais ensaboado que o bagre da lenda.
Por exemplo, em “As Palavras e as Coisas”:
“O ser humano não tem mais história: ou antes, porque fala, trabalha e vive, acha-se ele, em seu ser próprio, todo imbricado em histórias que não lhe são nem subordinadas nem homogêneas. Pela fragmentação do espaço onde se estendia continuamente o saber clássico, pelo enredamento de cada domínio assim liberado sobre seu próprio devir, o homem que aparece no começo do século XIX é ‘desistoricizado’.”
Foucault está falando do período logo em seguida à Revolução Francesa, ainda com as tropas de Napoleão percorrendo a Europa. Mas, como ele leva em conta a realidade somente para evitá-la, poderia estar falando da ideologia da época, especialmente da ideologia predominante nos meios acadêmicos.
No entanto, foi exatamente no começo do século XIX, em 1807, que Hegel, professor na Universidade de Iena até 1806, publicou “Fenomenologia do Espírito”, livro em que diz, logo no início:
“O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo” (G.W.F. Hegel, “Fenomenologia do Espírito”, Parte I, trad. Paulo Meneses/Karl-Heinz Efken, 2ª ed., Vozes, 1992, p. 22).
E, mais explicitamente ainda:
“... não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação. Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para a frente. Na criança, depois de longo período de nutrição tranquila, a primeira respiração - um salto qualitativo - interrompe o lento processo do puro crescimento quantitativo; e a criança está nascida. Do mesmo modo, o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os sinais precursores de algo diverso que se avizinha. Esse desmoronar gradual, que não alterava a fisionomia do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo” (G.W.F. Hegel, idem, p. 26).
O ser humano jamais fora tão “histórico” quanto, até então, no fim do século XVIII e começo do século XIX. Daí os versos de Carducci, o poeta da unificação italiana: “Emanuel Kant decapitou Deus/ Maximiliano Robespierre, o rei” (Decapitaro, Emmanuel Kant, Iddio,/ Massimiliano Robespierre, il re).
Como Foucault afirma o contrário e consegue manter o discurso?
Simplesmente, escorregando para o oposto:
“Haveria, pois, a um nível muito profundo, uma historicidade do homem que seria, por si mesma, sua própria história, mas também a dispersão radical que funda todas as outras. É justamente essa erosão primeira que o século XIX buscou na sua preocupação de tudo historicizar, de escrever, a propósito de cada coisa, uma história geral, de remontar incessantemente no tempo e de repor as coisas mais estáveis na liberação do tempo” (M. Foucault, “As Palavras e as Coisas”, trad. Salma Tannus Muchail, 8ª ed., Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 510).
O que liga uma coisa e outra?
Frases do tipo “a História mostra que tudo o que é pensado o será ainda por um pensamento que ainda não veio à luz” (M. Foucault, op. cit., p. 515).
VERBO
O chamado “movimento antimanicomial” também segue o seu ídolo no período final, em que Foucault acabou afogado na apologia aberta do neoliberalismo.
Em um trecho dessa longa, maçante e medíocre ode neoliberal, proferida entre janeiro e abril de 1979 no Collège de France, Foucault expõe seu reacionarismo sob o ângulo “metodológico”:
“O historicismo parte do universal e passa-o, de certo modo, pelo ralador da história. Meu problema é o inverso disso. Parto da decisão, ao mesmo tempo teórica e metodológica, que consiste em dizer: suponhamos que os universais não existem; e formulo nesse momento a questão à história e aos historiadores: como vocês podem escrever a história, sem admitir a priori que alguma coisa como o Estado, a sociedade, o soberano, os súditos, existe? Era a mesma questão que eu colocava quando eu dizia, não sei se a loucura existe; vou examinar se a história me dá, me remete para alguma coisa como a loucura; não, ela não me remete para alguma coisa como a loucura, logo a loucura não existe. Não era esse o raciocínio, não era esse o método de fato. O método consistia em dizer: suponhamos que a loucura não exista. A partir disso, qual é a história que se pode fazer desses diferentes acontecimentos, dessas diferentes práticas que, aparentemente, se organizam por essa suposta alguma coisa que é a loucura? Então, é exatamente o inverso do historicismo que eu queria aqui colocar no lugar. Não interrogar, então, os universais, utilizando como método crítico a história, mas partir da decisão da inexistência dos universais para perguntar que história se pode fazer” (cf. M. Foucault, “Naissance de la Biopolitique, Leçon du 10 janvier 1979”, Gallimard/Seuil, 2004, grifos nossos).
