A reflexão sobre o tema da diversidade cultural surgiu, no final dos anos 90, em contraposição a dois fenômenos de abrangência planetária, que se tornaram evidentes após o fim da Guerra Fria. De um lado, estava o fenômeno da globalização, caracterizado por uma crescente integração de mercados e o temor da homogeneização cultural. Em complemento a este processo, difundia-se o consenso de Washington, com sua ênfase na desregulamentação da economia e redução do papel do Estado. No plano das formulações teórico-ideológicas, o entusiasmo pela globalização alcançava seu ápice na hipótese de Francis Fukuyama sobre o “fim da história”. Celebrava-se então o triunfo do binômio “democracia representativa – liberalismo econômico”, visto como a única proposta capaz de propiciar o desenvolvimento pleno de nossas sociedades.
Em paralelo ao avanço da globalização, notava-se a emergência de um outro fenômeno de amplo alcance: a exacerbação da intolerância, com a proliferação dos nacionalismos, a expansão do fundamentalismo religioso e a crescente incapacidade das potências ocidentais de manterem um diálogo franco e respeitoso com o resto do mundo. Essa tensão montante no plano internacional foi sistematizada por Samuel Huntington em sua proposta de um “conflito de civilizações”. Segundo o estudioso norte-americano, diferenças culturais, profundas e insuperáveis, estariam por conduzir-nos a uma era de grande turbulência, que somente poderia ser enfrentada mediante o reforço da projeção cultural do Ocidente e a adoção de uma política de segurança global ainda mais agressiva, sobretudo na contenção das chamadas “novas ameaças”.
O surgimento do conceito de diversidade cultural e a aprovação, no âmbito da UNESCO, da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais constituíram, possivelmente, a alternativa mais qualificada e construtiva ao mundo conformado por esses dois fenômenos.
No que diz respeito à globalização, os propositores da diversidade cultural souberam ressaltar o caráter daninho da homogeneização promovida pela hegemonia das indústrias culturais anglo-saxãs. Tal como no campo da biologia, também na área da cultura é a diversidade que nos garante perpetuação da criatividade. Ambientes culturais homogeneizados tendem a caminhar para uma senilidade precoce, marcada pelo aumento do academicismo e por uma redução acentuada da capacidade de inovar. A cultura respira diversidade, ela precisa das diferenças, através de diálogos interculturais e da miscigenação cultural, para sentir-se estimulada e manter-se vivaz. Sem diálogo, sem trocas, sem estranhamentos e amalgamentos, a cultura definha. Mais grave ainda é a perda da memória e a perda de significados dos patrimônios materiais e imateriais que singularizam as diversas culturas. Quando todas as salas multiplex do planeta mostram as mesmas 8 ou 10 super-produções, construídas a partir dos mesmos estereótipos e convenções, e feitas nos mesmos estúdios, sabemos que a sétima arte corre o risco de desaparecer.
Essa perspectiva de valorização da diversidade cultural soube igualmente contrapor-se ao fatalismo do conflito de civilizações. Ela veio ensinar-nos – à moda do pensamento dialético – que aquilo que, aparentemente, nos afasta, de fato nos une. A diversidade cultural nos diferencia sem nos separar. O que estranhamos nos estimula. O que não conhecemos a fundo nos fascina e nos inspira. O diverso está cheio de poesia. Em outras palavras, a perspectiva da diversidade cultural veio descortinar um novo paradigma de convivência internacional, onde a diferença não conduz ao conflito, mas sim ao congraçamento e complementaridade. Conforme nos ensina a história, civilizações ensimesmadas, uniformes e incapazes de dialogar com a diferença tendem a declinar. Sua força vital desaparece e sua hegemonia perde toda a legitimidade.
A recente crise econômica e financeira internacional mostrou-nos a todos, com suficiente clareza, as limitações da utopia neoliberal. O desmonte das estruturas de Estado, as privatizações vorazes e as imensas facilidades concedidas à livre circulação de capitais trouxeram-nos mazelas bem maiores do que benefícios. Do mesmo modo, a lógica da intolerância, com seu maniqueísmo ideológico e seus ataques preventivos, fez apenas com que proliferassem no cenário internacional a insegurança e os ressentimentos. Tal como nas tragédias gregas, a proposta do conflito de civilizações, ao tornar-se motor da política externa de algumas das principais potências ocidentais, passou a ser uma construção que acabou por transformar premissas falsas em resultados desoladores.
A valorização da diversidade cultural talvez seja o melhor instrumento de que dispomos para superar esse estado de coisas. Em lugar de pensarmos o desenvolvimento e o bem-estar como um caminho unívoco, exclusivo da civilização ocidental, melhor será entendermos que existem diversas possibilidades a serem descobertas e valorizadas. Em lugar do conflito, o diálogo. Em lugar de dominação, respeito e interações. Em lugar de destruição de valores e de sistemas simbólicos, um ambiente saudável e propício à plena realização da condição humana. Mesmo a proposta civilizacional do Ocidente – construída ao longo dos últimos três milênios – contempla uma pluralidade de alternativas, infinitamente maior do que aquela proposta pelos teóricos do neoliberalismo. E não podemos esquecer que ela é, em boa parte, produto de um intenso contato com outras culturas. Em praticamente todas as áreas e manifestações, ela se alimentou da mestiçagem com outras civilizações.
Isso não implica desmerecer a democracia ou mesmo relativizá-la. Pelo contrário, a proposta da diversidade cultural aspira a uma democracia ainda mais ampla, plural e inclusiva. Ela nos leva a valorizar os diferentes grupos de nossas coletividades e dar-lhes condições efetivas de participar do processo de construção social do bem-estar. Ela nos insta a assegurar a todo cidadão a oportunidade de desfrutar de uma ampla gama de opções culturais, seja como criador, seja como consumidor. Ela nos conclama a promover a cooperação e o intercâmbio com outros países, outras culturas e outros modos de estar-no-mundo. Quando nos deixamos conquistar pela proposta da diversidade cultural, passamos a sonhar com uma Aliança das Civilizações baseada no equilíbrio e no respeito – não na imposição unilateral de valores. Quando começamos a amar a diversidade, ganhamos a capacidade de ver e escutar o outro. Aprender com ele, crescer com ele. Igualdade na diversidade.
Daí concluirmos que o conceito de boa governança deva ser expandido para contemplar muito mais do que os elementos tradicionais da racionalidade, previsibilidade, probidade e transparência. Boa governança é escutar a sociedade, é distribuir bem a riqueza produzida e garantir o acesso sustentável aos recursos naturais. É combater a exclusão social e cultural, e governar aprimorando as instituições do Estado, de modo a torná-las mais eficazes e democráticas. Boa governança é entender o bem-comum da forma mais ampla possível, contemplando o respeito às comunidades e a promoção das aspirações materiais e espirituais do indivíduo. Boa governança, enfim, é atuar em favor da cultura da paz e do convívio harmônico no concerto das nações. Somente assim poderemos superar as dificuldades atuais e chegar a um futuro melhor. Um futuro de respeito entre os homens e de reencontro do conceito de desenvolvimento com a ideia da felicidade.
Muito obrigado.
Juca Ferreira
Ministro de Estado da Cultura
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