É sabido o que a direita acadêmica chama de “historicismo”: basicamente, como disse um de seus caudilhos, Karl Popper, o marxismo e a psicanálise.
Fora isso, o único comentário possível sobre esse outro “método” de Foucault, ao adotar como premissa a inexistência do que existe, é que nem por isso o existente passa a ser inexistente: a doença mental e o sofrimento de cada paciente continuam concretos – e só aumentam, quando negamos a esse sofrimento a humana abordagem de tratá-lo como doença.
Mas, vejamos, por último, uma outra faceta do “método” Foucault.
Na segunda metade da década de 50 do século passado – e até o fim da década posterior – o marxismo era predominante no meio acadêmico francês.
Por exemplo, um dos principais “estruturalistas”, Roland Barthes, em seu conhecido livro de 1957, Mythologies, reivindica-se um marxista – e sinceramente.
Até Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir resolveram integrar o existencialismo ao marxismo - logo o existencialismo, que nascera como resistência pequeno-burguesa ao marxismo (aliás, Sartre foi até bem sucedido em seu objetivo: v. “Crítica da Razão Dialética”, que inclui o esforço anterior nesse sentido, “Questões de Método”, onde está a afirmação: “o marxismo permanece a filosofia de nosso tempo: é insuperável, pois as circunstâncias que o engendraram não foram ainda superadas”).
Nesse meio, era difícil para Foucault apresentar-se como um “filósofo” direitista. Sua solução foi a de construir labirintos com autores e citações escolhidas em função dessa construção – e não foram poucos os que ficaram, e ainda estão, perdidos nesses labirintos, considerando-o “marxista” ou “estruturalista”, apesar de sua afirmação, mas já quase ao final da vida: “Nunca fui freudiano, nunca fui marxista e nunca fui estruturalista”. Antes, quando Freud, Marx – e, depois, Levy-Strauss – eram moda acadêmica, ele preferiu um grau de dubiedade não pequeno sobre essas definições.
Uma questão que seria mais fácil de perceber, no passado, se considerássemos, ao invés das vias do labirinto, o material de que são feitas as suas paredes.
Por exemplo, em “História da Loucura”, ele tem um problema grave, que coloca em risco toda a sua construção: a obra de um dos principais iluministas, Voltaire, não confirma o que ele diz do Iluminismo quanto a uma questão decisiva para a concepção de doença mental: a relação entre, digamos assim, corpo e alma.
Pelo contrário, o que Voltaire escreveu, deita no chão o labirinto mental tão obsessivamente construído por Foucault.
A solução de Foucault foi a de dizer que a concepção de Voltaire sobre a loucura “não pertence à problemática médica do século XVIII (…) o texto de Voltaire (…) não é representativo da experiência da loucura naquilo que ela podia ter, no século XVIII, de vivo, de maciço, de espesso. (…) O fato de Voltaire ter esboçado do exterior, e através de desvios complexos, essa problemática simples não autoriza a reconhecê-la como essencial para o pensamento do século XVIII” (M. Foucault, op. cit., p. 235).
Logo, podemos concluir que o pensador francês mais característico do século XVIII, quanto à doença mental, não é um pensador francês característico do século XVIII.
Não é um bom método, esse de cortar as aparas dos labirintos mentais? Basta apenas enviar o pensamento daqueles que atrapalham a construção do labirinto para outro século...
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